Teologia da
libertação: “oportuna, útil e necessária”[1],
e quem disse foi S. João Paulo II
A crítica cega à teologia da libertação como um todo
não reflete a avaliação dos últimos papas sobre essa corrente teológica – e com
frequência joga fora o bebê junto com a água do banho.
Com frequência se encontra na blogosfera católica
brasileira uma oposição cega à teologia da libertação que diz se basear no
magistério da Igreja para demonizar essa corrente teológica. Mas se em vez de
darmos ouvidos a padres blogueiros e páginas de Facebook nós voltássemos o
olhar para o próprio magistério pontifício, veremos que esse tipo de opinião
não reflete a avaliação dos últimos papas – uma divergência entre magistério e
autoproclamados defensores do magistério que acontece com frequência em uma
série de temas.
Vamos acompanhar em ordem cronológica o que disseram
São João Paulo II e Bento XVI sobre a teologia da libertação. Poucos meses
depois de ser eleito papa, João Paulo II tocou no tema em uma audiência geral,
em uma série de discursos comentando a 3ª Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano e Caribenho, realizada em Puebla – ocasião da sua primeira
viagem apostólica.
“A ‘teologia da libertação’ é frequentemente
relacionada (algumas vezes demasiado exclusivamente) com a América Latina; é
necessário porém dar razão a um dos grandes teólogos contemporâneos (Hans Urs
von Balthasar), que justamente exige uma teologia da libertação de dimensão
universal”, disse o papa. “Só são diversos os contextos, mas a realidade mesma
da liberdade ‘para a qual nos libertou Cristo’ (Gl 5, 1) é universal. A missão
da teologia é encontrar o seu verdadeiro significado nos diversos e concretos
contextos históricos contemporâneos”.
“É necessário chamar com os devidos nomes a injustiça,
a exploração do homem pelo homem, ou a exploração do homem por parte do Estado,
das instituições, dos mecanismos dos sistemas econômicos e dos regimes, que
operam algumas vezes sem sensibilidade. É preciso chamar com os devidos nomes
toda a forma de injustiça social, discriminação e violência, infligidas ao
homem contra o corpo, contra o espírito, contra a sua consciência e contra as
suas convicções. Cristo ensina-nos especial sensibilidade para com o homem,
para com a dignidade da pessoa humana, para com a vida humana e o corpo humano.
É esta sensibilidade que dá testemunho do conhecimento daquela verdade que nos
torna livres (cf. Jo 3, 32)”, afirmou João Paulo II.
Ao mesmo tempo, o papa deu sua orientação para que a
teologia da libertação pudesse dar bom fruto: “A libertação, também no sentido
social, parte do conhecimento da verdade”, disse. “A teologia da libertação
deve sobretudo ser fiel a toda a verdade sobre o homem, para evidenciar – não
só no contexto latino-americano, mas em todos os contextos contemporâneos – a
realidade que é esta liberdade ‘para a qual nos libertou Cristo’”.
“Oportuna, útil e
necessária”
Os anos 1980 foram marcados pelos dois documentos da
Congregação para a Doutrina da Fé sobre a teologia da libertação: um deles,
contendo críticas “a alguns de seus aspectos” (Libertatis Nuntius, 1984), e
outro salientando positivamente “os principais aspectos da teologia da
libertação” (Libertatis Conscientia, 1986). Voltaremos a esses documentos no
fim do texto. Acompanhemos, por enquanto, as alusões de João Paulo II à
teologia da libertação nessa época.
Em um encontro com os bispos do Brasil, em 1986, João
Paulo II reiterou que “pode e deve existir uma reflexão teológica sobre a
libertação”. “A Igreja considera seu dever prosseguir, atualizar, aprofundar
mais e mais essa reflexão, graças à qual ela procura dar resposta também às
graves questões relativas à justiça social, à equidade nas relações pessoais,
nacionais e internacionais, à paz e ao desarmamento, à liberdade, aos direitos
fundamentais da pessoa humana, etc.”, disse o papa. “Purificada de elementos
que poderiam adulterá-la, com graves consequências para a fé, essa teologia da
libertação é não só ortodoxa, mas necessária”.
No mesmo ano, o papa enviou uma carta aos bispos do
Brasil, em que foi bem claro: “Na medida em que se empenha por encontrar
aquelas respostas justas – penetradas de compreensão para com a rica
experiência da Igreja neste país, tão eficazes e construtivas quanto possível e
ao mesmo tempo consonantes e coerentes com os ensinamentos do Evangelho, da
Tradição viva e do perene Magistério da Igreja – estamos convencidos, nós e os
senhores, de que a teologia da libertação é não só oportuna mas útil e
necessária”.
Para João Paulo II, a teologia da libertação “deve
constituir uma nova etapa – em estreita conexão com as anteriores – daquela
reflexão teológica iniciada com a Tradição apostólica e continuada com os
grandes Padres e Doutores, com o Magistério ordinário e extraordinário e, na
época mais recente, com o rico património da Doutrina Social da Igreja”.
Através da teologia da libertação, a Igreja no Brasil
deveria desenvolver uma reflexão teológica “apta a inspirar uma práxis eficaz
em favor da justiça social e da equidade, da salvaguarda dos direitos humanos,
da construção de uma sociedade humana baseada na fraternidade e na concórdia,
na verdade e na caridade”. Segundo o papa, “desse modo se poderia romper a
pretensa fatalidade dos sistemas – incapazes, um e outro de assegurar a
libertação trazida por Jesus Cristo – o capitalismo desenfreado e o coletivismo
ou capitalismo de Estado”.
Tanto no discurso quanto na carta, o papa falava de
uma “legítima”, “correta” e “necessária” teologia da libertação, que deve ser
“promovida, difundida, protegida e defendida”. Em encíclicas, falou também de
“uma nova e autêntica teoria e práxis de libertação”, de “uma autêntica
teologia da libertação humana integral” (Centesimus Annus, n. 26) e dos
“valores positivos” de “uma nova maneira de enfrentar os problemas da miséria e
do subdesenvolvimento que faz da libertação a categoria fundamental e o
primeiro princípio de ação” (Sollicitudo Rei Socialis, n. 46).
Ao mesmo tempo, João Paulo II dava orientações para
que essa reflexão se desenvolvesse de maneira fecunda, alertava para os seus
possíveis riscos e não poupava críticas a “algumas teologias da libertação”,
que traziam consigo “graves desvios”, apresentando-se em oposição ao magistério
da Igreja e absorvendo de forma acrítica as categorias de reflexão marxistas.
Essas críticas, porém, são sempre feitas com a
ressalva de se referir a “uma” teologia da libertação, a “certo tipo” ou a
“certos aspectos”, como em um discurso a seminaristas, no Brasil, em 1991: “Não
vos deixeis iludir pelos desvios de uma teologia da libertação que pretende
reinterpretar o depósito da fé com base em ideologias de cunho materialista e
se afasta gravemente da verdade católica”. Aos bispos, na mesma viagem, exortou
a não “ceder à tentação desse tipo de teologia da libertação que não se coaduna
com o autêntico Magistério da Igreja”.
Uma distinção
necessária
O mesmo tipo de distinção podia ser visto nas falas de
Bento XVI. Ao ser perguntado, na entrevista no voo que o trouxe ao Brasil em
2007, sobre qual seria a sua “mensagem específica” aos “representantes da
teologia da libertação”, o papa sublinhou que “a transformação da situação
política mudou também profundamente a situação da teologia da libertação”.
Por um lado, o papa Bento apontou que os “milenarismos
fáceis, que prometiam de maneira imediata, como consequência da revolução, as
condições completas de uma vida justa, estavam equivocados”. Por outro, indicou
que está aberto o debate, “difícil, mas legítimo”, sobre “como a Igreja deve
estar presente na luta pelas reformas necessárias, na luta por condições de
vida mais justas”.
“Nesse sentido, também alguns teólogos da libertação
procuram progredir ao longo desse caminho; outros seguem posições
alternativas”, comentou o papa. “De qualquer forma, o sentido da intervenção do
magistério [em 1984 e 1986] não foi o de destruir o compromisso em prol da
justiça, mas de o orientar pelos caminhos justos e também no respeito pela
justa diferença entre responsabilidade política e responsabilidade eclesial”.
Em outras circunstâncias, Bento reafirmou a distinção
ao elencar suas críticas: falou de “alguns teólogos”, de “certos princípios
enganadores” e de “certos aspectos da teologia da libertação”. Reforçou ainda
que as “sequelas mais ou menos visíveis” de teologias da libertação
problemáticas são feitas de “rebelião, divisão, dissenso, ofensa e anarquia” e
citou a “assunção acrítica” de “teses e metodologias provenientes do marxismo”.
Ele foi ainda mais claro em uma entrevista no voo que
o levou a Cuba e ao México em 2012. A pergunta do repórter foi bem objetiva:
“Pode-se continuar a falar de ‘teologia da libertação’ de modo positivo, depois
de certos excessos — sobre o marxismo ou a violência — terem sido corrigidos?”
Bento XVI respondeu que a expressão “teologia da libertação”, “pode ser
interpretada também muito bem”, mas afirmou não saber se o uso dessa expressão
ajudaria a Igreja a responder ao desafio da justiça social na América Latina.
Os problemas
A Libertatis Nuntius e a Libertatis Conscientia
expressam bem esse cuidado ao se falar da teologia da libertação: não se pode
tratá-la simplesmente como um bloco, mas valorizar o desenvolvimento de
reflexões fecundas que partam da fé cristã e corrigir a elaboração de teologias
que se fazem reféns de ideologias. Os dois documentos, um mais crítico e outro
mais propositivo, “devem ser lidos um à luz do outro” (LC, n. 2).
Vale lembrar que a demonização de que a teologia da
libertação é alvo não ajuda em nada a enxergá-la conforme a enxergou o
magistério e a compreender verdadeiramente quais são os riscos que a rondam – e
muito menos a compreender o seu valor. É muito comum que, no afã cego de se
contrapor à teologia da libertação, muita gente jogue fora o bebê junto com a
água do banho e acabe castrando as necessárias consequências sociais, políticas
e econômicas da visão cristã do ser humano. Isso é notável na ironia com que se
tratam, por exemplo, os temas da Campanha da Fraternidade.
O que existe de especificamente problemático em
algumas teologias da libertação? A Libertatis Nuntius se refere a alguns desses
problemas: situar o mal apenas nas estruturas econômicas, sociais e políticas,
minimizando ou negando a realidade do pecado pessoal (cap. IV); entender que a
justiça e a liberdade no plano econômico e político constituem a totalidade da
salvação (cap. VI); o empréstimo acrítico de elementos do pensamento marxista,
tomados não como um “instrumental” à luz da fé, mas como um sistema totalizante
(cap. VII); e a assunção da ótica da luta de classes, em que se põe de lado a
distinção entre o bem e o mal em si mesmos e se opta por uma lógica partidarista
(cap. VIII).
É claro que esses fatores influenciam – e deturpam –
toda a compreensão da fé cristã. Por outro lado, não é difícil ver que alguns
deles também estão presentes no pensamento daqueles grupos que fazem críticas
cegas à teologia da libertação como um todo: a lógica partidarista, quando se
identifica o cristianismo com a direita e a esquerda com o mal, ou quando se
age a todo momento segundo uma lógica de “nós contra eles”; e o engaiolamento
da fé dentro de um sistema de pensamento a ela estranho – um fenômeno que pode
muito bem ser considerado a raiz de qualquer tipo de deturpação doutrinal.
Por Felipe Koller
[1] https://www.semprefamilia.com.br/acreditamosnoamor/teologia-da-libertacao-oportuna-util-e-necessaria-e-quem-disse-foi-s-joao-paulo-ii/
Komentarze
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Nieustanne potrzeby??? Nieustająca Pomoc!!!
Witamy u Mamy!!!