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Mãe da Amazônia


Mãe da Amazônia: De ingênua explicação humana a uma Mariologia escondida

A designer Lara Denys, autora do ícone de Nossa Senhora do Amazonas (NSA), que foi vencedor do concurso de pinturas realizado sob solicitação da Arquidiocese de Manaus, em 2010, faz uma explicação cheia de significados teológicos, sem nem mesmo ter passado por uma aula desta matéria cientifica.
Ela é uma entre tantos artistas ou iconógrafos que procuram expressar sua fé pela arte.
Não é de agora que isto acontece na história da Igreja. As representações artísticas já provêm do Séc. II nas catacumbas cristãs, onde a Virgem Maria e o menino Jesus são representados. Percebe-se um caminho e uma experiência de fé que vêm de um lar católico. Chama-nos a atenção a presença de elementos importantes de sua apresentação, o que não deixa de ser uma reflexão mariológica, tirada dos aspectos simbólicos que envolvem o ícone por ela criado, com finalidade específica de culto mariano.
Identificação e enculturação
Analisemos sintética e teologicamente o que a artista nos informa:
“Como retrataria uma Nossa Senhora que eu nunca tinha visto e, acima de tudo, uma Nossa Senhora na qual o próprio amazônida conseguisse se reconhecer? Estudei a fisionomia do caboclo amazônico, as poses corporais das imagens de arte sacra, o comportamento e vestuário indígena e suas formas de segurar uma criança. Estudei desde a teoria da cor até a semiótica. Tinha que ser uma expressão reconhecidamente amazônica ao primeiro olhar. E assim a imagem surgiu (1).”
Sem querer, a autora cria o ícone de Nossa Senhora da Amazônia, a pedido da Arquidiocese de Manaus (AM), dentro do tema mariológico da Imaculada Conceição. E não só isto, parece que no subconsciente, a representou sob a enculturação da aparição, no Séc. XVI, de Nossa Senhora de Guadalupe, no México. É clássico sobre a figura impressa na tilma do índio Juan Diego, com características indígenas.
Se tal fato aconteceu em 1531, em nada desmerece o trabalho de Lara Denys, pois ela procura, do melhor modo, dar “forma” ao título proposto pela autoridade eclesiástica, que se sentiu inspirada a dar um novo título a Virgem Maria nas terras do Amazonas.
A identificação com que Lara procura representar o amazônida (aquele que nasceu na região Norte do Brasil), com tez cabocla/ morena/ marrom/ vermelha e aplicá-la à Virgem Maria e à criança em seus braços, nos faz impulsionados a procurar tal identificação, não em aspecto antropológico, mas sim teológico. Só deste modo se pode garantir um título mariano aos moldes da fé católica.
O Brasil é campeão em sincretismos e poucos esclarecimentos aos batizados, isto é, aos que assumiram Cristo como seu único salvador e Redentor. A fé católica não deve ser sincrética, isto é, não deve conter misturas de religiões, que fazem mais confundir a mensagem do Evangelho que esclarecê-la.
Iconografia e Mariologia: um longo caminho
Iniciamos nosso caminho mariológico à luz da Sagrada Escritura. O texto mais adequado à Virgem Indígena, seria Ct 1,5-6: "Sou negra/morena, mas sou bela, filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão. Não repareis em minha tez morena, pois fui queimada pelo sol".
Ora, sobre a cor morena da Esposa do Cântico, que alguns autores eclesiásticos aplicaram à Nossa Senhora e que faz parte de antiga tradição na história mariológica da Igreja, propomos aqui o exemplo luminoso de Tiago de Varagine († 1298), que faz significativa alegoria. Ele diz:
 “Maria foi colorida de negro por causa da humildade. Quanto mais era branca e pura diante de Deus, tanto mais ela se julgava negra em relação a Ele. Frequentemente, de fato, um objeto luminoso produz efeitos escuros, como Agostinho ilustra com três exemplos. O fogo brilhante rende negros os carvões e a sua chama escurece tudo aquilo que chamusca; a prata, que é luzente, marca linhas negras; o óleo reluzente provoca manchas negras. A Bem-aventurada Virgem, embora havendo um fogo esplendoroso, isto é, uma alma iluminada da sabedoria divina; embora havendo a prata luzente, isto é, corpo virginal; embora havendo o óleo reluzente, isto é, a abundância de méritos, sempre se sentia negra e modesta: «Sou morena, mas formosa» (Ct 1,4). Notar que a cor negra chama a atenção e exalta o branco que está perto, e talvez o ilumina, como acontece na pupila que, quando é negra, é mais brilhante do que se fosse branca. O negro da humildade encerra, porém, interiormente todas as virtudes e a graça. (2)”
Originalidade e divindade
Na iconografia de Lara Denys, a enculturação é uma marca registrada, onde se percebe a necessidade de haver uma figura espiritual católica representativa do nativo brasileiro. Com suas semelhanças e diferenças, torna claro que ela parece tornar-se porta-voz de uma região.
A coloração do ícone tem sua originalidade e imitações. No entanto, a aparição guadalupana é chamada em dois modos: La Morenita (A Moreninha) e A Mestiça. É difícil identificar a cor indígena com o moreno ou com o mestiço, pois o índio, por si mesmo, possui uma coloração própria, sempre identificado como «índio». Mas os aborígenes norte-americanos são conhecidos como os «pele vermelha», para os distingui-los dos brancos europeus, coisa que no Brasil colonial não encontramos.
Mas os nossos índios brasileiros eram conhecidos como negros pela tonalidade da cor da pele, como nos afirma Sheila Castro: “Os índios, chamados na época de ‘negros da terra’ ou ‘negros brasis’... ” (3) . No entanto, a coloração indígena brasileira não encontra definições precisas pelos antropólogos ou especialistas no assunto. Contudo, os descobridores chegaram à América e, pensando estarem na Índia, fizeram todos os habitantes das regiões descobertas ficarem conhecidos como «índios», onde foram comparados pela coloração da pele, que se assemelha aos nativos do continente indiano.
A artista, na obra pictórica, tenta dar vida à invocação criada pela Igreja amazonense, trazendo a figura de Maria com as características indígenas, assim como seu filho Jesus. O toque maternal da pintura entra no esquema da arte cristã desde o séc. II, porém a relação de Maria de Nazaré, mesmo que enculturada, vai muito além do que uma maternidade natural. A maternidade divina de Nossa Senhora exerce forte influência na fé católica, pois a Igreja a vê também como Mãe, Esposa e Discípula do Senhor. Esta tríplice vocação (mãe-esposa-discípula) perdura séculos na história da Mariologia, que dá o sentido teológico do serviço de Maria de Nazaré na obra da salvação.
Se os nossos indígenas brasileiros são originais de nômades oriundos do continente asiático, e estes são comumente conhecidos como de «cor amarela», não custa ilustrar a pintura da artista com uma visão bíblica a respeito do Menino. Pois bem, utilizando ainda o Cântico dos Cânticos, os dois personagens são a centralidade da narrativa, o Esposo e a Esposa. A tradição da Igreja, ainda no âmbito teológico-espiritual, aponta para o Esposo como uma prefiguração de Cristo, assim como a Esposa seria a prefiguração da Igreja e de Maria.
No que diz respeito ao “Menino Jesus-índio” nos braços de Maria-índia, utilizamos a exegese bíblica de Susana Aparecida sobre o Ct 5,9-16. A mestranda utiliza a versão da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS), que traduz o texto hebraico dos versículos de 9-10 do seguinte modo:
v. 9a “Que é teu amado mais do que um amado, v. 9b ó mais bela entre as mulheres? v. 9c Que é teu amado mais do que um amado, v. 9d de modo que assim nos fizestes jurar?” v. 10a “Meu amado é claro e corado; v. 10b mais distinto do que dez mil". (5)
Segundo Susana, o texto apresenta as características do Amado com aspectos de beleza e nobreza. Mas tais versículos são repetidos em outras partes das Escrituras quanto à coloração sublinhada, dando a entender a importância dentro do contexto bíblico. No detalhe do Amado ser «rosado», que aparece cerca de oito vezes na BHS (cf. Gn 25,30; Nm 19,2; 2Rs 3,22; Is 63,2; Zc 6,2; Ct 5,10), se nota, segundo a mestranda, uma certa ambiguidade, onde não se esclarece de fato a tez do Amado, se é «rosado ou ruivo». Mas os paralelos bíblicos apontam uma certa importância desta coloração, pela sua beleza e relevância na citação escriturística. No caso de Nm 19,2, no que se refere à novilha vermelha escolhida para o sacrifício, notamos a escolha divina pela característica especial do animal para a oferta do Templo. Tomando este detalhe de Nm 19,2 e o Esposo do Ct, interpretamos a intenção da designer na sua enculturação, que se adapta à importância e valor dados à raça indígena amazônica.
Dito isto, para esta nova devoção mariana, ainda desconhecida em todo o Brasil, Nossa Senhora da Amazônia é uma devoção com sua iconografia bastante significativa, para nos comunicar que a arte procura fazer sua leitura enculturada, mesmo com teor de uma ingenuidade artística, mas que nos informa a contemplação da presença de Cristo e Maria em todas as raças, cores e nações.
Nada mais nobre que a Arquidiocese de Manaus ter dado ao índio a sua face espiritual e imagem e semelhança divinas, sendo eles também criaturas de Deus. Esta raça tão marginalizada e pouco valorizada no Brasil merece, sim, se reconhecer com o toque da graça de Deus.
Dom Rafael Maria Francisco da Silva
Monge beneditino do mosteiro de São Bento de Olinda desde 1981.
Possui doutorado em Teologia com especialização em Mariologia pela Pontifícia Faculdade Teológica MARIANUM de Roma (2008).
Professor da Pós-graduação e Mestrado em Direito na Faculdade Damas em Recife.
Ministra o Curso de Mariologia [Estudos sobre Nossa Senhora] e Cultura Mariológica à Distancia (via internet) pelo site: www.cursoscatolicos.com.br

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