O título, decididamente provocador, atraíra a minha
atenção na livraria, quando foi lançado. Depois de ler, na página 5, que o
ensaio era dedicado pelo autor a amigos crentes e não crentes que o ajudaram a
se interrogar sem medo para repensar e purificar a sua fé, sempre distorcida
quando se tenta “traduzi-la nas nossas pobres palavras humanas”, eu não tive
dúvidas de comprá-lo, com a intenção de lê-lo o quanto antes.
O comentário é de Andrea Lebra, publicado por
Settimana News, 07-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o
texto.
Tendo ficado por vários meses no
fim da fila de outros livros do meu (desordenado) escritório, somente nestes
dias de isolamento domiciliar forçado pela pandemia é que me foi possível
trazê-lo à luz e lê-lo com grande interesse.
Estou falando do livro “Eresie attuali del
cattolicesimo” [Heresias atuais do catolicismo], publicado na Espanha em 2013 e
publicado no ano passado em italiano pelas Edições Dehoniane de Bolonha, de
José Ignacio González Faus, jesuíta e professor emérito de Teologia Sistemática
na Faculdade de Teologia da Catalunha (Barcelona) e na Universidade
Centro-Americana de El Salvador, autor, pela EDB (primeira edição em 1995,
edição econômica de 2012), de “I poveri, vicari di Cristo” [Os pobres, vigários
de Cristo], uma rica e iluminadora antologia de textos da tradição cristã sobre
a dignidade dos pobres na Igreja.
As “heresias” levadas em consideração são aquelas que
a tradição teológica considera como “materiais” ou “inconscientes”,
distinguindo-as das formais que se traduzem em negações conscientes e
deliberadas de aspectos fundamentais da mensagem cristã.
O livro – escreve o autor na Introdução – “não
pretende acusar diretamente ninguém de heresia” (p. 13). Pelo
contrário, ele quer ser uma “confissão”, e as heresias a serem desmontadas são
aquelas que ele, teólogo, descobriu em si mesmo, tendo tido “a imensa sorte de
estar muito em contato com as fontes cristãs” e de dialogar com os seus irmãos
na fé.
“Acho que essa imensa sorte me obriga a tentar prestar
um serviço aos meus irmãos de hoje que não tiveram tanta sorte e que muitas e
muitas vezes discutem sobre a própria fé” (p. 15).
São dez as heresias inconscientes que o teólogo
espanhol entrevê no catolicismo contemporâneo e que “podem destruir a
identidade cristã” (p. 16): todas – parece-me – bastante difundidas, com
modalidades talvez nem tão inconscientes nas nossas comunidades e na
mentalidade dos fiéis.
1.
O
monofisismo e o apolinarismo latentes
A fé cristã se fundamenta em uma
afirmação paradoxal: Deus, que ninguém jamais viu (Jo 1,18), humanizou-se na
história, na vida e nas ações daquele judeu que era Jesus de Nazaré, verdadeiro
Deus e verdadeiro Homem, cuja existência na Palestina do primeiro século pode
ser afirmada com certeza graças aos dados abundantes e seguros que possuímos e
que se referem àquilo que ele fez e ensinou.
No entanto, é difundida a visão que concebe apenas a
divindade de Jesus às custas da sua humanidade, que carrega os sinais do
sofrimento, dos limites e da morte, com o consequente despojamento – como
atesta a Carta aos Filipenses 2,7 – da sua condição divina (p. 26).
É uma concepção que pode assumir a forma de um
monofisismo latente (p. 18): em Jesus, a natureza humana é absorvida na
natureza divina até desaparecer nela, como uma gota de vinho que cai na
imensidão do oceano (p. 18, nota 3).
Mas essa visão também poderia assumir a forma de um
apolarismo latente: Jesus foi, sim, uma pessoa de carne e osso, como qualquer
outro ser humano, mas não tinha uma estrutura psicológica humana como a nossa,
sujeita, portanto, à fragilidade, à angústia, ao medo ou ao senso de fracasso
(p. 19).
2. Ignorar
os pobres
Como Inácio de Antioquia
recordava aos cristãos da Igreja de Esmirna no século II, quem não crê que
Jesus veio na carne e foi condenado à morte “não se importa com a caridade, nem
com a viúva, nem com o órfão, nem com o oprimido, nem com que está preso ou
livre, nem com quem tem fome ou sede”.
“A heresia anterior – escreve José Ignacio González
Faus – nos leva, portanto, quase automaticamente, a esta outra”: negar a
eminente dignidade dos pobres na Igreja (pp. 33-34).
A Igreja é fiel a Cristo na medida em que é fiel aos
pobres (p. 34). De fato, os pobres, como disse Paulo VI aos
camponeses colombianos no dia 23 de agosto de 1968 (p. 41), são um sinal, uma
imagem, um mistério da presença de Cristo. Neles a tradição da Igreja – ainda
nas palavras de Paulo VI – reconhece o sacramento de Cristo em perfeita
correspondência analógica e mística com o sacramento da eucaristia.
Mas tem mais. O título clássico
de “vigário de Cristo”, que Inocêncio III reservou ao papa no século XII, era
atribuído anteriormente aos pobres. Testemunha disso é uma carta dirigida a
Ralph de Warneville, bispo de Liseux, por Pierre de Blois, estadista e teólogo,
que foi chanceler do bispo de Canterbury e viveu no século XII entre a França e
a Inglaterra: “O pobre é o vigário de Cristo. E assim como o Senhor se condói
de ver-se rejeitado e desprezado no pobre, assim também o alegra o fato de ser
acolhido no pobre” (p. 41, nota 7).
É uma mensagem tão clara, eloquente e exigente que
nenhuma hermenêutica eclesial pode redimensionar o seu porte.
3.
A
falsificação da cruz de Cristo
Pensar que é Deus quem manda o
sofrimento e a morte porque nos quer bem é uma blasfêmia. A ideia de que a cruz
de Cristo é a satisfação infinita oferecida a Deus para aplacar a sua cólera
causada pelo pecado dos humanos é algo monstruoso (p. 53).
Devemos ser gratos à investigação crítica neotestamentária
por ter esclarecido que a morte de Jesus não é uma necessidade metafísica da
justiça de Deus, mas sim a consequência das suas escolhas de vida (p. 69).
Jesus eliminou a face numinosa tremenda e violenta de
Deus e trouxe à tona plenamente a exclusiva face de amor, de benevolência e de
misericórdia (p. 53). A justiça do Deus revelado por Jesus de Nazaré é a
justiça do amor, não a justiça do deus impiedoso. Deus não quer a morte do
iníquo; ele quer que ele viva em plenitude e se converta (p. 57).
“A dor que vale é aquela que é fruto de um amor tão
grande que não se deixa intimidar, nem recua diante das consequências da sua
escolha de amar de maneira radical”, como fez Jesus (p. 66).
4.
A “ceia
do Senhor” sem comunhão e sem alegria
Uma das distorções mais
frequentes da eucaristia consiste em separar completamente a matéria (pão e
vinho) do gesto (partilha). Partir e distribuir o pão significa compartilhar as
necessidades dos homens e das mulheres (das quais o pão é um símbolo primário).
Passar a taça entre irmãos e irmãs na mesma fé é
comungar reciprocamente a alegria (da qual o vinho é outro símbolo humano
ancestral) de ser filhos e filhas do Pai celeste.
União juntos, partilha das necessidades e comunhão da
alegria são os gestos da solidariedade suprema. “E, ao realizar esses
gestos, nos é dada a garantia de uma presença real do Ressuscitado na nossa
história obscura” (p. 78).
“A função da eucaristia é eucaristizar a Igreja, para
que esta, por sua vez, seja capaz de eucaristizar do mundo” (p. 82), levando
todo fiel a se fazer pão partido e partilhado para os outros e, portanto,
também a se comprometer com um mundo mais justo e fraterno (p. 79).
5.
A
separação entre fé e vida
“A fé cristã é deturpada quando é
transformada em uma doutrina teórica ou em uma religião ritual” (p. 93) e
degenera em uma gnose (p. 95). O seu alimento mais seguro é o modo como vivemos
a nossa vida para contribuir para transformar o mundo de acordo com as coordenadas
do Reino de Deus (p. 99 e 101).
A dissociação, que se constata em muitos cristãos,
entre a fé que professam e a sua vida cotidiana, deve ser contada entre os
erros mais graves do nosso tempo (p. 94). A fé nunca pode ser uma questão
apenas mental: ela requer ser transformada em testemunho de vida.
“Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor! Senhor!’,
entrará no Reino dos Céus, mas só aquele que põe em prática a vontade de meu
Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Como nos recorda o número 19 da Gaudium et
spes, até mesmo na gênese do ateísmo os fiéis podem contribuir muito, na medida
em que apresentam falsas imagens de Deus por causa dos defeitos e das
incoerências da sua vida religiosa, moral e social (pp. 94-95).
6.
Pode-se
servir a Deus e ao dinheiro?
É impossível servir a Deus e aos
dinheiro: é preciso escolher entre um ou outro (Lc 16,13). A ganância do
dinheiro é idolatria (Col 3,5) e a raiz de todos os males (1Tm 6,10). Segue-se
daí que o dinheiro, adversário de Deus, é um ídolo ao qual, com muita
frequência, se presta um culto sacrílego (p. 122).
A distância entre o Evangelho e o catolicismo de hoje
em tudo o que se refere ao tema dos ricos e dos pobres não evidencia apenas um
escândalo (como aquele monstruoso da pedofilia), mas denota também “uma visão
teológica que pode deturpar nada menos do que a identidade do Deus bíblico”.
Deus é o Deus dos pobres, ele é conhecido não em nível
especulativo, mas praticando a justiça e a solidariedade. Como se
lê no livro de Judite 9,11, ele é o Deus dos humildes, o socorro dos pequenos,
o defensor dos fracos, o protetor dos rejeitados, o salvador dos desesperados
(p. 119).
7.
Crer na
Igreja esquecendo que só em Deus é possível crer
A Igreja não é uma realidade na
qual o cristão crê, assim como crê “em” Deus, “em” Jesus Cristo e “no” Espírito
Santo. A Igreja não é Deus, nem Jesus Cristo, nem o Espírito Santo: ela é uma
realidade que o cristão crê, isto é, uma realidade da qual aceita a existência
(p. 141).
De fato, na Igreja, como acontece em uma grande
família, somos acolhidos e aprendemos a viver como fiéis e discípulos do Senhor
Jesus, que, graças ao Espírito, nos revelou o rosto de Deus. A Igreja
não é um ídolo a ser adorado, mas sim uma realidade à qual o cristão reza, para
que seja sempre testemunho vivo da verdade e da liberdade (p. 144).
Nada de divinização ou idolatria da Igreja (p. 150). Nada de
tentar colocá-la acima da Palavra de Deus (p. 151), a cujo serviço ela deve se
colocar com humildade e coragem.
8.
Monofisismo
eclesiológico e divinização do papa
No Evangelho de Mateus, lemos:
“Quanto a vós, não vos façais chamar de ‘rabi’, pois um só é vosso Mestre e
todos vós sóis irmãos. Não chameis a ninguém na terra de ‘pai’, pois um só é
vosso Pai, aquele que está nos céus. Não deixeis que vos chamem de ‘guia’, pois
um só é o vosso Guia, o Cristo. Pelo contrário, o maior dentre vós deve ser
aquele que vos serve” (Mt 23,8-11).
Apesar da clareza dessa página do Evangelho,
acostumamo-nos tranquilamente a chamar o papa de “santo padre” ou de
“santidade”. E o único título, digno do sucessor de Pedro, que é o de
“servo dos servos de Deus”, embora relatado no Anuário Pontifício, nunca é
usado (p. 165).
É possível que, amanhã, em muitas mentalidades, domine
uma espécie de “monofisismo eclesiológico” (p. 170), que gostaria de atribuir à
figura do papa uma sacralidade que o torne estranho à dimensão humana (p. 173).
9.Clericalismo
O Novo Testamento e a tradição
eclesial primitiva absolutamente não eram clericais. Por que nós deveríamos
sê-lo? (p. 191)
Para contribuir para não ser assim, o autor cita
alguns parágrafos do decreto Presbyterorum ordinis sobre o ministério e a vida
dos presbíteros. E evidencia algumas das tarefas extremamente
importantes que lhes são confiadas, que, se traduzidas em estilos de vida e
escolhas pastorais, poderiam constituir um verdadeiro antídoto ao clericalismo.
Aqui estão eles listados: reunir a família de Deus
como família viva e unida, e conduzi-la ao Pai por meio de Cristo no Espírito
Santo; ter com todos relações marcadas na bondade mais delicada; colocar-se a
serviço de todos, mas de modo especial dos pobres e dos mais fracos; cuidar da
formação da comunidade cristã; estar cientes da pouca utilidade até das mais
belas cerimônias, se estas não estiverem voltadas a educar homens e mulheres
para a maturidade cristã; ouvir a opinião dos leigos, aproveitando a sua
experiência e competência nos vários campos da atividade humana; cuidar da
própria preparação teológica e da própria cultura, de modo a estar em condições
de sustentar com bons resultados o diálogo com os homens e as mulheres do seu
tempo (pp. 205-206).
10. Esquecimento
do Espírito Santo
A última “heresia” que, de alguma
forma, resume todas as outras, é constituída pelo esquecimento do Espírito
Santo, que caracterizou a tradição teológica ocidental (p. 30), mas que afeta –
observa o teólogo espanhol – “muitíssimos cristãos para os quais seria muito
válida a frase dos Atos dos Apóstolos (19,2): ‘Nem sequer ouvimos dizer que
existe Espírito Santo’” (p. 207).
O Espírito é o estilo de Deus: unidade na pluralidade,
liberdade na obediência, leveza na gravidade, presença na ausência,
profundidade na interioridade (pp. 209-210).
Ele sopra não apenas onde quer, mas também como quer. “Talvez
seja por isso que uma grande parte do catolicismo de hoje prefira a calmaria
com a qual não se avança ou as portas fechadas pelo medo, como fizeram os
apóstolos” (p. 208).
“O Espírito ensina a viver teologicamente no
seguimento criativo de Jesus” para tornar presente e fazer crescer o Reino de
Deus no mundo (p. 214).
Nota:
José Ignacio González Faus. Eresie
attuali del cattolicesimo. Coleção “Lapislazzuli”. Bolonha: EDB, 2019, 244
páginas.
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Nieustanne potrzeby??? Nieustająca Pomoc!!!
Witamy u Mamy!!!