EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
FAMILIARIS CONSORTIO DE SUA SANTIDADE
JOÃO PAULO II AO EPISCOPADO AO CLERO E AOS FIÉIS DE TODA A IGREJA CATÓLICA
SOBRE A FUNÇÃO DA FAMÍLIA CRISTÃ NO MUNDO DE HOJE
JOÃO PAULO II AO EPISCOPADO AO CLERO E AOS FIÉIS DE TODA A IGREJA CATÓLICA
SOBRE A FUNÇÃO DA FAMÍLIA CRISTÃ NO MUNDO DE HOJE
INTRODUÇÃO
A
Igreja ao serviço da família
1.A FAMÍLIA nos tempos
de hoje, tanto e talvez mais que outras instituições, tem sido posta em questão
pelas amplas, profundas e rápidas transformações da sociedade e da cultura.
Muitas famílias vivem esta situação na fidelidade àqueles valores que
constituem o fundamento do instituto familiar. Outras tornaram-se incertas e
perdidas frente a seus deveres, ou ainda mais, duvidosas e quase esquecidas do
significado último e da verdade da vida conjugal e familiar. Outras, por fim,
estão impedidas por variadas situações de injustiça de realizarem os seus
direitos fundamenta.
Consciente de que o
matrimónio e a família constituem um dos bens mais preciosos da humanidade, a
Igreja quer fazer chegar a sua voz e oferecer a sua ajuda a quem, conhecendo já
o valor do matrimónio e da família, procura vivê-lo fielmente, a quem, incerto
e ansioso, anda à procura da verdade e a quem está impedido de viver livremente
o próprio projecto familiar. Sustentando os primeiros, iluminando os segundos e
ajudando os outros, a Igreja oferece o seu serviço a cada homem interessado nos
caminhos do matrimónio e da família (1).
Dirige-se
particularmente aos jovens, que estão para encetar o seu caminho para o
matrimónio e para a família, abrindo-lhes novos horizontes, ajudando-os a
descobrir a beleza e a grandeza da vocação ao amor e ao serviço da vida.
O
Sínodo de 1980 na continuidade dos Sínodos precedentes
2.Um sinal deste
profundo interesse da Igreja pela família foi o último Sínodo dos Bispos
celebrado em Roma de 26 de Setembro a 25 de Outubro de 1980. Este foi uma
continuação natural dos dois precedentes (2): a família cristã, de facto, é a
primeira comunidade chamada a anunciar o Evangelho à pessoa humana em
crescimento e a levá-la, através de uma catequese e educação progressiva, à
plenitude da maturidade humana e cristã.
Mas não só. O recente
Sínodo liga-se também idealmente de alguma forma com os anteriores sobre o
Sacerdócio ministerial e sobre a justiça no mundo contemporâneo. Na verdade,
enquanto comunidade educativa, a família deve ajudar o homem a discernir a
própria vocação e a assumir o empenho necessário para uma maior justiça,
formando-o desde o início, para relações interpessoais, ricas de justiça e de
amor.
Os Padres Sinodais,
como conclusão da última Assembleia, apresentaram-me um amplo elenco de
propostas, que recolhem os frutos das reflexões desenvolvidas no curso de
jornadas de intenso trabalho, e pediram-me com voto unânime fazer-me intérprete
diante da humanidade da viva solicitude da Igreja pela família, e de oferecer
indicações para um renovado empenhamento pastoral neste sector fundamental da
vida humana e eclesial.
Ao cumprir tal tarefa
com a presente Exortação, como uma actuação peculiar do ministério apostólico
que me foi confiado, desejo exprimir a minha gratidão a todos os participantes
no Sínodo pelo contributo precioso de doutrina e de experiência, que puseram à
minha disposição mediante as «Propositiones», cujo texto confio ao Conselho
Pontifício para a Família, dispondo que aprofunde o estudo a fim de valorizar
cada aspecto das riquezas que contém.
O bem
precioso do matrimónio e da família
3.A Igreja,
iluminada pela fé, que lhe faz conhecer toda a verdade sobre o precioso bem do
matrimónio e da família e sobre os seus significados mais profundos, sente mais
uma vez a urgência de anunciar o Evangelho, isto é, a «Boa Nova» a todos
indistintamente, em particular a todos aqueles que são chamados ao matrimónio e
para ele se preparam, a todos os esposos e pais do mundo.
Ela está profundamente
convencida de que só com o acolhimento do Evangelho encontra realização plena
toda a esperança que o homem põe legitimamente no matrimónio e na família.
Queridos por Deus com a
própria criação(3), o matrimónio e a família estão interiormente
ordenados a complementarem-se em Cristo(4) e têm necessidade da sua graça para
serem curados das feridas do pecado(5) e conduzidos ao seu «princípio»(6), isto é, ao conhecimento pleno e à
realização integral do desígnio de Deus.
Num momento histórico
em que a família é alvo de numerosas forças que a procuram destruir ou de
qualquer modo deformar, a Igreja, sabedora de que o bem da sociedade e de si
mesma está profundamente ligado ao bem da família(7), sente de modo mais vivo e veemente a
sua missão de proclamar a todos o desígnio de Deus sobre o matrimónio e sobre a
família, para lhes assegurar a plena vitalidade e promoção humana e cristã,
contribuindo assim para a renovação da sociedade e do próprio Povo de Deus.
PRIMEIRA
PARTE
LUZES
E SOMBRAS DA FAMÍLIA DE HOJE
Necessidade
de conhecer a situação
4.Uma vez que o
desígnio de Deus sobre o matrimónio e sobre a família visa o homem e a mulher
no concreto da sua existência quotidiana, em determinadas situações sociais e
culturais, a Igreja, para cumprir a sua missão, deve esforçar-se por conhecer
as situações em que o matrimónio e a família se encontram hoje(8).
Este conhecimento é,
portanto, uma exigência imprescindível para a obra de evangelização. É na
verdade, às famílias do nosso tempo que a Igreja deve levar o imutável e sempre
novo Evangelho de Jesus Cristo, na forma em que as famílias se encontram
envolvidas nas presentes condições do mundo, chamadas a acolher e a viver o
projecto de Deus que lhes diz respeito. Não só, mas os pedidos e os apelos do
Espírito ressoam também nos acontecimentos da história, e, portanto, a Igreja
pode ser guiada para uma intelecção mais profunda do inexaurível mistério do matrimónio
e da família a partir das situações, perguntas, ansiedades e esperanças dos
jovens, dos esposos e dos pais de hoje(9).
Deve ainda juntar-se a
isto uma reflexão ulterior de particular importância no tempo presente. Não
raramente ao homem e à mulher de hoje, em sincera e profunda procura de uma
resposta aos graves e diários problemas da sua vida matrimonial e familiar, são
oferecidas visões e propostas mesmo sedutoras, mas que comprometem em medida
diversa a verdade e a dignidade da pessoa humana. É uma oferta frequentemente
sustentada pela potente e capilar organização dos meios de comunicação social,
que põem subtilmente em perigo a liberdade e a capacidade de julgar com
objectividade.
Muitos, já cientes
deste perigo em que se encontra a pessoa humana, empenham-se pela verdade. A
Igreja, com o seu discernimento evangélico, une-se a esses, oferecendo-lhes o seu
serviço em prol da verdade, da liberdade e da dignidade de cada homem e de cada
mulher.
O
discernimento evangélico
5. O
discernimento realizado pela Igreja torna-se oferta para orientação que
salvaguarde e realize a inteira verdade e a plena dignidade do matrimónio e da
família.
Este discernimento
atinge-se pelo sentido da fé(10), dom que o Espírito Santo concede a
todos os fiéis, e é, portanto, obra de toda a Igreja(11), segundo a diversidade dos vários dons e
carismas que, ao mesmo tempo e segundo a responsabilidade própria de cada um,
cooperam para uma mais profunda compreensão e actuação da Palavra de Deus. A
Igreja, portanto, não realiza o discernimento evangélico próprio só por meio
dos pastores, os quais ensinam em nome e com o poder de Cristo, mas também por
meio dos leigos: Cristo «constituiu-os testemunhas, e concedeu-lhes o sentido
da fé e o dom da palavra (cfr. Act. 2, 17-18; Apoc. 19,
10) a fim de que a força do Evangelho resplandeça na vida quotidiana, familiar
e social»(12). Os leigos, em razão da sua vocação
particular, têm o dever específico de interpretar à luz de Cristo a história
deste mundo, enquanto são chamados a iluminar e dirigir as realidades temporais
segundo o desígnio de Deus Criador e Redentor.
O «sentido sobrenatural
da fé» (13) não consiste, porém, somente ou
necessariamente no consenso dos fiéis. A Igreja, seguindo a Cristo, procura a
verdade, que nem sempre coincide com a opinião da maioria. Escuta a consciência
e não o poder e nisto defende os pobres e desprezados. A Igreja pode apreciar
também a investigação sociológica e estatística quando se revelar útil para a
compreensão do contexto histórico no qual a acção pastoral deve desenrolar-se e
para conhecer melhor a verdade; tal investigação, porém, não pode ser julgada
por si só como expressão do sentido da fé.
Porque é dever do
ministério apostólico assegurar a permanência da Igreja na verdade de Cristo e
introduzi-la sempre mais profundamente, os Pastores devem promover o sentido da
fé em todos os fiéis, avaliar e julgar com autoridade a genuinidade das suas
expressões, educar os crentes para um discernimento evangélico sempre mais
amadurecido(14).
Para a elaboração de um
autêntico discernimento evangélico nas várias situações e culturas em que o
homem e a mulher vivem o seu matrimónio e a sua vida familiar, os esposos e os
pais cristãos podem e devem oferecer um seu próprio e insubstituível contributo.
A esta tarefa habilita-os o carisma ou dom próprio, o dom do sacramento do
matrimónio(15).
A situação
da família no mundo de hoje
6.A situação em que se
encontra a família apresenta aspectos positivos e aspectos negativos: sinal,
naqueles, da salvação de Cristo operante no mundo; sinal, nestes, da recusa que
o homem faz ao amor de Deus.
Por um lado, de facto,
existe uma consciência mais viva da liberdade pessoal e uma maior atenção à
qualidade das relações interpessoais no matrimónio, à promoção da dignidade da
mulher, à procriação responsável, à educação dos filhos; há, além disso, a
consciência da necessidade de que se desenvolvam relações entre as famílias por
uma ajuda recíproca espiritual e material, a descoberta de novo da missão
eclesial própria da família e da sua responsabilidade na construção de uma
sociedade mais justa. Por outro lado, contudo, não faltam sinais de degradação
preocupante de alguns valores fundamentais: uma errada concepção teórica e
prática da independência dos cônjuges entre si; as graves ambiguidades acerca
da relação de autoridade entre pais e filhos; as dificuldades concretas, que a
família muitas vezes experimenta na transmissão dos valores; o número crescente
dos divórcios; a praga do aborto; o recurso cada vez mais frequente à
esterilização; a instauração de uma verdadeira e própria mentalidade
contraceptiva.
Na raiz destes fenómenos
negativos está muitas vezes uma corrupção da ideia e da experiência de
liberdade concebida não como capacidade de realizar a verdade do projecto de
Deus sobre o matrimónio e a família, mas como força autónoma de afirmação, não
raramente contra os outros, para o próprio bem-estar egoístico.
Merece também a nossa
atenção o facto de que, nos países do assim chamado Terceiro Mundo, faltem
muitas vezes às famílias quer os meios fundamentais para a sobrevivência, como
o alimento, o trabalho, a habitação, os medicamentos, quer as mais elementares
liberdades. Nos países mais ricos, pelo contrário, o bem-estar excessivo e a
mentalidade consumística, paradoxalmente unida a uma certa angústia e incerteza
sobre o futuro, roubam aos esposos a generosidade e a coragem de suscitarem
novas vidas humanas: assim a vida é muitas vezes entendida não como uma bênção,
mas como um perigo de que é preciso defender-se.
A situação histórica em
que vive a família apresenta-se, portanto, como um conjunto de luzes e sombras.
Isto revela que a
história não é simplesmente um progresso necessário para o melhor, mas antes um
acontecimento de liberdade, e ainda um combate entre liberdades que se opõem
entre si; segundo a conhecida expressão de Santo Agostinho, um conflito entre
dois amores: o amor de Deus impelido até ao desprezo de si, e o amor de si
impelido até ao desprezo de Deus(16).
Segue-se que só a
educação para o amor, radicada na fé, pode levar a adquirir a capacidade de
interpretar «os sinais dos tempos», que são a expressão histórica deste duplo
amor.
O
influxo da situação na consciência dos fiéis
7. Vivendo em tal
mundo, sob pressões derivadas sobretudo dos mass-media, nem sempre os fiéis
souberam e sabem manter-se imunes diante do obscurecimento dos valores
fundamentais e pôr-se como consciência crítica desta cultura familiar e como
sujeitos activos da construção de um humanismo familiar autêntico.
Entre os sinais mais
preocupantes deste fenómeno, os Padres Sinodais sublinharam, em particular, o
difundir-se do divórcio e do recurso a uma nova união por parte dos mesmos
fiéis; a aceitação do matrimónio meramente civil, em contradição com a vocação
dos baptizados «a casarem-se no Senhor»; a celebração do sacramento do
matrimónio sem uma fé viva, mas por outros motivos; a recusa das normas morais
que guiam e promovem o exercício humano e cristão da sexualidade no matrimónio.
A
nossa época tem necessidade de sabedoria
8. Põe-se assim a
toda a Igreja o dever de uma reflexão e de um empenho bastante profundo, para
que a nova cultura emergente seja intimamente evangelizada, sejam reconhecidos
os verdadeiros valores, sejam defendidos os direitos do homem e da mulher e
seja promovida a justiça também nas estruturas da sociedade. Em tal modo o
«novo humanismo» não afastará os homens da sua relação com Deus, mas
conduzi-los-á para Ele mais plenamente.
Na construção de tal
humanismo, a ciência e as suas aplicações técnicas oferecem novas e imensas
possibilidades. Todavia, a ciência, em consequência de posições políticas que
decidem a direcção de investigações e aplicações, é muitas vezes usada contra o
seu significado originário, a promoção da pessoa humana.
Torna-se, portanto,
necessário recuperar por par te de todos a consciência do primado dos valores
morais, que são os valores da pessoa humana como tal. A nova compreensão do
sentido último da vida e dos seus valores fundamentais é a grande tarefa que se
impõe hoje para a renovação da sociedade. Só a consciência do primado destes
valores consente um uso das imensas possibilidades colocadas nas mãos do homem
pela ciência, que vise verdadeiramente a promoção da pessoa humana na sua
verdade integral, na sua liberdade e dignidade. A ciência é chamada a juntar-se
à sabedoria.
Podem aplicar-se aos
problemas da família as palavras do Concílio Vaticano II: «Mais do que os
séculos passados, o nosso tempo precisa de uma tal sabedoria, para que se
humanizem as novas descobertas dos homens. Está ameaçado, com efeito, o destino
do mundo, se não surgirem homens cheios de sabedoria»(17).
A educação da
consciência moral, que faz o homem capaz de julgar e discernir os modos aptos
para a sua realização segundo a verdade originária, torna-se assim uma
exigência prioritária e irrenunciável.
É a aliança com a
sabedoria divina que deve ser mais profundamente reconstituída na cultura
moderna. De tal Sabedoria cada homem foi feito participante pelo mesmo gesto
criador de Deus. E é só na fidelidade a esta aliança que as famílias de hoje
estarão em grau de influenciar positivamente na construção de um mundo mais
justo e fraterno.
Gradualidade
e conversão
9. Todos devemos
opor-nos com uma conversão da mente e do coração, seguindo a Cristo
Crucificado, no dizer não ao próprio egoísmo, à injustiça originada pelo pecado
- profundamente penetrado também nas estruturas do mundo de hoje - e que muitas
vezes obsta a família na plena realização de si mesma e dos seus direitos
fundamentais. Uma semelhante conversão não poderá deixar de ter influência
benéfica e renovadora mesmo sobre as estruturas da sociedade.
É pedida uma conversão
contínua, permanente, que, embora exigindo o afastamento interior de todo o mal
e a adesão ao bem na sua plenitude, se actua concretamente em passos que
conduzem sempre para além dela. Desenvolve-se assim um processo dinâmico, que
avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus e das
exigências do seu amor definitivo e absoluto em toda a vida pessoal e social do
homem. É, por isso, necessário um caminho pedagógico de crescimento, a fim de que
os fiéis, as famílias e os povos, antes, a própria civilização, daquilo que já
receberam do Mistério de Cristo, possam ser conduzidos pacientemente mais além,
atingindo um conhecimento mais rico e uma integração mais plena deste mistério
na sua vida.
«Inculturação»
10. É de facto
conforme à tradição constante da Igreja recolher das culturas dos povos tudo
aquilo que é em grau de exprimir melhor as inexauríveis riquezas de Cristo(18). Só com o concurso de todas as
culturas, tais riquezas poderão manifestar-se sempre mais claramente e a Igreja
poderá caminhar para um conhecimento cada dia mais completo e aprofundado da
verdade, que já lhe foi inteiramente oferecida pelo seu Senhor.
Tendo firme o duplo
princípio da compatibilidade das várias culturas a assumir com o Evangelho e da
comunhão com a Igreja universal, deverá prosseguir-se no estudo -
particularmente por parte das Conferências episcopais e dos Dicastérios
competentes da Cúria Romana - e no empenhamento pastoral para que esta
«inculturação» da fé cristã se realize sempre mais amplamente também no âmbito
do matrimónio e da família.
É mediante a «inculturação»
que se caminha para a reconstituição plena da aliança com a Sabedoria de Deus,
que é o próprio Cristo. A Igreja inteira será enriquecida também por aquelas
culturas que, embora carentes de tecnologia, são ricas em sabedoria humana e
vivificadas por profundos valores morais.
Para que seja clara a
meta deste caminho e, por conseguinte, seguramente indicada a estrada, o
Sínodo, em primeiro lugar e em profundidade considerou justamente o projecto
originário de Deus acerca do matrimónio e da família: quis «retornar ao
princípio» em obséquio ao ensinamento de Cristo(19).
SEGUNDA PARTE
O DESÍGNIO DE DEUS
SOBRE O MATRIMÓNIO E SOBRE A FAMÍLIA
O homem
imagem de Deus Amor
11. Deus criou o
homem à sua imagem e semelhança(20): chamando-o à existência por
amor, chamou-o ao mesmo tempo ao amor.
Deus é amor(21) e vive em si mesmo um mistério de
comunhão pessoal de amor. Criando-a à sua imagem e conservando-a continuamente
no ser, Deus inscreve na humanidade do homem e da mulher a vocação, e, assim, a
capacidade e a responsabilidade do amor e da comunhão(22). O amor é, portanto, a fundamental e
originária vocação do ser humano.
Enquanto espírito
encarnado, isto é, alma que se exprime no corpo informado por um espírito
imortal, o homem é chamado ao amor nesta sua totalidade unificada. O amor
abraça também o corpo humano e o corpo torna-se participante do amor
espiritual.
A Revelação cristã
conhece dois modos específicos de realizar a vocação da pessoa humana na sua
totalidade ao amor: o Matrimónio e a Virgindade. Quer um quer outro, na sua
respectiva forma própria, são uma concretização da verdade mais profunda do
homem, do seu «ser à imagem de Deus».
Por consequência a sexualidade,
mediante a qual o homem e a mulher se doam um ao outro com os actos próprios e
exclusivos dos esposos, não é em absoluto algo puramente biológico, mas diz
respeito ao núcleo íntimo da pessoa humana como tal. Esta realiza-se de maneira
verdadeiramente humana, somente se é parte integral do amor com o qual homem e
mulher se empenham totalmente um para com o outro até à morte. A doação física
total seria falsa se não fosse sinal e fruto da doação pessoal total, na qual
toda a pessoa, mesmo na sua dimensão temporal, está presente: se a pessoa se
reservasse alguma coisa ou a possibilidade de decidir de modo diferente para o
futuro, só por isto já não se doaria totalmente.
Esta totalidade, pedida
pelo amor conjugal, corresponde também às exigências de uma fecundidade
responsável, que, orientada como está para a geração de um ser humano, supera,
por sua própria natureza, a ordem puramente biológica, e abarca um conjunto de
valores pessoais, para cujo crescimento harmonioso é necessário o estável e concorde
contributo dos pais.
O «lugar» único, que
torna possível esta doação segundo a sua verdade total, é o matrimónio, ou seja
o pacto de amor conjugal ou escolha consciente e livre, com a qual o homem e a
mulher recebem a comunidade íntima de vida e de amor, querida pelo próprio Deus(23) que só a esta luz manifesta o seu
verdadeiro significado. A instituição matrimonial não é uma ingerência indevida
da sociedade ou da autoridade, nem a imposição extrínseca de uma forma, mas uma
exigência interior do pacto de amor conjugal que publicamente se afirma como
único e exclusivo, para que seja vivida assim a plena fidelidade ao desígnio de
Deus Criador. Longe de mortificar a liberdade da pessoa, esta fidelidade põe-na
em segurança em relação ao subjectivismo e relativismo, fá-la participante da
Sabedoria Criadora.
O
matrimónio e a comunhão entre Deus e
os homens
12. A comunhão de amor
entre Deus e os homens, conteúdo fundamental da Revelação e da experiência de
fé de Israel, encontra uma sua significativa expressão na aliança nupcial, que
se instaura entre o homem e a mulher.
É por isto que a
palavra central da Revelação, «Deus ama o seu povo», é também pronunciada
através das palavras vivas e concretas com que o homem e a mulher se declaram o
seu amor conjugal. O seu vínculo de amor torna-se a imagem e o símbolo da
Aliança que une Deus e o seu povo(24). E o mesmo pecado, que pode ferir o
pacto conjugal, torna-se imagem da infidelidade do povo para com o seu Deus: a
idolatria é prostituição(25), a infidelidade é adultério, a
desobediência à lei é abandono do amor nupcial para com o Senhor. Mas a
infidelidade de Israel não destrói a fidelidade eterna do Senhor e, portanto, o
amor sempre fiel de Deus põe-se como exemplar das relações do amor fiel que
devem existir entre os esposos(26).
Jesus
Cristo, esposo da Igreja, e o sacramento
do matrimónio
13. A comunhão entre
Deus e os homens encontra o seu definitivo cumprimento em Jesus Cristo, o Esposo
que ama e se doa como Salvador da humanidade, unindo-a a Si como seu corpo.
Ele revela a verdade
originária do matrimónio, a verdade do «princípio»(27) e, libertando o homem da dureza do seu
coração, torna-o capaz de a realizar inteiramente.
Esta revelação chega à
sua definitiva plenitude no dom do amor que o Verbo de Deus faz à humanidade,
assumindo a natureza humana, e no sacrifício que Jesus Cristo faz de si mesmo
sobre a cruz pela sua Esposa, a Igreja. Neste sacrifício descobre-se
inteiramente aquele desígnio que Deus imprimiu na humanidade do homem e da
mulher, desde a sua criação(28); o matrimónio dos baptizados torna-se
assim o símbolo real da Nova e Eterna Aliança, decretada no Sangue de Cristo. O
Espírito, que o Senhor infunde, doa um coração novo e torna o homem e a mulher
capazes de se amarem, como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge aquela
plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal, que é o
modo próprio e específico com que os esposos participam e são chamados a viver
a mesma caridade de Cristo que se doa sobre a Cruz.
Numa página
merecidamente famosa, Tertuliano exprimia bem a grandeza e a beleza desta vida
conjugal em Cristo: «Donde me será dado expor a felicidade do matrimónio unido
pela Igreja, confirmado pela oblação eucarística, selado pela bênção, que os
anjos anunciam e o Pai ratifica? ... Qual jugo aquele de dois fiéis numa única
esperança, numa única observância, numa única servidão! São irmãos e servem
conjuntamente sem divisão quanto ao espírito, quanto à carne. Mais, são
verdadeiramente dois numa só carne e donde a carne é única, único é o espírito»(29).
Acolhendo e meditando
fielmente a Palavra de Deus, a Igreja tem solenemente ensinado e ensina que o
matrimónio dos baptizados é um dos sete sacramentos da Nova Aliança(30).
De facto, mediante o
baptismo, o homem e a mulher estão definitivamente inseridos na Nova e Eterna
Aliança, na Aliança nupcial de Cristo com a Igreja. E é em razão desta
indestrutível inserção que a íntima comunidade de vida e de amor conjugal,
fundada pelo Criador(31), é elevada e assumida pela caridade
nupcial de Cristo, sustentada e enriquecida pela sua força redentora.
Em virtude da
sacramentalidade do seu matrimónio, os esposos estão vinculados um ao outro da
maneira mais profundamente indissolúvel. A sua pertença recíproca é a
representação real, através do sinal sacramental, da mesma relação de Cristo
com a Igreja.
Os esposos são portanto
para a Igreja o chamamento permanente daquilo que aconteceu sobre a Cruz; são
um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação da qual o sacramento
os faz participar. Deste acontecimento de salvação, o matrimónio como cada
sacramento, é memorial, actualização e profecia: «Enquanto memorial, o
sacramento dá-lhes a graça e o dever de recordar as grandes obras de Deus e de
as testemunhar aos filhos; enquanto actualização, dá-lhes a graça e o dever de
realizar no presente, um para com o outro e para com os filhos, as exigências
de um amor que perdoa e que redime; enquanto profecia dá-lhes a graça e o dever
de viver e de testemunhar a esperança do futuro encontro com Cristo»(32).
Como cada um dos sete
sacramentos, também o matrimónio é um símbolo real do acontecimento da
salvação, mas de um modo próprio. «Os esposos participam nele enquanto esposos,
a dois como casal, a tal ponto que o efeito primeiro e imediato do matrimónio (res
et sacramentum) não é a graça sacramental propriamente, mas o
vínculo conjugal cristão, uma comunhão a dois tipicamente cristã porque
representa o mistério da Encarnação de Cristo e o seu Mistério de Aliança. E o
conteúdo da participação na vida de Cristo é também específico: o amor conjugal
comporta uma totalidade na qual entram todos os componentes da pessoa - chamada
do corpo e do instinto, força do sentimento e da afectividade, aspiração do
espírito e da vontade - ; o amor conjugal dirige-se a uma unidade profundamente
pessoal, aquela que, para além da união numa só carne, não conduz senão a um só
coração e a uma só alma; ele exige a indissolubilidade e a fidelidade da doação
recíproca definitiva e abre-se à fecundidade (cfr. Encíclica Humanae Vitae, n. 9). Numa palavra, trata-se de
características normais do amor conjugal natural, mas com um significado novo
que não só as purifica e as consolida, mas eleva-as a ponto de as tornar a
expressão dos valores propriamente cristãos»(33).
Os
filhos, dom preciosíssimo do matrimónio
14. Segundo o desígnio
de Deus, o matrimónio é o fundamento da mais ampla comunidade da família, pois
que o próprio instituto do matrimónio e o amor conjugal se ordenam à procriação
e educação da prole, na qual encontram a sua coroação(34).
Na sua realidade mais
profunda, o amor é essencialmente dom e o amor conjugal, enquanto conduz os
esposos ao «conhecimento» recíproco que os torna «uma só carne»(35), não se esgota no interior do próprio
casal, já que os habilita para a máxima doação possível, pela qual se tornam
cooperadores com Deus no dom da vida a uma nova pessoa humana. Deste modo os
cônjuges, enquanto se doam entre si, doam para além de si mesmo a realidade do
filho, reflexo vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese
viva e indissociável do ser pai e mãe.
Tornando-se pais, os
esposos recebem de Deus o dom de uma nova responsabilidade. O seu amor paternal
é chamado a tornar-se para os filhos o sinal visível do próprio amor de Deus,
«do qual deriva toda a paternidade no céu e na terra»(36).
Não deve todavia
esquecer-se que, mesmo quando a procriação não é possível, nem por isso a vida
conjugal perde o seu valor. A esterilidade física, de facto, pode ser para os
esposos ocasião de outros serviços importantes à vida da pessoa humana, como
por exemplo a adopção, as várias formas de obras educativas, a ajuda a outras
famílias, às crianças pobres ou deficientes.
A
família, comunhão de pessoas
15. No matrimónio e na
família constitui-se um complexo de relações interpessoais - vida conjugal,
paternidade-maternidade, filiação, fraternidade - mediante as quais cada pessoa
humana é introduzida na «família humana» e na «família de Deus», que é a
Igreja.
O matrimónio e a
família dos cristãos edificam a Igreja: na família, de facto, a pessoa humana
não só é gerada e progressivamente introduzida, mediante a educação, na
comunidade humana, mas mediante a regeneração do baptismo e a educação na fé, é
introduzida também na família de Deus, que é a Igreja.
A família humana,
desagregada pelo pecado, é reconstituída na sua unidade pela força redentora da
morte e ressurreição de Cristo(37). O matrimónio cristão, partícipe da
eficácia salvífica deste acontecimento, constitui o lugar natural onde se
cumpre a inserção da pessoa humana na grande família da Igreja.
O mandato de crescer e
de multiplicar-se, dirigido desde o princípio ao homem e à mulher, atinge desta
maneira a sua plena verdade e a sua integral realização.
A Igreja encontra assim
na família, nascida do sacramento, o seu berço e o lugar onde pode actuar a
própria inserção nas gerações humanas, e estas, reciprocamente, na Igreja.
Matrimónio
e virgindade
16. A virgindade e o
celibato pelo Reino de Deus não só não contradizem a dignidade do matrimónio,
mas a pressupõem e confirmam. O matrimónio e a virgindade são os dois modos de
exprimir e de viver o único Mistério da Aliança de Deus com o seu povo. Quando
não se tem apreço pelo matrimónio, não tem lugar a virgindade consagrada;
quando a sexualidade humana não é considerada um grande valor dado pelo
Criador, perde significado a renúncia pelo Reino dos Céus.
De modo muito justo diz
S. João Crisóstomo: «Quem condena o matrimónio, priva a virgindade da sua
glória; pelo contrário, quem o louva, torna a virgindade mais admirável e
esplendente. O que parece um bem apenas quando comparado ao mal, não é pois um
grande bem; mas o que é melhor do que aquilo que todos consideram bom, é
certamente um bem em grau superlativo»(38).
Na virgindade o homem
está inclusive corporalmente em atitude de espera, pelas núpcias escatológicas
de Cristo com a Igreja, dando-se integralmente à Igreja na esperança de que
Cristo se lhe doe na plena verdade da vida eterna. A pessoa virgem antecipa
assim na sua carne o mundo novo da ressurreição futura(39).
Por força deste
testemunho, a virgindade mantém viva na Igreja a consciência do mistério do
matrimónio e defende-o de todo o desvio e de todo o empobrecimento.
Tornando livre de um
modo especial o coração humano(40), «de forma a inebriá-lo muito mais de
caridade para com Deus e para com todos os homens»(41), a virgindade testemunha que o Reino de
Deus e a sua justiça são aquela pérola preciosa que é preferida a qualquer
outro valor, mesmo que seja grande, e, mais ainda, é procurada como o único
valor definitivo. É por isso que a Igreja, durante toda a sua história,
defendeu sempre a superioridade deste carisma no confronto com o do matrimónio,
em razão do laço singular que ele tem com o Reino de Deus(42).
Embora tendo renunciado
à fecundidade física, a pessoa virgem torna-se espiritualmente fecunda, pai e
mãe de muitos, cooperando na realização da família segundo o desígnio de Deus.
Os esposos cristãos têm
portanto o direito de esperar das pessoas virgens o bom exemplo e o testemunho
da fidelidade à sua vocação até à morte. Como para os esposos a fidelidade se
torna às vezes difícil e exige sacrifício, mortificação e renúncia, também o
mesmo pode acontecer às pessoas virgens. A fidelidade destas, mesmo na provação
eventual, deve edificar a fidelidade daqueles(43).
Estas reflexões sobre a
virgindade podem iluminar e ajudar os que, por motivos independentes da sua
vontade, não se puderam casar e depois aceitaram a sua situação em espírito de
serviço.
TERCEIRA
PARTE
OS
DEVERES DA FAMÍLIA CRISTÃ
Família,
torna-te aquilo que és!
17. No plano de
Deus Criador e Redentor a família descobre não só a sua «identidade», o que
«é», mas também a sua «missão», o que ela pode e deve «fazer». As tarefas, que
a família é chamada por Deus a desenvolver na história, brotam do seu próprio
ser e representam o seu desenvolvimento dinâmico e existencial. Cada família
descobre e encontra em si mesma o apelo inextinguível, que ao mesmo tempo
define a sua dignidade e a sua responsabilidade: família, «torna-te aquilo que
és»!
Voltar ao «princípio»
do gesto criativo de Deus é então uma necessidade para a família, se se quiser
conhecer e realizar segundo a verdade interior não só do seu ser mas também do
seu agir histórico. E porque, segundo o plano de Deus, é constituída qual
«íntima comunidade de vida e de amor»(44), a família tem a missão de se tornar
cada vez mais aquilo que é, ou seja, comunidade de vida e de amor, numa tensão
que, como para cada realidade criada e redimida, encontrará a plenitude no
Reino de Deus. E numa perspectiva que atinge as próprias raízes da realidade,
deve dizer-se que a essência e os deveres da família são, em última análise,
definidos pelo amor. Por isto é-lhe confiada a missão de guardar,
revelar e comunicar o amor, qual reflexo vivo e participação real do amor
de Deus pela humanidade e do amor de Cristo pela Igreja, sua esposa.
Cada dever particular
da família é a expressão e a actuação concreta de tal missão fundamental. É
necessário, portanto, penetrar mais profundamente na riqueza singular da missão
da família e sondar os seus conteúdos numerosos e unitários.
Em tal sentido,
partindo do amor e em permanente referência a ele, o recente Sínodo pôs em
evidência quatro deveres gerais da família:
1) a formação de uma
comunidade de pessoas;
2) o serviço à
vida;
3) a participação no
desenvolvimento da sociedade;
4) a participação na
vida e na missão da Igreja.
I - A FORMAÇÃO DE UMA
COMUNIDADE DE PESSOAS
O
amor, princípio e força de
comunhão
18. A família, fundada
e vivificada pelo amor, é uma comunidade de pessoas: dos esposos, homem e
mulher, dos pais e dos filhos, dos parentes. A sua primeira tarefa é a de viver
fielmente a realidade da comunhão num constante empenho por fazer crescer uma
autêntica comunidade de pessoas.
O princípio interior, a
força permanente e a meta última de tal dever é o amor: como, sem o amor, a
família não é uma comunidade de pessoas, assim, sem o amor, a família
não pode viver, crescer e aperfeiçoar-se como comunidade de pessoas. Quanto
escrevi na Encíclica Redemptor Hominis encontra,
exactamente na família como tal, a sua aplicação originária e privilegiada: «O
homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser
incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o
amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e se não o torna
algo próprio, se nele não participa vivamente»(45).
O amor entre o homem e
a mulher no matrimónio e, de forma derivada e ampla, o amor entre os membros da
mesma família - entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e
familiares - é animado e impelido por um dinamismo interior e incessante, que
conduz a família a uma comunhão sempre mais profunda e
intensa, fundamento e alma dacomunidade conjugal e familiar.
A
unidade indivisível da comunhão conjugal
19. A primeira comunhão
é a que se instaura e desenvolve entre os cônjuges: em virtude do pacto de amor
conjugal, o homem e a mulher «já não são dois, mas uma só carne»(46) e são chamados a crescer continuamente
nesta comunhão através da fidelidade quotidiana à promessa matrimonial do
recíproco dom total.
Esta comunhão conjugal
radica-se na complementariedade natural que existe entre o homem e a mulher e
alimenta-se mediante a vontade pessoal dos esposos de condividir, num projecto
de vida integral, o que têm e o que são: por isso, tal comunhão é fruto e sinal
de uma exigência profundamente humana. Porém, em Cristo, Deus assume esta
exigência humana, confirma-a, purifica-a e eleva-a, conduzindo-a à perfeição
com o sacramento do matrimónio: o Espírito Santo infuso na celebração
sacramental oferece aos esposos cristãos o dom de uma comunidade nova, de amor,
que é a imagem viva e real daquela unidade singularíssima, que torna a Igreja o
indivisível Corpo Místico do Senhor.
O dom do Espírito é um
mandamento de vida para os esposos cristãos e, ao mesmo tempo, impulso
estimulante a que progridam continuamente numa união cada vez mais rica a todos
os níveis - dos corpos, dos caracteres, dos corações, das inteligências e das
vontades, das almas(47) - revelando deste modo à Igreja e ao
mundo a nova comunhão de amor, doada pela graça de Cristo.
A poligamia contradiz
radicalmente uma tal comunhão. Nega de facto, directamente o plano de Deus como
nos foi revelado nas origens, porque contrária à igual dignidade pessoal entre
o homem e a mulher, que no matrimónio se doam com um amor total e por isso
mesmo único e exclusivo. Como escreve o Concílio Vaticano II: «A unidade do
matrimónio, confirmado pelo Senhor, manifesta-se também claramente na igual
dignidade pessoal da mulher e do homem que se deve reconhecer no mútuo e pleno
amor»(48).
Uma
comunhão indissolúvel
20. A comunhão conjugal
caracteriza-se não só pela unidade mas também pela sua indissolubilidade: «Esta
união íntima, já que é dom recíproco de duas pessoas, exige, do mesmo modo que
o bem dos filhos, a inteira fidelidade dos cônjuges e a indissolubilidade da
sua união»(49).
É dever fundamental da
Igreja reafirmar vigorosamente - como fizeram os Padres do Sínodo - a doutrina
da indissolubilidade do matrimónio: a quantos, nos nossos dias, consideram
difícil ou mesmo impossível ligar-se a uma pessoa por toda a vida e a quantos,
subvertidos por uma cultura que rejeita a indissolubilidade matrimonial e que
ridiculariza abertamente o empenho de fidelidade dos esposos, é necessário
reafirmar o alegre anúncio da forma definitiva daquele amor conjugal, que tem
em Jesus Cristo o fundamento e o vigor(50).
Radicada na doação
pessoal e total dos cônjuges e exigida pelo bem dos filhos, a indissolubilidade
do matrimónio encontra a sua verdade última no desígnio que Deus manifestou na
Revelação: Ele quer e concede a indissolubilidade matrimonial como fruto, sinal
e exigência do amor absolutamente fiel que Deus Pai manifesta pelo homem e que
Cristo vive para com a Igreja.
Cristo renova o desígnio
primitivo que o Criador inscreveu no coração do homem e da mulher, e, na
celebração do sacramento do matrimónio, oferece um «coração novo»: assim os
cônjuges podem não só superar a «dureza do coração»(51), mas também e sobretudo compartir o
amor pleno e definitivo de Cristo, nova e eterna Aliança feita carne. Assim
como o Senhor Jesus é a «testemunha fiel»(52), é o «sim» das promessas de Deus(53) e, portanto, a realização suprema da
fidelidade incondicional com que Deus ama o seu povo, da mesma forma os
cônjuges cristãos são chamados a uma participação real na indissolubilidade
irrevogável, que liga Cristo à Igreja, sua esposa, por Ele amada até ao fim(54).
O dom do sacramento é,
ao mesmo tempo, vocação e dever dos esposos cristãos, para que permaneçam fiéis
um ao outro para sempre, para além de todas as provas e dificuldades, em
generosa obediência à santa vontade do Senhor: «O que Deus uniu, não o separe o
homem»(55).
Testemunhar o valor
inestimável da indissolubilidade e da fidelidade matrimonial é uma das tarefas
mais preciosas e mais urgentes dos casais cristãos do nosso tempo. Por isso,
juntamente com todos os Irmãos que participaram no Sínodo dos Bispos, louvo e
encorajo os numerosos casais que, embora encontrando não pequenas dificuldades,
conservam e desenvolvem o dom da indissolubilidade: cumprem desta maneira, de
um modo humilde e corajoso, o dever que lhes foi confiado de ser no mundo um
«sinal» - pequeno e precioso sinal, submetido também às vezes à tentação, mas
sempre renovado - da fidelidade infatigável com que Deus e Jesus Cristo amam
todos os homens e cada homem. Mas é também imperioso reconhecer o valor do
testemunho daqueles cônjuges que, embora tendo sido abandonados pelo consorte,
com a força da fé e da esperança cristãs, não contraíram uma nova união. Estes
cônjuges dão também um autêntico testemunho de fidelidade, de que tanto
necessita o mundo de hoje. Por isto mesmo devem ser encorajados e ajudados
pelos pastores e pelos fiéis da Igreja.
A
comunhão mais ampla da família
21. A comunhão conjugal
constitui o fundamento sobre o qual se continua a edificar a mais ampla
comunhão da família: dos pais e dos filhos, dos irmãos e das irmãs entre si,
dos parentes e de outros familiares.
Tal comunhão radica-se
nos laços naturais da carne e do sangue, e desenvolve-se encontrando o seu
aperfeiçoamento propriamente humano na instauração e maturação dos laços ainda
mais profundos e ricos do espírito: o amor, que anima as relações interpessoais
dos diversos membros da família, constitui a força interior que plasma e vivifica
a comunhão e a comunidade familiar.
A família cristã é,
portanto, chamada a fazer a experiência de uma comunhão nova e original, que
confirma e aperfeiçoa a comunhão natural e humana. Na realidade, a graça de
Jesus Cristo, «o Primogénito entre muitos irmãos»(56), é por sua natureza e dinamismo
interior uma «graça de fraternidade» como a chama Santo Tomás de Aquino(57). O Espírito Santo, que se infunde na
celebração dos sacramentos, é a raiz viva e o alimento inexaurível da comunhão
sobrenatural que estreita e vincula os crentes com Cristo, na unidade da Igreja
de Deus. Uma revelação e actuação específica da comunhão eclesial é constituída
pela família cristã que também, por isto, se pode e deve chamar «Igreja doméstica»(58).
Todos os membros da
família, cada um segundo o dom que lhe é peculiar, possuem a graça e a
responsabilidade de construir, dia após dia, a comunhão de pessoas, fazendo da
família uma «escola de humanismo mais completo e mais rico»(59): é o que vemos surgir com o cuidado e o
amor para com os mais pequenos, os doentes e os anciãos; com o serviço
recíproco de todos os dias; com a co-participação nos bens, nas alegrias e nos
sofrimentos.
Um momento fundamental
para construir uma comunhão semelhante é constituído pelo intercambio educativo
entre pais e filhos(60), no qual cada um deles dá e recebe.
Mediante o amor, o respeito, a obediência aos pais, os filhos dão o seu
contributo específico e insubstituível para a edificação de uma família
autenticamente humana e cristã(61). Isso ser-lhe-á facilitado, se os pais
exercerem a sua autoridade irrenunciável como um «ministério» verdadeiro e
pessoal, ou seja, como um serviço ordenado ao bem humano e cristão dos filhos,
ordenado particularmente a proporcionar-lhes uma liberdade verdadeiramente
responsável; e se os pais mantiverem viva a consciência do «dom» que recebem
continuamente dos filhos.
A comunhão familiar só
pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito de sacrifício. Exige, de
facto, de todos e de cada um, pronta e generosa disponibilidade à compreensão,
à tolerância, ao perdão, à reconciliação. Nenhuma família ignora como o
egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos agridem, de forma violenta e às
vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e variadas formas de divisão da
vida familiar. Mas, ao mesmo tempo, cada família é sempre chamada pelo Deus da
paz a fazer a experiência alegre e renovadora da «reconciliação», ou seja, da
comunhão restabelecida, da unidade reencontrada Em particular a participação no
sacramento da reconciliação e no banquete do único Corpo de Cristo oferece à
família cristã a graça e a responsabilidade de superar todas as divisões e de
caminhar para a plena verdade querida por Deus, respondendo assim ao vivíssimo
desejo do Senhor: que «todos sejam um»(62).
Direitos
e função da mulher
22. Enquanto é, e
deve tornar-se, comunhão e comunidade de pessoas, a família encontra no amor a
fonte e o estímulo incessante para acolher, respeitar e promover cada um dos
seus membros na altíssima dignidade de pessoas, isto é, de imagens vivas de
Deus. Como justamente afirmaram os Padres Sinodais, o critério moral da
autenticidade das relações conjugais e familiares consiste na promoção da
dignidade e vocação de cada uma das pessoas que encontram a sua plenitude
mediante o dom sincero de si mesmas(63).
Nesta perspectiva, o
Sínodo quis prestar atenção privilegiada à mulher, aos seus direitos e função
na família e na sociedade. Nesta mesma perspectiva devem considerar-se também o
homem como esposo e pai, a criança e os anciãos.
É de ressaltar-se antes
de tudo a igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem: tal
igualdade encontra uma forma singular de realização na doação recíproca de si
ao outro e de ambos aos filhos, doação que é específica do matrimónio e da
família. Tudo o que a razão intui e reconhece, vem revelado plenamente pela
Palavra de Deus: a história da salvação é, de facto, um contínuo e claro
testemunho da dignidade da mulher.
Ao criar o homem «varão
e mulher»(64), Deus dá a dignidade pessoal de igual
modo ao homem e à mulher, enriquecendo-os dos direitos inalienáveis e das
responsabilidades que são próprias da pessoa humana. Deus manifesta ainda na
forma mais elevada possível a dignidade da mulher, ao assumir Ele mesmo a carne
humana da Virgem Maria, que a Igreja honra como Mãe de Deus, chamando-a nova
Eva e propondo-a como modelo da mulher redimida. O delicado respeito de Jesus
para com as mulheres a quem chamou ao seu séquito e amizade, a aparição na
manhã da Páscoa a uma mulher antes que aos discípulos, a missão confiada às
mulheres de levar a boa nova da Ressurreição aos apóstolos, são tudo sinais que
confirmam a especial estima de Jesus para com a mulher. Dirá o Apóstolo Paulo:
«Porque todos vós sois filhos de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo ... Não há
judeu nem grego; não há servo nem livre; não há homem nem mulher, pois todos
vós sois um só em Cristo Jesus»(65).
A
mulher e a sociedade
23. Sem entrar agora a
tratar nos seus vários aspectos o amplo e complexo tema das relações
mulher-sociedade, mas limitando estas considerações a alguns pontos essenciais,
não se pode deixar de observar como, no campo mais especificamente familiar,
uma ampla e difundida tradição social e cultural tenha pretendido confiar à
mulher só a tarefa de esposa e mãe, sem a estender adequadamente às funções
públicas, em geral, reservadas ao homem.
Não há dúvida que a
igual dignidade e responsabilidade do homem e da mulher justificam plenamente o
acesso da mulher às tarefas públicas. Por outro lado, a verdadeira promoção da
mulher exige também que seja claramente reconhecido o valor da sua função
materna e familiar em confronto com todas as outras tarefas públicas e com
todas as outras profissões. De resto, tais tarefas e profissões devem
integrar-se entre si se se quer que a evolução social e cultural seja
verdadeira e plenamente humana.
Isto conseguir-se-á
mais facilmente se, como o desejou o Sínodo, uma renovada «teologia do
trabalho» esclarecer e aprofundar o significado do trabalho na vida cristã e
determinar o laço fundamental que existe entre o trabalho e a família, e,
portanto, o significado original e insubstituível do trabalho da casa e da
educação dos filhos(66). Portanto a Igreja pode e deve ajudar a
sociedade actual pedindo insistentemente que seja reconhecido por todos e
honrado no seu insubstituível valor o trabalho da mulher em casa. Isto é de
importância particular na obra educativa: de facto, elimina-se a própria raiz
da possível discriminação entre os diversos trabalhos e profissões, logo que se
veja claramente como todos, em cada campo, se empenham com idêntico direito e
com idêntica responsabilidade. Deste modo aparecerá mais esplendente a imagem
de Deus no homem e na mulher.
Se há que reconhecer às
mulheres, como aos homens, o direito de ascender às diversas tarefas públicas,
a sociedade deve estruturar-se, contudo, de maneira tal que as esposas e as
mães não sejam de facto constrangidas a trabalhar fora de casa
e que a família possa dignamente viver e prosperar, mesmo quando elas se
dedicam totalmente ao lar próprio.
Deve além disso
superar-se a mentalidade segundo a qual a honra da mulher deriva mais do
trabalho externo do que da actividade familiar. Mas isto exige que se estime e
se ame verdadeiramente a mulher com todo o respeito pela sua dignidade pessoal,
e que a sociedade crie e desenvolva as devidas condições para o trabalho
doméstico.
A Igreja, com o devido
respeito pela vocação diversa do homem e da mulher, deve promover, na medida do
possível, também na sua vida, a igualdade deles quanto a direitos e dignidades,
e isto para o bem de todos: da família, da Igreja e da sociedade.
É evidente, porém, que
isto não significa para a mulher a renúncia à sua feminilidade nem a imitação
do carácter masculino, mas a plenitude da verdadeira humanidade feminil, tal
como se deve exprimir no seu agir, quer na família quer fora dela, sem contudo
esquecer, neste campo, a variedade dos costumes e das culturas.
Ofensas
à dignidade da mulher
24. Infelizmente a
mensagem cristã acerca da dignidade da mulher vem sendo impugnada por aquela
persistente mentalidade que considera o ser humano não como pessoa, mas como
coisa, como objecto de compra-venda, ao serviço de um interesse egoístico e
exclusivo do prazer: e a primeira vítima de tal mentalidade é a mulher.
Esta mentalidade produz
frutos bastante amargos, como o desprezo do homem e da mulher, a escravidão, a
opressão dos fracos, a pornografia, a prostituição - sobretudo quando é
organizada - e todas aquelas várias discriminações que se encontram no âmbito
da educação, da profissão, da retribuição do trabalho, etc.
Além disso, ainda hoje,
em grande parte da nossa sociedade, permanecem muitas formas de discriminação
aviltante que ferem e ofendem gravemente algumas categorias particulares de
mulheres, como, por exemplo, as esposas que não têm filhos, as viúvas, as
separadas, as divorciadas, as mães-solteiras.
Estas e outras
discriminações foram veementemente deploradas pelos Padres Sinodais. Solicito,
pois, que se desenvolva uma acção pastoral específica mais vigorosa e incisiva,
a fim de que sejam vencidas em definitivo, para se poder chegar à estima plena
da imagem de Deus que esplandece em todos os seres humanos, sem nenhuma
exclusão.
O
homem esposo e pai
25. É dentro da
comunhão-comunidade conjugal e familiar que o homem é chamado a viver o seu dom
e dever de esposo e pai.
Na esposa ele vê o
cumprimento do desígnio de Deus: «Não é conveniente que o homem esteja só; vou
dar-lhe um auxiliar semelhante a ele»(67) e faz sua a exclamação de Adão, o
primeiro esposo: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha
carne»(68).
O amor conjugal
autêntico supõe e exige que o homem tenha um profundo respeito pela igual
dignidade da mulher: «Não és o senhor - escreve Santo Ambrósio - mas o marido;
não te foi dada como escrava, mas como mulher... Retribui-lhe as atenções tidas
para contigo e sê-lhe agradecido pelo seu amor»(69). Com a esposa o homem deve viver «uma
forma muito especial de amizade pessoal»(70). O cristão, é, além disso, chamado a
desenvolver uma atitude de amor novo, manifestando para com a sua esposa a
caridade delicada e forte que Cristo nutre pela Igreja(71).
O amor à esposa tornada
mãe e o amor aos filhos são para o homem o caminho natural para a compreensão e
realização da paternidade. De modo especial onde as condições sociais e
culturais constringem facilmente o pai a um certo desinteresse em relação à
família ou de qualquer forma a uma menor presença na obra educativa, é
necessário ser-se solícito para que se recupere socialmente a convicção de que
o lugar e a tarefa do pai na e pela família são de importância única e
insubstituível(72). Como a experiência ensina, a ausência
do pai provoca desequilíbrios psicológicos e morais e dificuldades notáveis nas
relações familiares. O mesmo acontece também, em circunstâncias opostas, pela
presença opressiva do pai, especialmente onde ainda se verifica o fenómeno do
«machismo», ou seja da superioridade abusiva das prerrogativas masculinas que
humilham a mulher e inibem o desenvolvimento de relações familiares sadias.
Revelando e revivendo
na terra a mesma paternidade de Deus(73), o homem é chamado a garantir o
desenvolvimento unitário de todos os membros da família. Cumprirá tal dever
mediante uma generosa responsabilidade pela vida concebida sob o coração da mãe
e por um empenho educativo mais solícito e condividido com a esposa(74), por um trabalho que nunca desagregue a
família mas a promova na sua constituição e estabilidade, por um testemunho de
vida cristã adulta, que introduza mais eficazmente os filhos na experiência
viva de Cristo e da Igreja.
Os
direitos da criança
26. Na família,
comunidade de pessoas, deve reservar-se uma especialíssima atenção à criança,
desenvolvendo uma estima profunda pela sua dignidade pessoal como também um
grande respeito e um generoso serviço pelos seus direitos. Isto vale para cada
criança, mas adquire uma urgência singular quanto mais pequena e desprovida,
doente, sofredora ou diminuída for a criança.
Solicitando e vivendo
um cuidado terno e forte por cada criança que vem a este mundo, a Igreja cumpre
uma sua missão fundamental: revelar e repetir na história o exemplo e o
mandamento de Cristo, que quis pôr a criança em destaque no Reino de Deus:
«Deixai vir a Mim os pequeninos e não os impeçais pois deles é o reino de Deus»(75).
Repito novamente o que
disse na Assembleia geral das Nações Unidas em 2 de Outubro de 1979: «Desejo
... exprimir a felicidade que para cada um de nós constituem as crianças,
primavera da vida, antecipação da história futura de cada pátria terrestre.
Nenhum país do mundo, nenhum sistema político pode pensar no seu futuro senão
através da imagem destas novas gerações que assumirão dos pais o múltiplo
património dos valores, dos deveres e das aspirações da nação à qual pertencem,
e o de toda a família humana. A solicitude pela criança ainda antes do
nascimento, desde o primeiro momento da concepção e, depois, nos anos da
infância e da adolescência, é a primária e fundamental prova da relação do
homem com o homem. E, portanto, que mais se poderá augurar a cada nação e a
toda a humanidade, a todas as crianças do mundo senão aquele futuro melhor no
qual o respeito dos direitos do homem se torne plena realidade no aproximar-se
do ano dois mil?»(76).
O acolhimento, o amor,
a estima, o serviço multíplice e unitário - material, afectivo, educativo,
espiritual - a cada criança que vem a este mundo deverão constituir sempre uma
nota distintiva irrenunciável dos cristãos, em particular das famílias cristãs.
Deste modo as crianças, ao poderem crescer «em sabedoria, idade e graça diante
de Deus e dos homens»(77), darão o seu precioso contributo à
edificação da comunidade familiar e à santificação dos pais(78).
Os
anciãos na família
27. Há culturas que
manifestam uma veneração singular e um grande amor pelo ancião: longe de ser
excluído da família ou de ser suportado como um peso inútil, o ancião continua
inserido na vida familiar, tomando nela parte activa e responsável - embora
devendo respeitar a autonomia da nova família - e sobretudo desenvolvendo a
missão preciosa de testemunha do passado e de inspirador de sabedoria para os
jovens e para o futuro.
Outras culturas, pelo
contrário, especialmente depois de um desenvolvimento industrial e urbanístico
desordenado, forçaram e continuam a forçar os anciãos a situações inaceitáveis
de marginalização que são fonte de atrozes sofrimentos para eles mesmos e de
empobrecimento espiritual para muitas famílias.
É necessário que a
acção pastoral da Igreja estimule todos a descobrir e a valorizar as tarefas
dos anciãos na comunidade civil e eclesial, e, em particular, na família. Na
realidade, «a vida dos anciãos ajuda-nos a esclarecer a escala dos valores
humanos; mostra a continuidade das gerações e demonstra maravilhosamente a
interdependência do povo de Deus. Os anciãos têm além disso o carisma de encher
os espaços vazios entre gerações, antes que se sublevem. Quantas crianças têm
encontrado compreensão e amor nos olhos, nas palavras e nos carinhos dos
anciãos! E quantas pessoas de idade têm subscrito com gosto as inspiradas
palavras bíblicas que a "coroa dos anciãos são os filhos dos filhos"
(Prov. 17, 6)»(79).
II - O SERVIÇO À VIDA
1) A
transmissão da vida
Cooperadores
do amor de Deus Criador
28. Com a criação do
homem e da mulher à sua imagem e semelhança, Deus coroa e leva à perfeição a
obra das suas mãos: Ele chama-os a uma participação especial do seu amor e do
seu poder de Criador e de Pai, mediante uma cooperação livre e responsável
deles na transmissão do dom da vida humana: «Deus abençoou-os e disse-lhes:
"crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra"»(80).
Assim a tarefa
fundamental da família é o serviço à vida. É realizar, através da história, a
bênção originária do Criador, transmitindo a imagem divina pela geração de
homem a homem(81).
A fecundidade é o fruto
e o sinal do amor conjugal, o testemunho vivo da plena doação recíproca dos
esposos: «O autêntico culto do amor conjugal e toda a vida familiar que dele
nasce, sem pôr de lado os outros fins do matrimónio, tendem a que os esposos,
com fortaleza de animo, estejam dispostos a colaborar com o amor do Criador e
Salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a família»(82).
A fecundidade do amor
conjugal não se restringe somente à procriação dos filhos, mesmo que entendida
na dimensão especificamente humana: alarga-se e enriquece-se com todos aqueles
frutos da vida moral, espiritual e sobrenatural que o pai e a mãe são chamados
a doar aos filhos e, através dos filhos, à Igreja e ao mundo.
A
doutrina e a norma sempre antigas e
sempre novas da Igreja
29. Exactamente porque
o amor dos cônjuges é uma participação singular no mistério da vida e no amor
do próprio Deus, a Igreja tem consciência de ter recebido a missão especial de
guardar e de proteger a altíssima dignidade do matrimónio e a gravíssima
responsabilidade da transmissão da vida humana.
Desta maneira, na
continuidade com a tradição viva da comunidade eclesial através da história, o
Concílio Vaticano II e o magistério do meu Predecessor Paulo VI, expresso
sobretudo na encíclica Humanae Vitae, transmitiram aos nossos tempos um anúncio
verdadeiramente profético, que reafirma e repõe, com clareza, a doutrina e a
norma sempre antigas e sempre novas da Igreja sobre o matrimónio e sobre a
transmissão da vida humana.
Por isso, os Padres
Sinodais declaram textualmente na última Assembleia: «Este Sacro Sínodo reunido
em união de fé com o Sucessor de Pedro, sustenta firmemente o que foi proposto
pelo Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 50 e, depois, pela encíclica Humanae Vitae, e em particular que o amor conjugal deve
ser plenamente humano, exclusivo e aberto a nova vida (Humanae Vitae, 11 e cfr. 9 e 12)»(83).
A
Igreja está do lado da vida
30.A doutrina da Igreja
coloca-se hoje numa situação social e cultural que a torna mais difícil de ser
compreendida e ao mesmo tempo mais urgente e insubstituível para promover o
verdadeiro bem do homem e da mulher.
De facto o progresso
científico-técnico que o homem contemporâneo amplia continuamente no domínio
sobre a natureza, não só desenvolve a esperança de criar uma humanidade nova e
melhor, mas gera também uma sempre mais profunda angústia sobre o futuro.
Alguns perguntam-se se viver é bom ou se não teria sido melhor nem sequer ter
nascido. Duvidam, portanto, da liceidade de chamar outros à vida, que talvez
amaldiçoarão a sua existência num mundo cruel, cujos terrores nem sequer são
previsíveis. Outros pensam que são os únicos destinatários das vantagens da
técnica e excluem os demais, impondo-lhes meios contraceptivos ou técnicas
ainda piores. Outros ainda, manietados como estão pela mentalidade consumística
e com a única preocupação de um aumento contínuo dos bens materiais, acabam por
não chegar a compreender e portanto por rejeitar a riqueza espiritual de uma
nova vida humana. A razão última destas mentalidades é a ausência de Deus do
coração dos homens, cujo amor só por si é mais forte do que todos os possíveis
medos do mundo e tem o poder de os vencer.
Nasceu assim uma
mentalidade contra a vida (anti-life mentality), como emerge de muitas
questões actuais: pense-se, por exemplo, num certo pânico derivado dos estudos
dos ecólogos e dos futurólogos sobre a demografia, que exageram, às vezes, o
perigo do incremento demográfico para a qualidade da vida.
Mas a Igreja crê
firmemente que a vida humana, mesmo se débil e com sofrimento, é sempre um
esplêndido dom do Deus da bondade. Contra o pessimismo e o egoísmo que
obscurecem o mundo, a Igreja está do lado da vida: e em cada vida humana sabe
descobrir o esplendor daquele «Sim», daquele «Amém» que é o próprio
Cristo (84). Ao «não» que invade e aflige o mundo,
contrapõe este «Sim» vivente, defendendo deste modo o homem e o mundo de
quantos insidiam e mortificam a vida.
A Igreja é chamada a
manifestar novamente a todos, com uma firme e mais clara convicção, a vontade
de promover, com todos os meios e de defender contra todas as insídias a vida
humana, em qualquer condição e estado de desenvolvimento em que se encontre.
Por tudo isto a Igreja
condena como ofensa grave à dignidade humana e à justiça todas aquelas
actividades dos governos ou de outras autoridades públicas, que tentam limitar
por qualquer modo a liberdade dos cônjuges na decisão sobre os filhos.
Consequentemente qualquer violência exercitada por tais autoridades em favor da
contracepção e até da esterilização e do aborto procurado, é absolutamente de
condenar e de rejeitar com firmeza. Do mesmo modo é de reprovar como gravemente
injusto o facto de nas relações internacionais, a ajuda económica concedida
para a promoção dos povos ser condicionada a programas de contracepção,
esterilização e aborto procurado85.
Para
que o plano divino se realize sempre mais plenamente
31. A Igreja está sem
dúvida consciente dos múltiplos e complexos problemas que hoje em muitos países
envolvem os cônjuges no seu dever de transmitir responsavelmente a vida.
Reconhece também o grave problema do incremento demográfico, como se apresenta
nas diversas partes do mundo, e as relativas implicações morais.
A Igreja considera,
todavia, que uma reflexão aprofundada de todos os aspectos de tais problemas
ofereça uma nova e mais forte confirmação da importância da doutrina autêntica
sobre a regulação da natalidade, reproposta no Concílio Vaticano II e na
encíclica Humanae Vitae.
Por isto, juntamente
com os Padres Sinodais, sinto o dever de dirigir um urgente convite aos
teólogos a fim de que, unindo as suas forças para colaborar com o Magistério
hierárquico, se empenhem em iluminar cada vez melhor os fundamentos bíblicos,
as motivações éticas e as razões personalísticas desta doutrina. Será assim
possível, no contexto de uma exposição orgânica, tornar a doutrina da Igreja
sobre este tema fundamental verdadeiramente acessível a todos os homens de boa
vontade, favorecendo uma compreensão cada dia mais luminosa e profunda: desta
forma o plano divino poderá ser sempre mais plenamente cumprido para a salvação
do homem e para a glória do Criador.
A tal respeito, o
empenho concorde dos teólogos, inspirado pela adesão convencida ao Magistério,
que é o único guia autêntico do Povo de Deus, apresenta particular urgência
mesmo em razão da visão do homem que a Igreja propõe: dúvidas ou erros no campo
matrimonial ou familiar implicam um grave obscurecer-se da verdade integral
sobre o homem numa situação cultural já tão frequentemente confusa e
contraditória O contributo de iluminação e de investigação, que os teólogos são
chamados a oferecer no cumprimento da sua missão específica, tem um valor
incomparável e representa um serviço singular, altamente meritório, à família e
à humanidade.
Na
visão integral do homem e da sua vocação
32.No contexto de uma
cultura que deforma gravemente ou chega até a perder o verdadeiro significado
da sexualidade humana, porque a desenraíza da sua referência essencial à
pessoa, a Igreja sente como mais urgente e insubstituível a sua missão de apresentar
a sexualidade como valor e tarefa de toda a pessoa criada, homem e mulher, à
imagem de Deus.
Nesta perspectiva o
Concílio Vaticano II afirmou claramente que «quando se trata de conciliar o
amor conjugal com a transmissão responsável da vida, a moralidade do
comportamento não depende apenas da sinceridade da intenção e da apreciação dos
motivos; deve também determinar-se por critérios objectivos, tomados da
natureza da pessoa e dos seus actos; critérios que respeitam, num contexto
de autêntico amor, o sentido da mútua doação e da procriação humana. Tudo isto
só é possível se se cultivar sinceramente a virtude da castidade conjugal»(86).
É exactamente partindo
da «visão integral do homem e da sua vocação, não só natural e terrena, mas
também sobrenatural e eterna»(87), que Paulo VI afirmou que a doutrina da
Igreja «se funda na conexão inseparável, que Deus quis e que o homem não pode
quebrar por sua iniciativa, entre os dois significados do acto conjugal: o significado
unitivo e o significado procriativo»(88). E conclui reafirmando que é de
excluir, como intrinsecamente desonesta, «toda a acção que, ou em previsão do
acto conjugal, ou na sua realização, ou no desenvolvimento das suas
consequências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar a procriação
impossível»(89).
Quando os cônjuges,
mediante o recurso à contracepção, separam estes dois significados que Deus
Criador inscreveu no ser do homem e da mulher e no dinamismo da sua comunhão
sexual, comportam-se como «árbitros» do plano divino e «manipulam» e aviltam a
sexualidade humana, e com ela a própria pessoa e a do cônjuge, alterando desse
modo o valor da doação «total». Assim, à linguagem nativa que exprime a
recíproca doação total dos cônjuges, a contracepção impõe uma linguagem
objectivamente contradictória, a do não doar-se ao outro: deriva daqui, não
somente a recusa positiva de abertura à vida, mas também uma falsificação da
verdade interior do amor conjugal, chamado a doar-se na totalidade pessoal.
Quando pelo contrário
os cônjuges, mediante o recurso a períodos de infecundidade, respeitam a
conexão indivisível dos significados unitivo e procriativo da sexualidade
humana, comportam-se como «ministros» de plano de Deus e «usufruem» da
sexualidade segundo o dinamismo originário da doação «total», se manipulações e
alterações(90).
À luz da experiência
mesma de tantos casais e dos dados das diversas ciências humanas, a reflexão
teológica pode receber e é chamada a aprofundar a diferença
antropológica e ao mesmo tempo moral, que existe entre a contracepção e o
recurso aos ritmos temporais: trata-se de uma diferença bastante mais vasta e
profunda de quanto habitualmente se possa pensar e que, em última análise,
envolve duas concepções da pessoa e da sexualidade humana irredutíveis entre
si. A escolha dos ritmos naturais, de facto, comporta a aceitação do ritmo
biológico da mulher, e com isto também a aceitação do diálogo, do respeito
recíproco, da responsabilidade comum, do domínio de si. Acolher, depois, o
tempo e o diálogo significa reconhecer o carácter conjuntamente espiritual e
corpóreo da comunhão conjugal, como também viver o amor pessoal na sua
exigência de fidelidade. Neste contexto o casal faz a experiência da comunhão
conjugal enriquecida daqueles valores de ternura e afectividade, que constituem
o segredo profundo da sexualidade humana, mesmo na sua dimensão física. Desta
maneira a sexualidade é respeitada e promovida na sua dimensão verdadeira e
plenamente humana, não sendo nunca «usada» como um «objecto» que, dissolvendo a
unidade pessoal da alma e do corpo, fere a própria criação de Deus na relação
mais íntima entre a natureza e a pessoa.
A
Igreja Mestra e Mãe para os cônjuges em dificuldade
33.Também no campo da
moral conjugal a Igreja é e age como Mestra e Mãe.
Como Mestra, ela não se
cansa de proclamar a norma moral que deve guiar a transmissão responsável da
vida. De tal norma a Igreja não é, certamente, nem a autora nem o juiz. Em
obediência à verdade que é Cristo, cuja imagem se reflecte na natureza e na
dignidade da pessoa humana, a Igreja interpreta a norma moral e propõe-na a
todos os homens de boa vontade, sem esconder as suas exigências de radicalidade
e de perfeição.
Como Mãe, a Igreja está
próxima dos muitos casais que se encontram em dificuldade sobre este importante
ponto da vida moral: conhece bem a sua situação, frequentemente muito árdua e
às vezes verdadeiramente atormentada por dificuldades de toda a espécie, não só
individuais mas também sociais; sabe que muitos cônjuges encontram dificuldades
não só para a realização concreta mas também para a própria compreensão dos
valores ínsitos na norma moral.
Mas é a mesma e única
Igreja a ser ao mesmo tempo Mestra e Mãe. Por isso a Igreja nunca se cansa de
convidar e de encorajar para que as eventuais dificuldades conjugais sejam
resolvidas sem nunca falsificar e comprometer a verdade: ela está de facto
convencida de que não pode existir verdadeira contradição entre a lei divina de
transmitir a vida e a de favorecer o autêntico amor conjugal(91). Por isso, a pedagogia concreta da
Igreja deve estar sempre ligada e nunca separada da sua doutrina. Repito,
portanto, com a mesmíssima persuasão do meu Predecessor: «Não diminuir em nada
a doutrina salutar de Cristo é eminente forma de caridade para com as almas»(92).
Por outro lado, a
autêntica pedagogia eclesial revela o seu realismo e a sua sabedoria só
desenvolvendo um empenhamento tenaz e corajoso no criar e sustentar todas
aquelas condições humanas - psicológicas, morais e espirituais - que são
indispensáveis para compreender e viver o valor e a norma moral.
Não há dúvida de que
entre estas condições devem elencar-se a constância e a paciência, a humildade
e a fortaleza de espírito, a filial confiança em Deus e na sua graça, o recurso
frequente à oração e aos sacramentos da Eucaristia e da reconciliação(93). Assim fortalecidos, os cônjuges
cristãos poderão manter viva a consciência do influxo singular que a graça do
sacramento do matrimónio exerce sobre todas as realidades da vida conjugal, e,
portanto, também sobre a sua sexualidade: o dom do Espírito, acolhido e
correspondido pelos cônjuges, ajuda-os a viver a sexualidade humana segundo o
plano de Deus e como sinal do amor unitivo e fecundo de Cristo pela Igreja.
Mas, entre as condições
necessárias, entra também o conhecimento da corporeidade e dos ritmos de
fertilidade. Em tal sentido, é preciso fazer tudo para que um igual
conhecimento se torne acessível a todos os cônjuges, e, antes ainda às jovens,
mediante uma informação e educação clara, oportuna e séria, feita por casais,
médicos e peritos. O conhecimento deve conduzir à educação para o autocontrole:
daqui a absoluta necessidade da virtude da castidade e da permanente educação
para ela. Segundo a visão cristã, a castidade não significa de modo nenhum nem
a recusa nem a falta de estima pela sexualidade humana: ela significa antes a
energia espiritual que sabe defender o amor dos perigos do egoísmo e da agressividade
e sabe voltá-lo para a sua plena realização.
Paulo VI, com profundo
intuito de sabedoria e de amor, não fez outra coisa senão dar voz à experiência
de tantos casais quando na sua encíclica escreveu: «O domínio do instinto,
mediante a razão e a vontade livre, impõe sem dúvida uma ascese para que as
manifestações afectivas da vida conjugal sejam segundo a ordem recta e
particularmente para a observância da continência periódica. Mas esta
disciplina própria da pureza dos esposos, muito longe de prejudicar o amor
conjugal, confere-lhe pelo contrário um mais alto valor humano. Isto exige um
esforço contínuo, mas graças ao seu benéfico influxo, os cônjuges desenvolvem
integralmente a sua personalidade, enriquecendo-se de valores espirituais:
aquela traz à vida familiar frutos de serenidade e de paz e facilita a solução
de outros problemas; favorece a atenção para com o consorte, ajuda os esposos a
superar o egoísmo, inimigo do amor, e aprofunda o sentido da responsabilidade
deles no cumprimento dos seus deveres. Os pais adquirem então a capacidade de
uma influência mais profunda e eficaz na educação dos filhos»(94).
O
itinerário moral dos esposos
34. É sempre muito
importante possuir uma recta concepção da ordem moral, dos seus valores e das
suas normas: a importância aumenta quando se tornam mais numerosas e graves as
dificuldades para as respeitar.
Exactamente porque
revela e propõe o desígnio de Deus Criador, a ordem moral não pode ser algo de
mortificante para o homem e de impessoal; pelo contrário, respondendo às
exigências mais profundas do homem criado por Deus, põe-se ao serviço da sua
plena humanidade, com o amor delicado e vinculante com o qual Deus mesmo
inspira, sustenta e guia cada criatura para a felicidade.
Mas o homem, chamado a
viver responsavelmente o plano sapiente e amoroso de Deus, é um ser histórico,
que se constrói, dia a dia, com numerosas decisões livres: por isso ele
conhece, ama e cumpre o bem moral segundo etapas de crescimento.
Também os cônjuges, no
âmbito da vida moral, são chamados a um contínuo caminhar, sustentados pelo
desejo sincero e operante de conhecer sempre melhor os valores que a lei divina
guarda e promove, pela vontade recta e generosa de os encarnar nas suas
decisões concretas. Eles, porém, não podem ver a lei só como puro ideal a
conseguir no futuro, mas devem considerá-la como um mandato de Cristo de
superar cuidadosamente as dificuldades. Por isso a chamada «lei da graduação»
ou caminho gradual não pode identificar-se com a "graduação da lei",
como se houvesse vários graus e várias formas de preceito na lei divina para
homens em situações diversas. Todos os cônjuges são chamados, segundo o plano
de Deus, à santidade no matrimónio e esta alta vocação realiza-se na medida em
que a pessoa humana está em grau de responder ao mandato divino com espírito
sereno, confiando na graça divina e na vontade própria»(95). Na mesma linha a pedagogia da Igreja
compreende que os cônjuges antes de tudo reconheçam claramente a doutrina daHumanae Vitae como normativa para o exercício da
sexualidade e sinceramente se empenhem em pôr as condições necessárias para a
observar.
Esta pedagogia, como
sublinhou o Sínodo, compreende toda a vida conjugal. Por isso a obrigação de
transmitir a vida deve integrar-se na missão global da totalidade da vida
cristã, a qual, sem a cruz, não pode chegar à ressurreição. Em semelhante
contexto compreende-se como não se possa suprimir da vida familiar o
sacrifício, mas antes se deva aceitá-lo com o coração para que o amor conjugal
se aprofunde e se torne fonte de alegria íntima.
Este caminho comum
exige reflexão, informação, instrução idónea dos sacerdotes, dos religiosos e
dos leigos que estão empenhados na pastoral familiar: todos eles poderão ajudar
os cônjuges no itinerário humano e espiritual que comporta em si a consciência
do pecado, o sincero empenho de observar a lei moral, o ministério da
reconciliação. Deve também ser recordado como na intimidade conjugal estão
implicadas as vontades das duas pessoas, chamadas a uma harmonia de mentalidade
e comportamento: isto exige não pouca paciência, simpatia e tempo. De singular
importância neste campo é a unidade dos juízos morais e pastorais dos
sacerdotes: tal unidade deve cuidadosamente ser procurada e assegurada, para
que os fiéis não tenham que sofrer problemas de consciência(96).
O caminho dos cônjuges
será portanto facilitado se, na estima da doutrina da Igreja e na confiança na
graça de Cristo, ajudados e acompanhados pelos pastores e pela inteira
comunidade eclesial, descobrirem e experimentarem o valor da libertação e da
promoção do amor autêntico, que o Evangelho oferece e o mandamento do Senhor
propõe.
Suscitar
convicções e oferecer uma ajuda concreta
35.Diante do problema
de uma honesta regulação da natalidade, a comunidade eclesial, no tempo
presente, deve assumir como seu dever suscitar convicções e oferecer uma ajuda
concreta a quantos quiserem viver a paternidade e a maternidade de modo
verdadeiramente responsável.
Neste campo, enquanto
se congratula com os resultados conseguidos pelas investigações científicas de
um conhecimento mais preciso dos ritmos de fertilidade feminina e estimula uma
mais decisiva e ampla extensão de tais estudos, a Igreja cristã não pode não
solicitar com renovado vigor a responsabilidade de quantos - médicos, peritos,
conselheiros conjugais, educadores, casais - podem efectivamente ajudar os
cônjuges a viver o seu amor com respeito pela estrutura e pelas finalidades do
acto conjugal que o exprime. Isto quer dizer um empenho mais vasto, decisivo e
sistemático, para fazer conhecer, apreciar e aplicar os métodos naturais de
regulação da fertilidade(97).
Um testemunho precioso
pode e deve ser dado por aqueles esposos que, mediante o comum empenho na
continência periódica, chegaram a uma responsabilidade pessoal mais madura em
relação ao amor e à vida. Como escrevia Paulo VI: «a esses confia o Senhor a
tarefa de fazer visível aos homens a santidade e a suavidade da lei que une o
amor mútuo dos esposos e a cooperação deles com o amor de Deus autor da vida
humana»(98).
2) A educação
O
direito-dever dos pais de educar
36. O dever de educar
mergulha as raízes na vocação primordial dos cônjuges à participação na obra
criadora de Deus: gerando no amor e por amor uma nova pessoa, que traz em si a
vocação ao crescimento e ao desenvolvimento, os pais assumem por isso mesmo o
dever de a ajudar eficazmente a viver uma vida plenamente humana. Como recordou
o Concílio Vaticano II: «Os pais, que transmitiram a vida aos filhos, têm uma
gravíssima obrigação de educar a prole e, por isso, devem ser reconhecidos como
seus primeiros e principais educadores. Esta função educativa é de tanto peso
que, onde não existir, dificilmente poderá ser suprida. Com efeito, é dever dos
pais criar um ambiente de tal modo animado pelo amor e pela piedade para com
Deus e para com os homens que favoreça a completa educação pessoal e social dos
filhos. A família é, portanto, a primeira escola das virtudes sociais de que as
sociedades têm necessidade»(99).
O direito-dever
educativo dos pais qualifica-se como essencial, ligado como está à
transmissão da vida humana; comooriginal e primário, em relação ao dever
de educar dos outros, pela unicidade da relação de amor que subsiste entre pais
e filhos; como insubstituível e inalienável, e
portanto, não delegável totalmente a outros ou por outros usurpável.
Para além destas
características, não se pode esquecer que o elemento mais radical, que
qualifica o dever de educar dos pais é o amor paterno e materno, o
qual encontra na obra educativa o seu cumprimento ao tornar pleno e perfeito o
serviço à vida: o amor dos pais de fonte torna-se alma e,
portanto, norma, que inspira e guia toda a acção educativa
concreta, enriquecendo-a com aqueles valores de docilidade, constância,
bondade, serviço, desinteresse, espírito de sacrifício, que são o fruto mais
precioso do amor.
Educar
para os valores essenciais da vida humana
37. Embora no meio das
dificuldades da obra educativa, hoje muitas vezes agravada, os pais devem, com
confiança e coragem, formar os filhos para os valores essenciais da vida
humana. Os filhos devem crescer numa justa liberdade diante dos bens materiais,
adoptando um estilo de vida simples e austero, convencidos de que «o homem vale
mais pelo que é do que pelo que tem» (100).
Numa sociedade agitada
e desagregada por tensões e conflitos em razão do violento choque entre os
diversos individualismos e egoísmos, os filhos devem enriquecer-se não só do
sentido da verdadeira justiça que, por si só conduz ao respeito pela dignidade
pessoal de cada um, mas também e, ainda mais, do sentido do verdadeiro amor,
como solicitude sincera e serviço desinteressado para com os outros, em
particular os mais pobres e necessitados. A família é a primeira e fundamental
escola de sociabilidade: enquanto comunidade de amor, ela encontra no dom de si
a lei que a guia e a faz crescer. O dom de si, que inspira o amor mútuo dos
cônjuges, deve pôr-se como modelo e norma daquele que deve ser actuado nas
relações entre irmãos e irmãs e entre as diversas gerações que convivem na
família. E a comunhão e a participação quotidianamente vividas na casa, nos
momentos de alegria e de dificuldade, representam a mais concreta e eficaz
pedagogia para a inserção activa, responsável e fecunda dos filhos no mais
amplo horizonte da sociedade.
A educação para o amor
como dom de si constitui também a premissa indispensável para os pais chamados
a oferecer aos filhos uma clara e delicada educação sexual. Diante
de uma cultura que «banaliza» em grande parte a sexualidade humana, porque a
interpreta e a vive de maneira limitada e empobrecida coligando-a unicamente ao
corpo e ao prazer egoístico, o serviço educativo dos pais deve dirigir-se com
firmeza para uma cultura sexual que seja verdadeira e plenamente pessoal. A
sexualidade, de facto, é uma riqueza de toda a pessoa - corpo, sentimento e
alma - e manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no
amor.
A educação sexual,
direito e dever fundamental dos pais, deve actuar-se sempre sob a sua solícita
guia, quer em casa quer nos centros educativos escolhidos e controlados por
eles. Neste sentido a Igreja reafirma a lei da subsidiariedade, que a escola
deve observar quando coopera na educação sexual, ao imbuir-se do mesmo espírito
que anima os pais.
Neste contexto é
absolutamente irrenunciável a educação para a castidade como
virtude que desenvolve a autêntica maturidade da pessoa e a torna capaz de
respeitar e promover o «significado nupcial» do corpo. Melhor, os pais cristãos
reservarão uma particular atenção e cuidado, discernindo os sinais da chamada
de Deus, para a educação para a virgindade como forma suprema daquele dom de si
que constitui o sentido próprio da sexualidade humana.
Pelos laços estreitos
que ligam a dimensão sexual da pessoa e os seus valores éticos, o dever
educativo deve conduzir os filhos a conhecer e a estimar as normas morais como
necessária e preciosa garantia para um crescimento pessoal responsável na
sexualidade humana.
Por isto a Igreja
opõe-se firmemente a uma certa forma de informação sexual, desligada dos
princípios morais, tão difundida, que não é senão uma introdução à experiência
do prazer e um estímulo que leva à perda - ainda nos anos da inocência - da
serenidade, abrindo as portas ao vício.
A
missão educativa e o sacramento do matrimónio
38. Para os pais
cristãos a missão educativa, radicada como já se disse na sua participação na
obra criadora de Deus, tem uma nova e específica fonte no sacramento do
matrimónio, que os consagra para a educação propriamente cristã dos filhos,
isto é, que os chama a participar da mesma autoridade e do mesmo amor de Deus
Pai e de Cristo Pastor, como também do amor materno da Igreja, e os enriquece
de sabedoria, conselho, fortaleza e de todos os outros dons do Espírito Santo
para ajudarem os filhos no seu crescimento humano e cristão.
O dever educativo
recebe do sacramento do matrimónio a dignidade e a vocação de ser um verdadeiro
e próprio «ministério» da Igreja ao serviço da edificação dos seus membros. Tal
é a grandeza e o esplendor do ministério educativo dos pais cristãos, que Santo
Tomás não hesita em compará-lo ao ministério dos sacerdotes: «Alguns propagam e
conservam a vida espiritual com um ministério unicamente espiritual: é a tarefa
do sacramento da ordem; outros fazem-no quanto à vida corporal e espiritual o
que se realiza com o sacramento do matrimónio, que une o homem e a mulher para
que tenham descendência e a eduquem para o culto de Deus»(101).
A consciência viva e
atenta da missão recebida no sacramento do matrimónio ajudará os pais cristãos
a dedicarem-se com grande serenidade e confiança ao serviço de educar os filhos
e, ao mesmo tempo, com sentido de responsabilidade diante de Deus que os chama
e os manda edificar a Igreja nos filhos. Assim a família dos baptizados,
convocada qual igreja doméstica pela Palavra e pelo Sacramento, torna-se,
conjuntamente, como a grande Igreja, mestra e mãe.
A
primeira experiência de Igreja
39.A missão de educar
exige que os pais cristãos proponham aos filhos todos os conteúdos necessários
para o amadurecimento gradual da personalidade sob o ponto de vista cristão e
eclesial. Retomarão então as linhas educativas acima recordadas, com o cuidado
de mostrar aos filhos a que profundidade de significado a fé e a caridade de
Jesus Cristo sabem conduzir. Para além disso, a certeza de que o Senhor lhes
confia o crescimento de um filho de Deus, de um irmão de Cristo, de um templo
do Espírito Santo, de um membro da Igreja, ajudará os pais cristãos no seu
dever de reforçar na alma dos filhos o dom da graça divina.
O Concílio Vaticano II
precisa assim o conteúdo da educação cristã: «Esta procura dar não só a
maturidade de pessoa humana... mas tende principalmente a fazer com que os
baptizados, enquanto são introduzidos gradualmente no conhecimento do mistério
da salvação, se tornem cada vez mais conscientes do dom da fé que receberam;
aprendam, principalmente na acção litúrgica, a adorar a Deus Pai em espírito e
verdade (cfr. Jo. 4, 23), disponham-se a levar a própria vida
segundo o homem novo em justiça e santidade de verdade (Ef 4, 22-24);
e assim se aproximem do homem perfeito, da idade plena de Cristo (cfr. Ef.
4, 13) e colaborem no aumento do Corpo Místico. Além disso, conscientes da sua
vocação, habituem-se quer a testemunhar a esperança que neles existe (cfr.
1 Ped. 3, 15), quer a ajudar a conformação cristã no mundo»(102).
Também o Sínodo,
retomando e desenvolvendo as linhas conciliares, apresentou a missão educativa
da família cristã como um verdadeiro ministério, através do qual é transmitido
e irradiado o Evangelho, ao ponto de a mesma vida da família se tornar
itinerário de fé e, em certo modo, iniciação cristã e escola para seguir a
Cristo. Na família consciente de tal dom, como escreveu Paulo VI, «todos os
membros evangelizam e são evangelizados»(103).
Pela força do
ministério da educação os pais, mediante o testemunho de vida, são os primeiros
arautos do Evangelho junto dos filhos. Ainda mais: rezando com os filhos,
dedicando-se com eles à leitura da Palavra de Deus e inserindo-os no íntimo do
Corpo - eucarístico e eclesial - de Cristo mediante a iniciação cristã,
tornam-se plenamente pais, progenitores não só da vida carnal, mas também
daquela que, mediante a renovação do Espírito, brota da Cruz e da ressurreição
de Cristo.
Para que os pais
cristãos possam cumprir dignamente o seu ministério educativo, os Padres
Sinodais exprimiram o desejo de que seja preparado um catecismo para
uso da família, com texto adequado, claro, breve e tal que possa ser
facilmente assimilado por todos. As conferências episcopais foram vivamente
convidadas a empenharem-se na realização deste catecismo.
Relações
com outras forças educativas
40.A família é a
primeira, mas não a única e exclusiva comunidade educativa: a dimensão
comunitária, civil e eclesial do homem exige e conduz a uma obra mais ampla e
articulada, que seja o fruto da colaboração ordenada das diversas forças
educativas. Estas forças são todas elas necessárias, mesmo que cada uma possa e
deva intervir com a sua competência e o seu contributo próprio(104).
O dever educativo da
família cristã tem consequentemente um lugar bem importante na pastoral orgânica
o que implica uma nova forma de colaboração entre os pais e as comunidades
cristãs, entre os diversos grupos educativos e os pastores. Neste sentido, a
renovação da escola católica deve dar uma atenção especial quer aos pais dos
alunos quer à formação de uma perfeita comunidade educadora.
Deve ser absolutamente
assegurado o direito dos pais à escolha de uma educação conforme à sua fé
religiosa.
O Estado e a Igreja têm
obrigação de prestar às famílias todos os meios possíveis a fim de que possam
exercer adequadamente os seus deveres educativos. Por isso, quer a Igreja quer
o Estado devem criar e promover aquelas instituições e actividades que as
famílias justamente reclamam. A ajuda deverá ser proporcional às insuficiências
das famílias. Portanto, todos os que na sociedade ocupam postos de direcção
escolar nunca esqueçam que os pais foram constituídos pelo próprio Deus como
primeiros e principais educadores dos filhos, e que o seu direito é
absolutamente inalienável.
Mas, complementar ao
direito, põe-se o grave dever dos pais de se empenharem com profundidade numa
relação cordial e construtiva com os professores e os directores das escolas.
Se nas escolas se
ensinam ideologias contrárias à fé cristã, cada família juntamente com outras,
possivelmente mediante formas associativas, deve com todas as forças e com
sabedoria ajudar os jovens a não se afastarem da fé. Neste caso, a família tem
necessidade de especial ajuda da parte dos pastores, que não poderão esquecer o
direito inviolável dos pais de confiar os seus filhos à comunidade eclesial.
Um
múltiplo serviço à vida
41.O amor conjugal
fecundo exprime-se num serviço à vida em variadas formas, sendo a geração e a
educação as mais imediatas, próprias e insubstituíveis. Na realidade, cada acto
de amor verdadeiro para com o homem testemunha e aperfeiçoa a fecundidade
espiritual da família, porque é obediência ao profundo dinamismo interior do
amor como doação de si aos outros.
Nesta perspectiva, para
todos rica de valor e de empenho, saberão inspirar-se particularmente aqueles
cônjuges que fazem a experiência da esterilidade física.
As famílias cristãs,
que na fé reconhecem todos os homens como filhos do Pai comum dos céus, irão
generosamente ao encontro dos filhos das outras famílias, sustentando-os e
amando-os não como estranhos, mas como membros da única família dos filhos de
Deus. Os pais cristãos terão assim oportunidade de alargar o seu amor para além
dos vínculos da carne e do sangue, alimentando os laços que têm o seu
fundamento no espírito e que se desenvolvem no serviço concreto aos filhos de
outras famílias, muitas vezes necessitadas até das coisas mais elementares.
As famílias cristãs
saberão viver uma maior disponibilidade em favor da adopção e do acolhimento de
órfãos ou abandonados: enquanto estas crianças, encontrando o calor afectivo de
uma família, podem fazer uma experiência da carinhosa e próvida paternidade de
Deus, testemunhada pelos pais cristãos, e assim crescer com serenidade e
confiança na vida, a família inteira enriquecer-se-á dos valores espirituais de
uma mais ampla fraternidade.
A fecundidade das
famílias deve conhecer uma sua incessante «criatividade», fruto maravilhoso do
Espírito de Deus, que abre os olhos do coração à descoberta de novas
necessidades e sofrimentos da nossa sociedade, e que infunde coragem para as
assumir e dar-lhes resposta. Apresenta-se às famílias, neste quadro, um
vastíssimo campo de acção: com efeito, ainda mais preocupante que o abandono
das crianças é hoje o fenómeno da marginalização social e cultural, que duramente
fere anciãos, doentes, deficientes, toxicómanos, ex-presos, etc.
Desta maneira dilata-se
enormemente o horizonte da paternidade e da maternidade das famílias cristãs: o
seu amor espiritualmente fecundo é desafiado por estas e tantas outras urgências
do nosso tempo. Com as famílias e por meio delas, o Senhor continua a ter
«compaixão» das multidões.
III - A
PARTICIPAÇÃO
NO DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE
NO DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE
A
família, célula primeira e vital da sociedade
42.«Pois que o Criador
de todas as coisas constituiu o matrimónio princípio e fundamento da sociedade
humana», a família tornou-se a «célula primeira e vital da sociedade»(105).
A família possui
vínculos vitais e orgânicos com a sociedade, porque constitui o seu fundamento
e alimento contínuo mediante o dever de serviço à vida: saem, de facto, da
família os cidadãos e na família encontram a primeira escola daquelas virtudes
sociais, que são a alma da vida e do desenvolvimento da mesma sociedade.
Assim por força da sua
natureza e vocação, longe de fechar-se em si mesma, a família abre-se às outras
famílias e à sociedade, assumindo a sua tarefa social.
A
vida familiar como experiência de comunhão e de participação
43.A mesma experiência
de comunhão e de participação, que deve caracterizar a vida quotidiana da
família, representa o seu primeiro e fundamental contributo à sociedade.
As relações entre os
membros da comunidade familiar são inspiradas e guiadas pela lei da
«gratuidade» que, respeitando e favorecendo em todos e em cada um a dignidade
pessoal como único título de valor, se torna acolhimento cordial, encontro e
diálogo, disponibilidade desinteressada, serviço generoso, solidariedade
profunda.
A promoção de uma
autêntica e madura comunhão de pessoas na família torna-se a primeira e
insubstituível escola de sociabilidade, exemplo e estímulo para as mais amplas
relações comunitárias na mira do respeito, da justiça, do diálogo, do amor.
Deste modo a família,
como recordaram os Padres Sinodais, constitui o lugar nativo e o instrumento
mais eficaz de humanização e de personalização da sociedade. Colabora de um
modo original e profundo na construção do mundo, tornando possível uma vida
propriamente humana, guardando e transmitindo em particular as virtudes e «os
valores». Como escreve o Concílio Vaticano II, na família «congregam-se as
diferentes gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena
e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social»(106).
Assim diante de uma
sociedade que se arrisca a ser cada vez mais despersonalizada e massificada, e,
portanto, desumana e desumanizante, com as resultantes negativas de tantas
formas de «evasão» - como, por exemplo, o alcoolismo, a droga e o próprio
terrorismo - a família possui e irradia ainda hoje energias formidáveis capazes
de arrancar o homem do anonimato, de o manter consciente da sua dignidade
pessoal, de o enriquecer de profunda humanidade e de o inserir activamente com
a sua unicidade e irrepetibilidade no tecido da sociedade.
Função
social e política
44.A função social da
família não pode certamente fechar-se na obra procriativa e educativa, ainda
que nessa encontre a primeira e insubstituível forma de expressão.
As famílias, quer cada
uma por si quer associadas, podem e devem portanto dedicar-se a várias obras de
serviço social, especialmente em prol dos pobres, e de qualquer modo de todas
aquelas pessoas e situações que a organização previdencial e assistencial das
autoridades públicas não consegue atingir.
O contributo social da
família tem uma originalidade própria, que pode ser conhecida melhor e mais
decisivamente favorecida, sobretudo à medida que os filhos crescem, empenhando
de facto o mais possível todos os membros(107).
Em particular é de
realçar a importância sempre maior que na nossa sociedade assume a
hospitalidade, em todas as suas formas desde o abrir as portas da própria casa
e ainda mais do próprio coração aos pedidos dos irmãos, ao empenho concreto de
assegurar a cada família a sua casa, como ambiente natural que a conserva e a
faz crescer. Sobretudo a família cristã é chamada a escutar a recomendação do
apóstolo: «Exercei a hospitalidade com solicitude»(108) e portanto a actuar, imitando o
exemplo e compartilhando a caridade de Cristo, o acolhimento do irmão
necessitado: «Quem der de beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente
um copo de água fresca, por ser meu discípulo, em verdade vos digo não perderá
a sua recompensa»(109).
O dever social das
famílias é chamado ainda a exprimir-se sob forma de intervenção
política: as famílias devem com prioridade diligenciar para que as leis e
as instituições do Estado não só não ofendam, mas sustentem e defendam
positivamente os seus direitos e deveres. Em tal sentido as famílias devem
crescer na consciência de serem «protagonistas» da chamada «política familiar» e
assumir a responsabilidade de transformar a sociedade: doutra forma as famílias
serão as primeiras vítimas daqueles males que se limitaram a observar com
indiferença. O apelo do Concílio Vaticano II para que se supere a ética
individualística tem também valor para a família como tal(110).
A sociedade
ao serviço da família
45.A íntima conexão
entre a família e a sociedade, como exige a abertura e a participação da
família na sociedade e no seu desenvolvimento, impõe também que a sociedade não
abandone o seu dever fundamental de respeitar e de promover a família.
A família e a sociedade
têm certamente uma função complementar na defesa e na promoção do bem de todos
homens e de cada homem. Mas a sociedade, e mais especificamente o Estado, devem
reconhecer que a família é «uma sociedade que goza de direito próprio e
primordial»(111) e portanto nas suas relações com a
família são gravemente obrigados ao respeito do princípio de subsidiariedade.
Por força de tal
princípio o Estado não pode nem deve subtrair às famílias tarefas que elas
podem igualmente desenvolver perfeitamente sós ou livremente associadas, mas
favorecer positivamente e solicitar o mais possível a iniciativa responsável
das famílias. Convencidas de que o bem da família constitui um valor
indispensável e irrenunciável da comunidade civil, as autoridades públicas
devem fazer o possível por assegurar às famílias todas aquelas ajudas -
económicas, sociais, educativas, políticas, culturais de que têm necessidade para
fazer frente de modo humano a todas as suas responsabilidades.
A
carta dos direitos da família
46.O ideal de uma acção
recíproca de auxílio e de desenvolvimento entre a família e a sociedade
encontra-se muitas vezes, e em termos bastante graves, com a realidade de uma
separação, mais que de uma contraposição.
Com efeito, como
continuamente denunciou o Sínodo, a situação que numerosas famílias encontram
em diversos países é muito problemática, e até decididamente negativa:
instituições e leis que desconhecem injustamente os direitos invioláveis da
família e da mesma pessoa humana, e a sociedade, longe de se colocar ao serviço
da família, agride-a com violência nos seus valores e nas suas exigências
fundamentais. Assim a família que, segundo o desígno de Deus, é a célula base
da sociedade, sujeito de direitos e deveres antes do Estado e de qualquer outra
comunidade, encontra-se como vítima da sociedade, dos atrasos e da lentidão das
suas intervenções e ainda mais das suas patentes injustiças.
Por tudo isto a Igreja
defende aberta e fortemente os direitos da família contra as intoleráveis
usurpações da sociedade e do Estado. De modo particular, os Padres Sinodais
recordam, entre outros, os seguintes direitos da família:
- o direito de existir
e progredir como família, isto é o direito de cada homem, mesmo o pobre, a
fundar uma família e a ter os meios adequados para a sustentar;
- o direito de exercer
as suas responsabilidades no âmbito de transmitir a vida e de educar os filhos;
- o direito à intimidade
da vida conjugal e familiar;
- o direito à
estabilidade do vínculo e da instituição matrimonial;
- o direito de crer e
de professar a própria fé, e de a difundir;
- o direito de educar
os filhos segundo as próprias tradições e valores religiosos e culturais, com
os instrumentos, os meios e as instituições necessárias;
- o direito de obter a
segurança física, social, política, económica, especialmente tratando-se de
pobres e de enfermos;
- o direito de ter uma
habitação digna a conduzir convenientemente a vida familiar;
- o direito de
expressão e representação diante das autoridades públicas económicas, sociais e
culturais e outras inferiores, quer directamente quer através de associações;
- o direito de criar
associações com outras famílias e instituições, para um desempenho de modo
adequado e solícito do próprio dever;
- o direito de proteger
os menores de medicamentos prejudiciais, da pornografia, do alcoolismo, etc.
mediante instituições e legislações adequadas;
- o direito à
distracção honesta que favoreça também os valores da família;
- o direito das pessoas
de idade a viver e morrer dignamente;
A Santa Sé, acolhendo o
pedido explícito do Sínodo, terá o cuidado de aprofundar tais sugestões,
elaborando uma «Carta dos direitos da família» a propor aos ambientes e às
Autoridades interessadas.
Graça
e responsabilidade da família cristã
47.O dever social
próprio de cada família diz respeito, por um título novo e original, à família
cristã, fundada sobre o sacramento do matrimónio. Assumindo a realidade humana
do amor conjugal com todas as suas consequências, o sacramento habilita e
empenha os cônjuges e os pais cristãos a viver a sua vocação de leigos, e por
tanto a «procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e
ordenando-as segundo Deus»(113).
O dever social e
político reentra naquela missão real ou de serviço da qual os esposos cristãos
participam pela força do sacramento do matrimónio, recebendo ao mesmo tempo um
mandamento ao qual não podem subtrair-se e uma graça que os sustenta e
estimula.
Em tal modo a família
cristã é chamada a oferecer a todos o testemunho de uma dedicação generosa e
desinteressada pelos problemas sociais, mediante a «opção preferencial» pelos
pobres e marginalizados. Por isso, progredindo no caminho do Senhor mediante
uma predilecção especial para com todos os pobres, deve cuidar especialmente
dos esfomeados, dos indigentes, dos anciãos, dos doentes, dos drogados, dos sem
família.
Para
uma nova ordem internacional
48.Diante da dimensão
mundial que hoje caracteriza os vários problemas sociais, a família vê
alargar-se de modo completamente novo o seu dever para com o desenvolvimento da
sociedade: trata-se também de uma cooperação para uma nova ordem internacional,
porque só na solidariedade mundial se podem enfrentar e resolver os enormes e
dramáticos problemas da justiça no mundo, da liberdade dos povos, da paz da
humanidade.
A comunhão espiritual
das famílias cristãs, radicadas na fé e esperança comuns e vivificadas pela
caridade, constitui uma energia interior que dá origem, difunde e desenvolve
justiça, reconciliação, fraternidade e paz entre os homens. Como «pequena
Igreja», a família cristã é chamada, à semelhança da «grande Igreja» a ser
sinal de unidade para o mundo e a exercer deste modo o seu papel profético,
testemunhando o Reino e a paz de Cristo, para os quais o mundo inteiro caminha.
As famílias cristãs
poderão fazê-lo quer através da sua obra educativa, oferecendo aos filhos um
modelo de vida fundada sobre os valores da verdade, da liberdade, da justiça e
do amor, quer com um empenho activo e responsável no crescimento autenticamente
humano da sociedade e das suas instituições, quer mantendo de vários modos
associações que especificamente se dedicam aos problemas de ordem
internacional.
IV - A
PARTICIPAÇÃO NA VIDA
E NA MISSÃO DA IGREJA
E NA MISSÃO DA IGREJA
A
família no mistério da Igreja
49.Entre os deveres
fundamentais da família cristã estabelece-se o dever eclesial: colocar-se ao
serviço da edificação do Reino de Deus na história, mediante a participação na
vida e na missão da Igreja.
Para melhor compreender
os fundamentos, os conteúdos e as características de tal participação, ocorre
aprofundar os vínculos múltiplos e profundos que ligam entre si a Igreja e a
família cristã, e constituem esta última como «uma Igreja em miniatura» (Ecclesia
domestica)(114), fazendo com que esta, a seu modo,
seja imagem viva e representação histórica do próprio mistério da Igreja.
É antes de tudo a
Igreja Mãe que gera, educa, edifica a família cristã, operando em seu favor a
missão de salvação que recebeu do Senhor. Com o anúncio da Palavra de Deus, a
Igreja revela à família cristã a sua verdadeira identidade, o que ela é e deve
ser segundo o desígnio do Senhor; com a celebração dos sacramentos, a Igreja
enriquece e corrobora a família cristã com a graça de Cristo em ordem à sua
santificação para a glória do Pai; com a renovada proclamação do mandamento
novo da caridade, a Igreja anima e guia a família cristã ao serviço do amor, a
fim de que imite e reviva o mesmo amor de doação e sacrifício, que o Senhor
Jesus nutre pela humanidade inteira.
Por sua vez a família
cristã está inserida a tal ponto no mistério da Igreja que se torna
participante, a seu modo, da missão de salvação própria da Igreja: os cônjuges
e os pais cristãos, em virtude do sacramento, «têm assim, no seu estado de vida
e na sua ordem, um dom próprio no Povo de Deus»(115). Por isso não só «recebem» o amor de
Cristo tornando-se comunidade «salva», mas também são chamados a «transmitir»
aos irmãos o mesmo amor de Cristo, tornando-se assim comunidade «salvadora».
Deste modo, enquanto é fruto e sinal da fecundidade sobrenatural da Igreja, a
família cristã torna-se símbolo, testemunho, participação da maternidade da
Igreja(116).
Uma
função eclesial própria e original
50.A família cristã é
chamada a tomar parte viva e responsável na missão da Igreja de modo próprio e
original, colocando-se ao serviço da Igreja e da sociedade no seu ser e agir,
enquanto comunidade íntima de vida e de amor.
Se a família cristã é
comunidade, cujos vínculos são renovados por Cristo mediante a fé e os
sacramentos, a sua participação na missão da Igreja deve dar-se segundo
uma modalidade comunitária: conjuntamente,
portanto, os cônjuges enquanto casal, os pais e os filhos enquanto
família, devem viver o seu serviço à Igreja e ao mundo. Devem ser na fé «um
só coração e uma só alma»(117), através do espírito apostólico comum
que os anima e mediante a colaboração que os empenha nas obras de serviço à
comunidade eclesial e civil.
A família cristã, pois,
edifica o Reino de Deus na história mediante aquelas mesmas realidades quotidianas
que dizem respeito e contradistinguem a sua condição de vida: é
então no amor conjugal e familiar - vivido na sua
extraordinária riqueza de valores e exigências de totalidade, unicidade,
fidelidade e fecundidade(118) - que se exprime e se realiza a
participação da família cristã na missão profética, sacerdotal e real de Jesus
Cristo e da sua Igreja: o amor e a vida constituem portanto o núcleo da missão
salvífica da família cristã na Igreja e pela Igreja
O Concílio Vaticano II
recorda-o quando escreve: «Cada família comunicará generosamente com as outras
as próprias riquezas espirituais. Por isso, a família cristã, nascida de um
matrimónio que é imagem e participação da aliança de amor entre Cristo e a
Igreja, manifestará a todos a presença viva do Salvador no mundo e a autêntica
natureza da Igreja, quer por meio do amor dos esposos, quer pela sua generosa
fecundidade, unidade e fidelidade, quer pela amável cooperação de todos os seus
membros»(119).
Posto assim o fundamento da
participação da família cristã na missão eclesial, é agora o momento de
ilustrar o seuconteúdo na tríplice e unitária referencia a Jesus Cristo
Profeta, Sacerdote e Rei, apresentando por isso a família cristã como 1)
comunidade crente e evangelizadora, 2) comunidade em diálogo com Deus, 3)
comunidade ao serviço do homem.
1) A Família
cristã, comunidade crente e evangelizadora
A fé,
descoberta e admiração do desígnio de Deus sobre a família
51.Partícipe da vida e
da missão da Igreja, que está em religiosa escuta da Palavra de Deus e a
proclama com firme confiança(120), a família cristã vive a sua
tarefa profética acolhendo e anunciando a Palavra de Deus: torna-se assim,
cada dia mais comunidade crente e evangelizadora.
Também aos esposos e
aos pais cristãos é pedida a obediência da fé(121): são chamados a acolher a Palavra do
Senhor, que a eles revela a extraordinária novidade - a Boa Nova - da sua vida
conjugal e familiar, feita por Cristo santa e santificante. De facto, somente
na fé eles podem descobrir e admirar com jubilosa gratidão a que dignidade Deus
quis elevar o matrimónio e a família, constituindo-os sinal e lugar da aliança
de amor entre Deus e os homens, entre Jesus Cristo e a Igreja sua esposa.
A preparação para o
matrimónio cristão é já qualificada como um itinerário de fé: põe-se, de facto,
como ocasião privilegiada para que os noivos descubram e aprofundem a fé
recebida no baptismo e alimentada com a educação cristã. Desta forma reconhecem
e acolhem livremente a vocação de seguir o caminho de Cristo e de se pôr ao
serviço do Reino de Deus no estado matrimonial.
O momento fundamental
da fé dos esposos é dado pela celebração do sacramento do matrimónio, que na
sua natureza profunda é a proclamação, na Igreja, da Boa-Nova sobre o amor
conjugal: é Palavra de Deus que «revela» e «cumpre» o sábio e amoroso projecto
que Deus tem sobre os esposos, introduzidos na misteriosa e real participação
do próprio amor de Deus pela humanidade. Se em si mesma a celebração
sacramental do matrimónio é proclamação da Palavra de Deus, enquanto os noivos
são a título vário protagonistas e celebrantes, deve ser uma «profissão de fé»
feita dentro da Igreja e com a Igreja comunidade dos crentes.
Esta profissão de fé
exige o seu prolongamento no decurso da vida dos esposos e da família: Deus,
que de facto, chamou os esposos «ao» matrimónio, continua a chamá-los «no»
martimónio(122). Dentro e através dos factos, dos
problemas, das dificuldades, dos acontecimentos da existência de todos os dias,
Deus vai-lhes revelando e propondo as «exigências» concretas da sua
participação no amor de Cristo pela Igreja em relação com a situação particular
- familiar, social e eclesial - na qual se encontram.
A descoberta e a
obediência ao desígnio de Deus devem fazer-se «conjuntamente» pela comunidade
conjugal e familiar, através da mesma experiência humana do amor vivido do
Espírito de Cristo entre os esposos, entre os pais e os filhos
Por isto, como a grande
Igreja, assim também a pequena Igreja doméstica tem necessidade de ser contínua
e intensamente evangelizada: daqui o seu dever de educação permanente na fé.
O
ministério de evangelização da família cristã
52. Na medida em que a
família cristã acolhe o Evangelho e amadurece na fé torna-se comunidade
evangelizadora. Escutemos de novo Paulo VI: «A família, como a Igreja, deve ser
um lugar onde se transmite o Evangelho e donde o Evangelho irradia. Portanto no
interior de uma família consciente desta missão, todos os componentes
evangelizam e são evangelizados. Os pais não só comunicam aos filhos o
Evangelho, mas podem também receber deles o mesmo Evangelho profundamente
vivido. Uma tal família torna-se, então, evangelizadora de muitas outras
famílias e do ambiente no qual está inserida»(123).
Como repetiu o Sínodo,
retomando o meu apelo lançado em Puebla, a futura evangelização depende em
grande parte da Igreja doméstica(124). Esta missão apostólica da família tem
as suas raízes no baptismo e recebe da graça sacramental do matrimónio uma nova
força para transmitir a fé, para santificar e transformar a sociedade actual
segundo o desígnio de Deus.
A família cristã,
sobretudo hoje, tem uma especial vocação para ser testemunha da aliança pascal
de Cristo, mediante a irradiação constante da alegria do amor e da certeza da
esperança, da qual deve tornar-se reflexo: «A família cristã proclama em alta
voz as virtudes presentes do Reino de Deus e a esperança na vida
bem-aventurada»(125).
A absoluta necessidade
da catequese familiar surge com singular vigor em determinadas situações que
infelizmente a Igreja experimenta em diversos lugares: «Onde uma legislação
anti-religiosa pretende impedir até a educação na fé, onde uma incredulidade
difundida ou um secularismo invasor tornam praticamente impossível um
verdadeiro crescimento religioso, aquela que poderia ser chamada "Igreja
doméstica" fica como único ambiente, no qual crianças e jovens podem receber
uma autêntica catequese»(126).
Um
serviço eclesial
53. O ministério de
evangelização dos pais cristãos é original e insubstituível: assume as
conotações típicas da vida familiar, entrelaçada como deveria ser com o amor,
com a simplicidade, com o sentido do concreto e com o testemunho do quotidiano(127).
A família deve formar
os filhos para a vida, de modo que cada um realize plenamente o seu dever
segundo a vocação recebida de Deus. De facto, a família que está aberta aos
valores do transcendente, que serve os irmãos na alegria, que realiza com
generosa fidelidade os seus deveres e tem consciência da sua participação
quotidiana no mistério da Cruz gloriosa de Cristo, torna-se o primeiro e o
melhor seminário da vocação à vida consagrada ao Reino de Deus.
O ministério de
evangelização e de catequese dos pais deve acompanhar também a vida dos filhos
nos anos da adolescência e da juventude, quando estes, como muitas vezes
acontece, contestam ou mesmo rejeitam a fé cristã recebida nos primeiros anos
da vida. Como na Igreja a obra de evangelização nunca se separa do sofrimento
do apóstolo, assim na família cristã os pais devem enfrentar com coragem e com
grande serenidade de animo as dificuldades que o seu ministério de evangelização
algumas vezes encontra nos próprios filhos.
Não se deverá esquecer
que o serviço dos cônjuges e pais cristãos a favor do Evangelho é
essencialmente um serviço eclesial, isto é, reentra no contexto da Igreja
inteira, qual comunidade evangelizada e evangelizadora. Enquanto radicado e
derivado da única missão da Igreja e enquanto ordenado à edificação do único
Corpo de Cristo(128), o ministério de evangelização e de
catequese da Igreja doméstica deve permanecer em comunhão intima e deve
harmonizar-se responsavelmente com todos os outros serviços de evangelização e
de catequese presentes e operantes na comunidade eclesial, quer diocesana quer
paroquial.
Pregar
o Evangelho a toda a criatura
54. A universalidade
sem fronteiras é o horizonte próprio da evangelização, animada interiormente
pelo impulso missionário: é de facto a resposta explicita e inequívoca ao
mandato de Cristo: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a
criatura»(129).
Também a fé e a missão
evangelizadora da família cristã prosseguem este alento missionário católico. O
sacramento do matrimónio que retoma e volta a propor o dever, radicado no
baptismo e na confirmação, de defender e difundir a fé(130), constitui os cônjuges e os pais
cristãos testemunhas de Cristo «até aos confins do mundo»(131), verdadeiros e próprios «missionários»
do amor e da vida.
Uma certa forma de
actividade missionária pode desenvolver-se já na mesma família. Isto acontece
quando algum dos seus membros não tem fé ou não a pratica com coerência. Em tal
caso, os familiares devem oferecer-lhe um testemunho de vida de fé que o
estimule e encoraje no caminho para a plena adesão a Cristo Salvador(132).
Animada já
interiormente pelo espírito missionário, a Igreja doméstica é chamada a ser um
sinal luminoso da presença de Cristo e do seu amor mesmo para os «afastados»,
para as famílias que ainda não crêem e para aquelas que já não vivem em
coerência com a fé recebida: é chamada «com o seu exemplo e com o seu
testemunho» a iluminar «aqueles que procuram a verdade»(133).
Como já no início do
cristianismo Áquila e Priscila se apresentavam como casal missionário(134), assim hoje a Igreja testemunha a sua
incessante novidade e rejuvenescimento com a presença de cônjuges e de famílias
cristãs que, ao menos durante um certo período de tempo, estão nas terras de
missão a anunciar o Evangelho, servindo o homem com o amor de Jesus Cristo.
As famílias cristãs dão
um contributo particular à causa missionária da Igreja cultivando as vocações
missionárias nos seus filhos e filhas(135) e, de uma forma mais generalizada, com
uma obra educativa que vai «dispondo os filhos, desde a infância para
conhecerem o amor de Deus por todos os homens»(136).
2) A família
cristã, comunidade em diálogo com Deus
O
santuário doméstico da Igreja
55. O anúncio do
Evangelho e a sua aceitação pela fé atingem a plenitude na celebração
sacramental. A Igreja, comunidade crente e evangelizadora, é também povo
sacerdotal, revestido de dignidade e participante do poder de Cristo Sumo
Sacerdote da Nova e Eterna Aliança(137).
A família cristã também
está inserida na Igreja, povo sacerdotal: mediante o sacramento do matrimónio,
no qual está radicada e do qual se alimenta, é continuamente vivificada pelo
Senhor Jesus, e por Ele chamada e empenhada no diálogo com Deus mediante a vida
sacramental, o oferecimento da própria existência e a oração.
É este o múnus
sacerdotal que a família cristã pode e deve exercitar em comunhão
íntima com toda a Igreja, através das realidades quotidianas da vida conjugal e
familiar: em tal sentido a família cristã é chamada a santificar-se e a
santificar a comunidade cristã e o mundo.
O
matrimónio, sacramento de santificação mútua e acto de culto
56. O sacramento do
matrimónio, que retoma e especifica a graça santificante do baptismo, é a fonte
própria e o meio original de santificação para os cônjuges. Em virtude do
mistério da morte e ressurreição de Cristo, dentro do qual se insere novamente
o matrimónio cristão, o amor conjugal é purificado e santificado: «O Senhor
dignou-se sanar, aperfeiçoar e elevar este amor com um dom especial de graça e
caridade»(138).
O dom de Jesus Cristo
não se esgota na celebração do matrimónio, mas acompanha os cônjuges ao longo
de toda a existência. O Concílio Vaticano II recorda-o explicitamente, quando
diz que Jesus Cristo «permanece com eles, para que, assim como Ele amou a
Igreja e se entregou por ela, de igual modo os cônjuges, dando-se um ao outro,
se amem com perpétua fidelidade... Por este motivo, os esposos cristãos são
fortalecidos e como que consagrados em ordem aos deveres do seu estado por meio
de um sacramento especial; cumprindo, graças à energia deste, a própria missão
conjugal e familiar, penetrados do espírito de Cristo que impregna toda a sua
vida de fé, esperança e caridade, avançam sempre mais na própria perfeição e
mútua santificação e cooperam assim juntos para a glória de Deus»(139).
A vocação universal à
santidade é dirigida também aos cónjuges e aos pais cristãos: é especificada
para eles pela celebração do sacramento e traduzida concretamente nas
realidades próprias da existência conjugal e familiar(140). Nascem daqui a graça e a exigência de
uma autêntica e profundo espiritualidade conjugal e familiar, que
se inspire nos motivos da criação, da aliança, da cruz, da ressurreição e do
sinal, sobre cujos temas se deteve várias vezes o Sínodo.
O matrimónio cristão,
como todos os sacramentos que «estão ordenados à santificação dos homens, à
edificação do Corpo de Cristo, e enfim, a prestar culto a Deus»(141), é em si mesmo um acto litúrgico de
louvor a Deus em Jesus Cristo e na Igreja: celebrando-o, os cônjuges cristãos
professam a sua gratidão a Deus pelo dom sublime que lhes foi dado de poder
reviver na sua existência conjugal e familiar o mesmo amor de Deus pelos homens
e de Cristo pela Igreja sua esposa.
E como do sacramento
derivam para os cônjuges o dom e a obrigação de viver no quotidiano a
santificação recebida, assim do mesmo sacramento dimanam a graça e o empenho
moral de transformar toda a sua vida num contínuo «sacrifício espiritual»(142). Ainda aos esposos e aos pais
cristãos, particularmente para aquelas realidades terrenas e temporais que os
caracterizam, se aplicam as palavras do Concílio: «E deste modo, os leigos,
agindo em toda a parte santamente, como adoradores, consagram a Deus o próprio
mundo»(143).
Matrimónio
e Eucaristia
57. O dever de
santificação da família tem a sua primeira raiz no baptismo e a sua expressão
máxima na Eucaristia, à qual está intimamente ligado o matrimónio cristão. O
Concílio Vaticano II quis chamar a atenção para a relação especial que existe
entre a Eucaristia e o matrimónio pedindo que: «o matrimónio se celebre
usualmente dentro da Missa»(144). Redescobrir e aprofundar tal relação
é absolutamente necessário, se se quiser compreender e viver com uma maior
intensidade as graças e as responsabilidades do matrimónio e da família cristã.
A Eucaristia é a fonte
própria do matrimónio cristão. O sacrifício eucarístico, de facto, representa a
aliança de amor de Cristo com a Igreja, enquanto sigilada com o sangue da sua
Cruz(145). Neste sacrifício da Nova e Eterna
Aliança é que os cônjuges cristãos encontram a raiz da qual brota, é interiormente
plasmada e continuamente vivificada a sua aliança conjugal. Como representação
do sacrifício de amor de Cristo pela Igreja, a Eucaristia é fonte de caridade.
E no dom eucarístico da caridade a família cristã encontra o fundamento e a
alma da sua «comunhão» e da sua «missão»: o Pão eucarístico faz dos diversos
membros da comunidade familiar um único corpo, revelação e participação na mais
ampla unidade da Igreja; a participação pois ao Corpo «dado» e ao Sangue
«derramado» de Cristo torna-se fonte inesgotável do dinamismo missionário e
apostólico da família cristã.
O
sacramento da conversão e da reconciliação
58. Uma parte essencial
e permanente do dever de santificação da família cristã é o acolhimento do
apelo evangélico de conversão dirigido a todos os cristãos, que nem sempre
permanecem fiéis à «novidade» daquele baptismo que os constituiu «santos». A
família cristã também nem sempre é coerente com a lei da graça e da santidade
baptismal, proclamada de novo pelo sacramento do matrimónio.
O arrependimento e o
mútuo perdão no seio da família cristã, que se revestem de tanta importância na
vida quotidiana, encontram o seu momento sacramental específico na Penitência
cristã. Aos cônjuges escrevia assim Paulo VI, na Encíclica Humanae Vitae: «Se o pecado os atingir, não desanimem,
mas recorram com humilde perseverança à misericórdia de Deus, que com
prodigalidade é generosamente dada no sacramento da Penitência»(146).
A celebração deste
sacramento dá à vida familiar um significado particular: ao descobrirem pela fé
como o pecado contradiz não só a aliança com Deus, mas também a aliança dos
cônjuges e a comunhão da família, os esposos e todos os membros da família são
conduzidos ao encontro com Deus «rico em misericórdia»(147), o qual, alargando o seu amor que é
mais forte do que o pecado(148), reconstrói e aperfeiçoa a aliança
conjugal e a comunhão familiar.
A
oração familiar
59. A Igreja reza pela
família cristã e educa-a a viver em generosa coerência com o dom e o dever
sacerdotal, recebido de Cristo Sumo Sacerdote. Na realidade, o sacerdócio
baptismal dos fiéis, vivido no matrimónio-sacramento, constitui para os
cônjuges e para a família o fundamento de uma vocação e de uma missão
sacerdotal, pela qual a própria existência quotidiana se transforma num
«sacrifício espiritual agradável a Deus por meio de Jesus Cristo»(149): é o que acontece, não só com a
celebração da Eucaristia e dos outros sacramentos e com a oferenda de si mesmos
à glória de Deus, mas também com a vida de oração, com o diálogo orante com o
Pai por Jesus Cristo no Espírito Santo.
A oração familiar tem
as suas características. É uma oração feita em comum, marido e
mulher juntos, pais e filhos juntos. A comunhão na oração é, ao mesmo tempo,
fruto e exigência daquela comunhão que é dada pelos sacramentos do baptismo e
do matrimónio. Aos membros da família cristã podem aplicar-se de modo
particular as palavras com que Cristo promete a sua presença: «Digo-vos ainda:
se dois de vós se unirem, na terra, para pedirem qualquer coisa, obtê-la-ão de
Meu Pai que está nos Céus. Pois onde estiverem reunidos, em Meu nome, dois ou
três, Eu estou no meio deles»(150)
A oração familiar tem
como conteúdo original a própria vida de família, que em todas as
suas diversas fases é interpretada como vocação de Deus e actuada como resposta
filial ao Seu apelo: alegrias e dores, esperanças e tristezas, nascimento e
festas de anos, aniversários de núpcias dos pais, partidas, ausências e
regressos, escolhas importantes e decisivas, a morte de pessoas queridas, etc.,
assinalam a intervenção do amor de Deus, na história da família, assim como
devem marcar o momento favorável para a acção de graças, para a impetração, para
o abandono confiante da família ao Pai comum que está nos céus. A dignidade e a
responsabilidade da família cristã como Igreja doméstica só podem pois ser
vividas com a ajuda incessante de Deus, que não faltará, se implorada com
humildade e confiança na oração.
Educadores
de oração
60. Em virtude da sua
dignidade e missão, os pais cristãos têm o dever específico de educar os filhos
para a oração, de os introduzir na descoberta progressiva do mistério de Deus e
no colóquio pessoal com Ele: «É sobretudo na família cristã, ornada da graça e
do dever do sacramento do matrimónio, que devem ser ensinados os filhos desde
os primeiros anos, segundo a fé recebida no Baptismo, a conhecer e a adorar
Deus e amar o próximo»(151).
Elemento fundamental e
insubstituível da educação para a oração é o exemplo concreto, o testemunho
vivo dos pais: só rezando em conjunto com os filhos, o pai e a mãe, enquanto
cumprem o próprio sacerdócio real, entram na profundidade do coração dos
filhos, deixando marcas que os acontecimentos futuros da vida não conseguirão
fazer desaparecer. Tornemos a escutar o apelo que o Papa Paulo VI dirigiu aos
pais: «Mães, ensinais aos vossos filhos as orações do cristão? Em consonância
com os Sacerdotes, preparais os vossos filhos para os sacramentos da primeira
idade: confissão, comunhão, crisma? Habituai-los, quando enfermos, a pensar em
Cristo que sofre? a invocar o auxílio de Nossa Senhora e dos Santos? Rezais o
terço em família? E vós, Pais, sabeis rezar com os vossos filhos, com toda a
comunidade doméstica, pelo menos algumas vezes? O vosso exemplo, na rectidão do
pensamento e da acção, sufragada com alguma oração comum, tem o valor de uma
lição de vida, tem o valor de um acto de culto de mérito particular; levais
assim a paz às paredes domésticas: "Pax huic domui!". Recordai: deste
modo construís a Igreja!»(152).
Oração
litúrgica e privada
61. Entre a oração da
Igreja e a de cada um dos fiéis há uma profunda e vital relação, como reafirmou
claramente o Concílio Vaticano II(153).
Ora uma finalidade
importante da oração da Igreja doméstica é a de constituir, para os filhos, a
introdução natural à oração litúrgica própria da Igreja inteira, no sentido
quer de uma preparação para ela, quer de a alargar ao âmbito da vida pessoal,
familiar e social. Daqui a necessidade de uma participação progressiva de todos
os membros da família cristã na Eucaristia, sobretudo na dominical e festiva, e
nos outros sacramentos, em particular nos da iniciação cristã dos filhos. As
directivas conciliares abriram uma nova possibilidade à família cristã, que foi
incluída entre os grupos aos quais se recomenda a celebração comunitária do
Ofício divino(154). Assim também está ao cuidado da
família cristã celebrar, mesmo em casa e de forma adaptada aos seus membros, os
tempos e as festividades do ano litúrgico.
Para preparar e
prolongar em casa o culto celebrado na Igreja, a família cristã recorre à
oração privada, que se apresenta sob uma grande variedade de formas: esta
variedade, enquanto testemunho da riqueza extraordinária com a qual o Espírito
anima a oração cristã, responde às diversas exigências e situações da vida de
quem se volta para o Senhor. Além das orações da manhã e da tarde são de aconselhar
expressamente - seguindo também indicações dos Padres Sinodais - a leitura e a
meditação da Palavra de Deus, a preparação para a recepção dos sacramentos, a
devoção e consagração ao Coração de Jesus, as várias formas de culto à
Santíssima Virgem, a bênção da mesa, as práticas de piedade popular.
No respeito pela
liberdade dos filhos de Deus, a Igreja propôs e continua a sugerir aos fiéis
algumas práticas de piedade com solicitude e insistência particulares. Entre
estas é de lembrar a recitação do Rosário: «Queremos agora, em continuidade de
pensamento com os nossos Predecessores, recomendar vivamente a recitação do
Santo Rosário em família... Não há dúvida de que o Rosário da bem-aventurada
Virgem Maria deve ser considerado uma das mais excelentes e eficazes orações em
comum, que a família cristã é convidada a recitar Dá-nos gosto pensar e
desejamos vivamente que, quando o encontro familiar se transforma em tempo de
oração, seja o Rosário a sua expressão frequente e preferida»(155). Desta maneira a autêntica devoção
mariana, que se exprime no vínculo sincero e na generosa série das posições
espirituais da Virgem Santíssima, constitui um instrumento privilegiado para
alimentar a comunhão de amor da família e para desenvolver a espiritualidade
conjugal e familiar. Ela, a Mãe de Cristo e da Igreja, é também, de facto, de
forma especial, a Mãe das famílias cristãs, das Igrejas domésticas.
Oração
e vida
62. Nunca se
deverá esquecer que a oração é parte constitutiva essencial da vida cristã,
tomada na sua integralidade e centralidade; mais ainda, pertence à nossa mesma
«humanidade»: é «a primeira expressão da vida interior do homem, a primeira
condição da autêntica liberdade do espírito»(156).
Por isso, a oração não
representa de modo algum uma evasão que desvia do empenho quotidiano, mas
constitui o impulso mais forte para que a família cristã assuma e cumpra em
plenitude todas as suas responsabilidades de célula primeira e fundamental da
sociedade humana. Em tal sentido, a efectiva participação na vida e na missão
da Igreja no mundo é proporcional à fidelidade e à intensidade da oração com
que a família cristã se une à Videira fecunda, Cristo Senhor(157).
Da união vital com
Cristo, alimentada pela Liturgia, pelo oferecimento de si e da oração, deriva
também a fecundidade da família cristã no seu serviço específico de promoção
humana, que de per si não pode não levar à transformação do mundo(158).
3) A família
cristã, comunidade ao serviço do homem
O
mandamento novo do amor
63. A Igreja, povo
profético, sacerdotal e real, tem a missão de levar todos os homens a acolher
na fé a Palavra de Deus, a celebrá-la e a professá-la nos sacramentos e na
oração, e, por fim, a manifestá-la na vida concreta segundo o dom e o
mandamento novo do amor.
A vida cristã encontra
a sua lei não num código escrito, mas na acção pessoal do Espírito Santo que
anima e guia o cristão, isto é, na «lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus»(159): «o amor de Deus foi derramado em
nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido»(160).
Isto vale também para o
casal e para a família cristã: seu guia e norma é o Espírito de Jesus, difundido
nos corações com a celebração do sacramento do matrimónio. Em continuidade com
o baptismo na água e no Espírito, o matrimónio propõe outra vez a lei
evangélica do amor, e, com o dom do Espírito, grava-a mais profundamente no
coração dos cónjuges cristãos: o seu amor, purificado e salvo, é fruto do
Espírito, que age no coração dos crentes e se põe, ao mesmo tempo, como
mandamento fundamental da vida moral pedida à liberdade responsável deles.
A família cristã é
deste modo animada e guiada pela nova lei do Espírito e em íntima comunhão com
a Igreja, povo real, chamada a viver o seu «serviço» de amor a Deus e aos
irmãos. Como Cristo exerce o seu poder real pondo-se ao serviço dos homens(161), assim o cristão encontra o sentido
autêntico da sua participação na realeza do seu Senhor ao condividir com Ele o
espírito e a atitude de serviço no que diz respeito ao homem: «Comunicou
(Cristo) este poder aos discípulos, para que também eles sejam constituídos em
régia liberdade e, com a abnegação de si mesmos e a santidade da vida, vençam
em si próprios o reino do pecado (cfr. Rom. 6, 12); mais ainda,
para que, servindo a Cristo também nos outros, conduzam os seus irmãos, com
humildade e paciência, àquele Pai, a quem servir é reinar. Pois o Senhor deseja
dilatar também por meio dos leigos o Seu reino, reino de verdade e de vida,
reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz, no qual a
própria criação será liberta da servidão da corrupção alcançando a liberdade da
glória dos filhos de Deus (cfr. Rom. 8, 21)»(162).
Descobrir
em cada irmão a imagem de Deus
64. Animada e
sustentada pelo mandamento novo do amor, a família cristã vive a acolhida, o
respeito, o serviço para com a homem, considerado sempre na sua dignidade de
pessoa e de filho de Deus.
Isto deve acontecer,
antes de tudo, no e para o casal e para a família, mediante o empenho
quotidiano de promover uma autêntica comunidade de pessoas, fundada e
alimentada por uma íntima comunhão de amor. Deve além disso ampliar-se para o
círculo mais universal da comunidade eclesial, dentro da qual a família cristã
está inserida: graças à caridade da família, a Igreja pode e deve assumir uma
dimensão mais doméstica, isto é, mais familiar, adoptando um estilo de relações
mais humano e fraterno.
A caridade ultrapassa
os próprios irmãos na fé, porque «todo o homem é meu irmão»; em cada um,
sobretudo se pobre, fraco, sofredor e injustamente tratado, a caridade sabe
descobrir o rosto de Cristo e um irmão a amar e a servir.
Para que o serviço ao
homem seja vivido pela família segundo o estilo evangélico será necessário pôr
em prática com urgência o que escreve o Concílio Vaticano II: «Para que este
exercício da caridade seja e apareça acima de toda a suspeita, considere-se no
próximo a imagem de Deus, para o qual foi criado, veja-se nele Cristo, a quem
realmente se oferece tudo o que ao indigente se dá»(163).
A família cristã,
enquanto edifica a Igreja pela caridade, põe-se ao serviço do homem e do mundo,
actuando verdadeiramente a «promoção humana», cujo conteúdo se encontra
sintetizado na Mensagem do Sínodo à família: «É vossa tarefa formar os homens
para o amor e educá-los a agir com amor em todas as relações humanas, de modo
que o amor fique aberto à comunidade inteira, permeado do sentido de justiça e
de respeito para com os demais, cônscio da própria responsabilidade para com a
mesma sociedade»(164).
QUARTA
PARTE
A
PASTORAL FAMILIAR:
ETAPAS, ESTRUTURAS, RESPONSÁVEIS
E SITUAÇÕES
ETAPAS, ESTRUTURAS, RESPONSÁVEIS
E SITUAÇÕES
I - AS ETAPAS DA
PASTORAL FAMILIAR
A
Igreja acompanha a família cristã no seu caminho
65. Como toda a
realidade vivente, também a família é chamada a desenvolver-se e a crescer.
Depois da preparação do noivado e da celebração sacramental do matrimónio, o casal
inicia o caminho quotidiano para a progressiva actuação dos valores e dos
deveres do próprio matrimónio.
À luz da fé e em
virtude da esperança, também a família cristã participa, em comunhão com a
Igreja, na experiência de peregrinação na terra para a plena revelação e
realização do Reino de Deus.
Sublinha-se, portanto,
uma vez mais a urgência da intervenção pastoral da Igreja em prol da família. É
preciso empregar todas as forças para que a pastoral da família se afirme e
desenvolva, dedicando-se a um sector verdadeiramente prioritário, com a certeza
de que a evangelização, no futuro, depende em grande parte da Igreja doméstica(165).
A solicitude pastoral
da Igreja não se limitará somente às famílias cristãs mais próximas, mas,
alargando os próprios horizontes à medida do coração de Cristo, mostrar-se-á
ainda mais viva para o conjunto das famílias em geral e para aquelas, em
particular, que se encontram em situações difíceis ou irregulares. Para todas a
Igreja terá uma palavra de verdade, de bondade, de compreensão, de esperança,
de participação viva nas suas dificuldades por vezes dramáticas; a todas
oferecerá ajuda desinteressada a fim de que possam aproximar-se do modelo de
família, que o Criador quis desde o «princípio» e que Cristo renovou com a
graça redentora.
A acção pastoral da
Igreja deve ser progressiva, também no sentido de que deve seguir a família,
acompanhando-a passo a passo nas diversas etapas da sua formação e
desenvolvimento.
A
preparação
66. A preparação dos
jovens para o matrimónio e para a vida familiar é necessária hoje mais do que
nunca. Em alguns países são ainda as mesmas famílias que, segundo costumes
antigos, se reservam transmitir aos jovens os valores que dizem respeito à vida
matrimonial e familiar, mediante uma obra progressiva de educação ou iniciação.
Mas as mudanças verificadas no seio de quase todas as sociedades modernas
exigem que não só a família, mas também a sociedade e a Igreja se empenhem no
esforço de preparar adequadamente os jovens para as responsabilidades do seu
futuro. Muitos fenómenos negativos que hoje se lamentam na vida familiar
derivam do facto que, nas situações novas, os jovens não só perdem de vista a
justa hierarquia dos valores, mas, não possuindo critérios seguros de
comportamento, não sabem como enfrentar e resolver as novas dificuldades.
Contudo a experiência ensina que os jovens bem preparados para vida familiar,
em geral, têm mais êxito do que os outros.
Isto vale mais ainda
para o matrimónio cristão, cuja influência repercute na santidade de tantos
homens e mulheres. Por isso a Igreja deve promover melhores e mais intensos
programas de preparação para o matrimónio, a fim de eliminar, o mais possível,
as dificuldades com que se debatem tantos casais, e sobretudo para favorecer
positivamente o aparecimento e o amadurecimento de matrimónios com êxito.
A preparação para o
matrimónio deve ver-se e actuar-se como um processo gradual e contínuo. Compreende,
de facto, três momentos principais: uma preparação remota, outra próxima e uma
outra imediata.
A preparação
remota tem início desde a infância, naquela sábia pedagogia familiar,
orientada a conduzir as crianças a descobrirem-se a si mesmas como seres
dotados de uma rica e complexa psicologia e de uma personalidade particular com
as forças e fragilidades próprias. É o período em que é infundida a estima por
todo o valor humano autêntico, quer nas relações interpessoais, quer nas
sociais, com tudo o que significa para a formação do carácter, para o domínio e
recto uso das inclinações próprias, para o modo de considerar e encontrar as
pessoas do outro sexo, etc. É pedida, além disso, especialmente aos cristãos,
uma sólida formação espiritual e catequética, que saiba mostrar o matrimónio
como verdadeira vocação e missão sem excluir a possibilidade do dom total de si
a Deus na vocação à vida sacerdotal ou religiosa.
É nesta base que, em
seguida e mais amplamente, se porá o problema da preparação próxima,
que - desde a idade oportuna e com adequada catequese, como em forma de caminho
catecumenal - compreende uma preparação mais específica, quase uma nova
descoberta dos sacramentos. Esta catequese renovada de todos os que se preparam
para o matrimónio cristão é absolutamente necessária, para que o sacramento
seja celebrado e vivido com rectas disposições morais e espirituais. A formação
religiosa dos jovens deverá ser integrada, no momento conveniente e segundo as
várias exigências concretas, numa preparação para a vida a dois que,
apresentando o matrimónio como uma relação interpessoal do homem e da mulher em
contínuo desenvolvimento, estimule a aprofundar os problemas da sexualidade
conjugal e da paternidade responsável, com os conhecimentos médico-biológicos
essenciais que lhe estão anexos, e os leve à familiaridade com métodos
adequados de educação dos filhos, favorecendo a aquisição dos elementos de base
para uma condução ordenada da família (por exemplo, trabalho estável,
disponibilidade financeira suficiente, administração sábia, noções de economia
doméstica).
Por fim não se deverá
omitir a preparação para o apostolado familiar, para a fraternidade e
colaboração com as outras famílias, para a inserção activa nos grupos,
associações, movimentos e iniciativas que têm por finalidade o bem humano e
cristão da família.
A preparação
imediata para a celebração do sacramento do matrimónio deve ter lugar
nos últimos meses e semanas que precedem as núpcias quase a dar um novo
significado, um novo conteúdo e forma nova ao chamado exame pré matrimonial
exigido pelo direito canónico. Sempre necessária em todos os casos, tal
preparação impõe-se com maior urgência para aqueles noivos que apresentam
carências e dificuldades na doutrina e na prática cristã.
Entre os elementos a
comunicar neste caminho de fé, análogo ao do catecumenato, deve incluir-se uma
profunda consciência do mistério de Cristo e da Igreja, dos significados de
graça e de responsabilidade do matrimónio cristão, assim como a preparação para
tomar parte activa e consciente nos ritos da liturgia nupcial.
Nas diversas fases de
preparação para o matrimónio - que delineámos somente em grandes traços
indicativos - devem sentir-se empenhadas a família cristã e toda a comunidade
eclesial. É desejável que as Conferências episcopais, interessadas em
iniciativas oportunas para ajudar os futuros esposos a serem mais conscientes
da seriedade da sua escolha e os pastores a certificarem-se das suas
convenientes disposições, publiquem um Directório para a pastoral da
família. Nele deverão estabelecer, antes de tudo, os elementos mínimos de
conteúdo, de duração e de métodos dos «Cursos de preparação», equilibrando os
diversos aspectos - doutrinais, pedagógicos, legais e médicos - e estudando-os
de modo que quantos se preparam para o matrimónio, para além de um
aprofundamento intelectual, se sintam estimulados a inserirem-se vitalmente na
comunidade eclesial.
Muito embora o carácter
de necessidade e de obrigatoriedade da preparação imediata não seja de
menosprezar - o que aconteceria se se concedesse facilmente a dispensa -
todavia, tal preparação deve ser sempre proposta e actuada de modo que a sua
eventual omissão não seja impedimento à celebração do matrimónio.
A
celebração
67. O matrimónio
cristão exige, por norma, uma celebração litúrgica que exprima de forma social
e comunitária a natureza essencialmente eclesial sacramental do pacto conjugal
entre os baptizados.
Enquanto gesto
sacramental de santificação, a celebração do matrimónio - inserida na
liturgia, cume de toda a acção da Igreja e fonte da sua força santificadora(166)- deve ser por si válida, digna e
frutuosa. Abre-se aqui um campo vasto à solicitude pastoral a fim de que sejam
plenamente cumpridas as exigências derivantes da natureza do pacto conjugal
elevado a sacramento, e seja de igual modo fielmente observada a disciplina da
Igreja sobre a liberdade do consentimento, os impedimentos, a forma canónica e
o próprio rito da celebração. Este último deve ser simples e digno, de acordo
com os princípios das competentes autoridades da Igreja, às quais também
incumbe - segundo as circunstâncias concretas de tempo e de lugar e em
conformidade com as normas emanadas da Sé Apostólica(167) - assumir eventualmente na celebração
litúrgica elementos próprios de uma determinada cultura, que exprimam de forma
mais adequada o profundo significado humano e religioso do pacto conjugal,
desde que nada contenham de menos condizente com a fé e a moral cristãs.
Enquanto sinal,
a celebração litúrgica deve desenvolver-se de maneira a constituir, mesmo no
seu aspecto exterior, uma proclamação da Palavra de Deus e uma profissão de fé
da comunidade dos crentes. O empenhamento pastoral terá aqui a sua expressão no
diligente cuidado da preparação da «Liturgia da Palavra» e na educação para a
fé dos que assistem à celebração e, em primeiro lugar, dos nubentes.
Enquanto gesto
sacramental da Igreja, a celebração litúrgica do matrimónio deve envolver a
comunidade cristã, com uma participação plena, activa e responsável de todos os
presentes, de acordo com a posição e a função de cada um: os esposos, o
sacerdote, as testemunhas, os parentes, os amigos, os demais fiéis: todos os
membros de uma assembleia que manifesta e vive o mistério de Cristo e da sua
Igreja.
Para a celebração do
matrimónio cristão no âmbito de culturas ou tradições ancestrais, sigam-se os
princípios já acima enunciados.
Celebração
do matrimónio e evangelização dos baptizados não crentes
68.Exactamente porque
na celebração do sacramento se presta uma atenção muito especial às disposições
morais e espirituais dos nubentes, em particular à sua fé, enfrentamos aqui uma
dificuldade não rara, que podem encontrar os pastores da Igreja no contexto da
nossa sociedade secularizada.
Com efeito, a fé de quem
pede casar-se pela Igreja pode existir em graus diversos e é dever primário dos
pastores fazê-la descobrir de novo, nutri-la e torná-la madura. Devem, além
disso, compreender as razões que levam a Igreja a admitir à celebração do
matrimónio mesmo aqueles que estão imperfeitamente dispostos.
O matrimónio tem de
específico o ser sacramento de uma realidade que já existe na economia da
criação: o mesmo pacto conjugal instituído pelo Criador «desde o princípio». A
decisão do homem e da mulher de se casarem segundo este projecto divino, a
decisão de empenharem no seu irrevogável consenso conjugal toda a vida num amor
indissolúvel e numa fidelidade incondicional, implica realmente, mesmo se não
em modo plenamente consciente, uma disposição de profunda obediência à vontade
de Deus, que não pode acontecer sem a graça. Portanto inserem-se já num
verdadeiro e próprio caminho de salvação, que a celebração do sacramento e a
sua imediata preparação podem completar e levar a termo, dada a rectidão da
intenção deles.
É verdade, contudo,
que, em alguns territórios, motivos de carácter mais social que autenticamente
religioso, induzem os noivos a casarem-se na igreja. Não admira. O matrimónio,
na verdade, não é um acontecimento que diz respeito só a quem se casa. Por sua
própria natureza é também um facto social, que compromete os esposos ante a
sociedade. Desde sempre a sua celebração se faz com festa, que une as famílias
e os amigos. É normal, portanto, que entrem motivos sociais, juntamente com os
pessoais, na petição do casamento na igreja.
Todavia, não se deve
esquecer que estes noivos, pela força do seu baptismo, estão já realmente
inseridos na Aliança nupcial de Cristo com a Igreja e que, pela sua recta
intenção, acolheram o projecto de Deus sobre o matrimónio, e, portanto, ao
menos implicitamente, querem aquilo que a Igreja faz quando celebra o
matrimónio. Portanto, o mero facto de neste pedido entrarem motivos de carácter
social, não justifica uma eventual recusa da celebração do matrimónio pelos
pastores. De resto, como ensinou o Concílio Vaticano II, os sacramentos com as
palavras e os elementos rituais nutrem e robustecem a fé:(168) aquela fé para a qual os noivos já
estão encaminhados pela força da rectidão da sua intenção, que a graça de
Cristo não deixa certamente de favorecer e de sustentar.
Querer estabelecer
critérios ulteriores de admissão à celebração eclesial do matrimónio, que
deveriam considerar o grau de fé dos nubentes, compreende, além do mais, riscos
graves. Antes de tudo, o de pronunciar juízos infundados e discriminatórios;
depois, o risco de levantar dúvidas sobre a validade de matrimónios já celebrados,
com dano grave para as comunidades cristãs, e de novas inquietações
injustificadas para a consciência dos esposos; cair-se-ia no perigo de
contestar ou de pôr em dúvida a sacramentalidade de muitos matrimónios de
irmãos separados da comunhão plena com a Igreja Católica, contradizendo assim a
tradição eclesial.
Quando, pelo contrário,
não obstante todas as tentativas feitas, os nubentes mostram recusar de modo
explícito e formal o que a Igreja quer fazer ao celebrar o matrimónio dos
baptizados, o pastor não os pode admitir à celebração. Mesmo se constrangido,
ele tem o dever de avaliar a situação e fazer compreender aos interessados que,
estando assim as coisas, não é a Igreja, mas eles mesmos a impedirem a
celebração que não obstante pedem.
Mais uma vez se
manifesta com toda a urgência a necessidade de uma evangelização e catequese
pré e pós matrimoniais, feitas por toda a comunidade cristã, para que cada
homem e cada mulher que se casam, o possam fazer de modo a celebrarem o
sacramento do matrimónio não só válida mas também frutuosamente.
Pastoral
pós-matrimonial
69.O cuidado pastoral
da família regularmente constituída significa, em concreto, o empenho de todos
os membros da comunidade eclesial local em ajudar a casal a descobrir e a viver
a sua nova vocação e missão. Para que a família se transforme mais numa
verdadeira comunidade de amor, é necessário que todos os membros sejam ajudados
e formados para as responsabilidades próprias diante dos novos problemas que se
apresentam, para o serviço recíproco, para a comparticipação activa na vida da
família.
Isto vale sobretudo
para as famílias jovens, as quais, encontrando-se num contexto de novos valores
e de novas responsabilidades, estão mais expostas, especialmente nos primeiros
anos de matrimónio, a eventuais dificuldades, como as criadas pela adaptação à
vida em comum ou pelo nascimento dos filhos. Os jovens cônjuges saibam acolher
cordialmente e inteligentemente valorizar a ajuda discreta, delicada e generosa
de outros casais, que já de há tempo fazem a mesma experiência do matrimónio e
da família. Assim, no seio da comunidade eclesial - grande família formada
pelas famílias cristãs - realizar-se-á um intercambio mútuo de presença e ajuda
entre todas as famílias, cada uma pondo ao serviço das outras a própria
experiência humana, como também os dons da fé e da graça. Animada de verdadeiro
espírito apostólico, esta ajuda de família a família constituirá um dos modos
mais simples, mais eficazes e ao alcance de todos para transfundir capilarmente
os valores cristãos, que são o ponto de partida e de chegada do trabalho
pastoral. Deste modo as famílias jovens não se limitarão só a receber, mas por
sua vez, assim ajudadas, tornar-se-ão fonte de enriquecimento para outras
famílias, há tempo constituídas, com o seu testemunho de vida e o seu
contributo de facto.
Na acção pastoral para
com as famílias jovens, a Igreja deverá prestar uma atenção específica para as
educar a viver responsavelmente o amor conjugal em relação com as exigências de
comunhão e de serviço à vida, como também a conciliar a intimidade da vida de
casa com a obra comum e generosa de edificar a Igreja e a sociedade humana.
Quando, com a vinda dos filhos, o casal se torna em sentido pleno e específico
uma família, a Igreja estará ainda próxima dos pais para que os acolham e os
amem à luz do dom recebido do Senhor da vida, assumindo com alegria a fadiga de
os servir no seu crescimento humano e cristão.
II - ESTRUTURAS DA
PASTORAL FAMILIAR
A acção pastoral é
sempre expressão dinâmica da realidade da Igreja, empenhada na missão de
salvação. Também a pastoral familiar - forma particular e específica da
pastoral - tem como seu principio operativo e como protagonista responsável a
mesma Igreja, através das suas estruturas e dos seus responsáveis.
A
comunidade eclesial e a paróquia em particular
70.Sendo ao mesmo tempo
comunidade salva e salvadora, a Igreja deve considerar-se aqui na sua dupla
dimensão universal e particular: esta exprime-se e actua-se na comunidade
diocesana, pastoralmente dividida em comunidades menores entre as quais se
distingue, pela sua importância peculiar, a paróquia.
A comunhão com a Igreja
universal não mortifica, mas garante e promove a consistência e originalidade
das diversas Igrejas particulares; estas últimas são o sujeito operativo mais
imediato e mais eficaz para a actuação da pastoral familiar. Em tal sentido
cada Igreja local e, em termos mais particularizados, cada comunidade
paroquial, deve ter consciência mais viva da graça e da responsabilidade que
recebe do Senhor em ordem a promover a pastoral da família. Nenhum plano de
pastoral orgânica, a qualquer nível que seja, pode prescindir da pastoral da
família.
À luz de tal
responsabilidade deve compreender-se também a importância de uma adequada
preparação da parte de quantos estarão mais especificamente empenhados neste
género de apostolado. Os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, desde o
tempo de formação, sejam orientados e formados de maneira progressiva e
adequada para os respectivos deveres. Entre outras iniciativas alegro-me de
poder sublinhar a recente criação em Roma, na Pontifícia Universidade
Lateranense, de um Instituto Superior consagrado ao estudo dos problemas da
família. Já em algumas dioceses foram fundados Institutos deste género: Os
bispos empenhem-se para que o maior número possível de sacerdotes, antes de
assumirem responsabilidades paroquiais, frequente cursos especializados.
Noutras partes realizam-se periodicamente cursos de formação em Institutos
Superiores de estudos Teológicos e Pastorais. Tais iniciativas são de
encorajar, sustentar, multiplicar e abrir obviamente também aos leigos que
desempenharão o seu trabalho profissional (médico, legal, psicológico, social e
educativo) de ajuda à família.
A
família
71.Mas deve sobretudo
reconhecer-se o lugar especial que, neste campo, compete à missão dos cônjuges
e das famílias cristãs, em virtude da graça recebida no sacramento. Tal missão
deve ser posta ao serviço da edificação da Igreja, da construção do Reino de
Deus na história. Isto é pedido como acto de obediência dócil a Cristo Senhor
Com efeito, Ele, pela força do matrimónio dos baptizados elevado a sacramento,
confere aos esposos cristãos uma missão peculiar de apóstolos, enviando-os como
operários para a sua vinha, e, de forma muito particular, para este campo da
família.
Na sua actividade eles
agem em comunhão e colaboração com os outros membros da Igreja, que também
trabalham para a família, pondo a render os seus dons e ministérios. Tal
apostolado desenvolver-se-á antes de tudo no seio da própria família, com o
testemunho da vida vivida em conformidade com a lei divina em todos os
aspectos, com a formação cristã dos filhos, com a ajuda dada ao seu
amadurecimento na fé, com a educação à castidade, com a preparação para a vida,
com a vigilância para os preservar dos perigos ideológicos e morais de que são
muitas vezes ameaçados, com a sua gradual e responsável inserção na comunidade
eclesial e na civil, com a assistência e o conselho na escolha da vocação, com
a mútua ajuda entre os membros da família para um comum crescimento humano e
cristão, e assim por diante. O apostolado da família irradiar-se-á com obras de
caridade espiritual e material para com as outras famílias, especialmente
aquelas mais necessitadas de ajuda e de amparo, para com os pobres, os doentes,
os mais velhos, os deficientes, os órfãos, as viúvas, os cônjuges abandonados,
as mães solteiras e aquelas que em situações difíceis são tentadas a
desfazerem-se do fruto do seu seio, etc.
As
associações de famílias ao serviço das famílias
72.Sempre no âmbito da
Igreja, responsável pela pastoral familiar, são para lembrar as diversas
associações de fiéis, nas quais se manifesta e se vive de algum modo o mistério
da Igreja de Cristo. Devem, portanto reconhecer-se e valorizar-se - cada uma em
relação às características, finalidades, influxo e métodos próprios - as
diversas comunidades eclesiais, os vários grupos, e os numerosos movimentos
empenhados de modo vário, a diversos títulos e a diversos níveis, na pastoral
familiar.
Por este motivo o
Sínodo reconheceu expressamente a utilidade de tais associações de
espiritualidade, de formação e de apostolado. Será seu dever suscitar nos fiéis
um vivo sentido de solidariedade, favorecer uma conduta de vida inspirada no
Evangelho e na fé da Igreja, formar as consciências segundo os valores cristãos
e não de acordo com os parâmetros da opinião pública, estimular para as obras
de caridade mútua e para com os outros com um espírito de abertura, que faça
das famílias cristãs uma verdadeira fonte de luz e um fermento sadio para as
demais.
Igualmente é desejável
que, com um sentido vivo do bem comum, as famílias cristãs se empenhem
activamente a todos os níveis, mesmo com outras associações não eclesiais.
Algumas destas associações visam a preservação, transmissão e tutela dos sãos
valores éticos e culturais de cada povo, o desenvolvimento da pessoa humana, a
protecção médica, jurídica e social da maternidade e da infância, a justa
promoção da mulher e a luta contra o que calca a sua dignidade, o incremento da
solidariedade mútua, o conhecimento dos problemas conexos com a regulação
responsável da fecundidade segundo os métodos naturais conformes à dignidade
humana e à doutrina da Igreja. Outras têm em vista a construção de um mundo
mais justo e mais humano, a promoção de leis justas que favoreçam a recta ordem
social no respeito pleno da dignidade e da legítima liberdade do indivíduo e da
família, a nível nacional ou internacional, a colaboração com a escola e com as
outras instituições que completam a educação dos filhos, e assim
sucessivamente.
III - OS RESPONSÁVEIS
DA PASTORAL FAMILIAR
Para além da família -
objecto, mas sobretudo ela mesma sujeito da pastoral familiar - devem
recordar-se também, os outros principais responsáveis neste sector particular.
Bispos
e presbíteros
73. O
primeiro responsável da pastoral familiar na diocese é o bispo. Como Pai e
Pastor, ele deve estar atento de um modo particular a este sector da pastoral,
sem dúvida prioritário. Deve consagrar-lhe uma grande dedicação, solicitude,
tempo, pessoal, recursos; sobretudo, porém, apoio pessoal às famílias e a
quantos, nas diversas estruturas diocesanas, o ajudam na pastoral da família.
Empenhar-se-á particularmente no propósito de fazer com que a sua diocese se
torne sempre mais uma verdadeira «família diocesana» modelo e fonte de
esperança para tantas famílias que a integram. A criação do Conselho Pontifício
para a Família está neste contexto: sinal da importância que atribuo à pastoral
da família no mundo, e ao mesmo tempo instrumento eficaz de ajuda à sua
promoção em todos os níveis.
Os bispos são
auxiliados de modo particular pelos presbíteros, cuja missão - como
expressamente sublinhou o Sínodo - integra essencialmente o ministério da
Igreja para com o matrimónio e a família. O mesmo se diga dos diáconos, aos
quais eventualmente venha a ser confiado este sector da pastoral.
A sua responsabilidade
estende-se não só aos problemas morais e litúrgicos, mas também aos pessoais e
sociais. Devem sustentar a família nas suas dificuldades e sofrimentos,
pondo-se ao lado dos seus membros, ajudando-os a ver a vida à luz do Evangelho.
Não é supérfluo notar que, se tal missão for exercida com o devido
discernimento e com um verdadeiro espírito apostólico, o ministro da Igreja
recebe novos estímulos e energias espirituais mesmo para a própria vocação e
para o exercício do seu ministério.
Oportuna e seriamente
preparados para tal apostolado, o sacerdote ou o diácono devem portar-se
constantemente, em relação às famílias, como pai, irmão, pastor e mestre,
ajudando-as com os dons da graça e iluminando-as com a luz da verdade. O seu
ensinamento e os seus conselhos, portanto, deverão estar sempre em plena
consonância com o Magistério autêntico da Igreja, de modo a ajudar o Povo de
Deus a formar-se um recto sentido da fé a aplicar à vida concreta. Tal
fidelidade ao Magistério permitirá também aos sacerdotes procurar
empenhadamente a unidade nos seus juízos, para evitarem ansiedades na
consciência dos fiéis.
Pastores e leigos
participam, na Igreja, da missão profética de Cristo: os leigos, testemunhando
a fé com palavras e com a vida cristã; os pastores, discernindo em tal
testemunho o que é expressão da fé genuína e o que não corresponde
originalmente à luz da mesma fé; a família, enquanto comunidade cristã, com a
sua participação peculiar e testemunho de fé. Pode estabelecer-se assim um
diálogo entre os pastores e as famílias. Os teólogos e os peritos em problemas
familiares podem ajudar muito a tal diálogo, explicando com exactidão o
conteúdo do Magistério da Igreja e o da experiência da vida em família. Desta
maneira a ensinamento do Magistério será melhor compreendido e será aplanada a
estrada para o seu progressivo desenvolvimento. Convém contudo recordar que a
norma próxima e obrigatória na doutrina da fé - mesmo sobre os problemas da
família - compete ao Magistério hierárquico. A clareza de relações entre
teólogos, peritos de problemas familiares e o Magistério ajudam muito a uma
recta inteligência da fé e à promoção - dentro dos seus próprios limites - do
legítimo pluralismo.
Religiosos
e religiosas
74.O contributo que os
religiosos e as religiosas, e as almas consagradas em geral, podem dar ao
apostolado da família encontra a primeira, fundamental e original expressão
exactamente na consagração a Deus que os torna «diante de todos os fiéis...
chamada daquele admirável conúbio realizado por Deus e que se manifestará
plenamente no século futuro, pelo que a Igreja tem Cristo como único esposo»(169), e testemunhas daquela caridade
universal que por meio da castidade abraçada pelo Reino dos céus, os torna
sempre mais disponíveis para se dedicarem generosamente ao serviço divino e às
obras do apostolado.
Daqui a possibilidade
de que os religiosos e as religiosas, membros de Institutos seculares e de
outros Institutos de perfeição, singularmente ou associados, desenvolvam um
serviço seu às famílias, com solicitude particular para com as crianças,
especialmente se abandonadas, indesejadas, órfãs, pobres ou deficientes;
visitando as famílias e tendo em atenção especial os doentes; cultivando
relações de respeito e de caridade com as famílias incompletas, em dificuldade
ou desagregadas; oferecendo o próprio trabalho de ensino e de consulta para a
preparação dos jovens ao matrimónio e para a ajuda aos casais em relação a uma
procriação verdadeiramente responsável; abrindo as próprias casas à
hospitalidade simples e cordial, a fim de que as famílias possam encontrar lá o
sentido de Deus, o gosto da oração e do recolhimento, o exemplo concreto de uma
vida vivida em caridade e alegria fraterna como membros de uma família maior
que é a de Deus.
Desejo acrescentar uma
exortação mais solícita aos responsáveis dos Institutos de vida consagrada,
para que queiram considerar - sempre no respeito substancial pelo seu carisma
original e próprio - o apostolado ao serviço das famílias como um dos deveres
prioritários, tornado mais urgente pelo estado hodierno das coisas.
Leigos
especializados
75.Podem prestar grande
ajuda às famílias os leigos especializados (médicos, juristas, psicólogos,
assistentes sociais, consulentes, etc....) quer individualmente quer empenhados
em diversas associações e iniciativas, com trabalho de esclarecimento, de
conselho, de orientação, de apoio. A eles bem podem aplicar-se as exortações
que tive ocasião de dirigir à Conferência dos consulentes familiares de
inspiração cristã: «A vossa tarefa bem merece o qualificativo de missão, tão
nobres são as finalidades que visa e tão determinantes, para o bem da sociedade
e da mesma comunidade cristã, os resultados que dela derivam... Tudo o que
conseguirdes fazer em favor da família é destinado a ter uma eficácia que,
ultrapassando o âmbito próprio, chegará também a outras pessoas e influirá
sobre a sociedade. O futuro do mundo e da Igreja passa através da família»(170).
Usuários
e operadores da comunicação social
76.Deve reservar-se uma
palavra para esta categoria tão importante na vida moderna. É mais que sabido
que os instrumentos de comunicação social «influem, e muitas vezes
profundamente, quer sob o aspecto afectivo e intelectual, quer sob o aspecto
moral e religioso, no animo de quantos os usam», especialmente se jovens(171). Podem ter um influxo benéfico sobre a
vida e sobre os costumes da família e sobre a educação dos filhos, mas escondem
também «insídias e perigos consideráveis»(172), e poder-se-ão tornar veículo - às
vezes hábil e sistematicamente manobrado como infelizmente acontece em vários
países do mundo - de ideologias desagregadoras e de visões deformadas da vida,
da família, da religião, da moralidade, não respeitosas da verdadeira dignidade
e do destino do homem.
Perigo tanto mais real,
enquanto «o modo hodierno de viver - principalmente nas nações mais industrializadas
- leva bastantes vezes as famílias a descarregarem-se das suas
responsabilidades educativas, encontrando na facilidade de evasão
(representada, em casa, especialmente pela televisão e por certas publicações)
o meio de terem ocupado o tempo e as actividades das crianças e dos jovens»(173). Daqui «o dever ... de proteger
especialmente as crianças e os jovens das "agressões" que sofrem por
parte dos mass-media», procurando usá-los em família de modo cuidadosamente
regrado. Assim também deveria preocupar a família encontrar para os seus filhos
outros divertimentos mais sadios, mais úteis e formativos física, moral e
espiritualmente, «para potenciar e valorizar o tempo livre dos jovens e
encaminhar-lhes as energias»(174).
Já que os instrumentos
de comunicação social - ao mesmo tempo que a escola e o ambiente - influem
muitas vezes notavelmente na formação dos filhos, os pais, enquanto usuários,
devem constituir-se parte activa no seu uso moderado, crítico, vigilante e
prudente, individuando qual a repercussão tida nos filhos, e exercendo mediação
orientadora «de educar a consciência dos filhos a exprimir juízos serenos e
objectivos, que depois a guiem na escolha e na rejeição dos programas
propostos»(175).
Com idêntico interesse,
os pais procurarão influir na escolha e na preparação dos programas,
mantendo-se - com iniciativas oportunas - em contacto com os responsáveis dos
vários momentos da produção e da transmissão para se assegurarem que não serão
abusivamente postos de lado ou expressamente conculcados aqueles valores
humanos fundamentais que fazem parte do verdadeiro bem comum da sociedade, mas,
pelo contrário, sejam difundidos programas aptos a apresentar, na sua
verdadeira óptica, os problemas da família e a sua adequada solução. A tal
propósito o meu predecessor de veneranda memória, Paulo VI, escrevia: «Os
produtores devem conhecer e respeitar as exigências da família, o que supõe,
por vezes, uma grande coragem e sempre um alto sentido de responsabilidade. Com
efeito, devem evitar tudo o que possa lesar a família na sua existência, na sua
estabilidade, no seu equilíbrio, na sua felicidade. A ofensa aos valores
fundamentais da família - trate-se de erotismo ou de violência, de apologia do
divórcio ou de atitudes anti-sociais dos jovens - é uma ofensa ao bem
verdadeiro do homem»(176).
E eu mesmo, em ocasião
análoga fazia notar que as famílias «devem poder contar não pouco com a boa
vontade, rectidão e sentido de responsabilidade dos profissionais dos media:
editores, escritores, produtores, directores, dramaturgos, informadores,
comentadores e actores»(177). Por isso, é imperioso que também a
Igreja continue a dedicar toda a atenção a estas categorias de responsáveis,
encorajando e sustentando, ao mesmo tempo, aqueles católicos que se sentem
chamados e que tem dotes, a um empenhamento neste sector tão delicado.
IV - A PASTORAL
FAMILIAR NOS CASOS DIFÍCEIS
Circunstâncias
particulares
77.Um empenho pastoral
ainda mais generoso, inteligente e prudente, na linha do exemplo do Bom Pastor,
é pedido para aquelas famílias que - muitas vezes independentemente da própria
vontade ou pressionadas por outras exigências de natureza diversa - se
encontram em situações objectivamente difíceis.
A este propósito é
necessário voltar especialmente a atenção para algumas categorias particulares,
mais necessitadas não só de assistência, mas de uma acção mais incisiva sobre a
opinião pública e sobretudo sobre as estruturas culturais, económicas e
jurídicas, a fim de se poderem eliminar ao máximo as causas profundas do seu
mal-estar.
Tais são, por exemplo,
as famílias dos emigrantes por motivos de trabalho; as famílias de quantos são
obrigados a ausências longas, como, por exemplo, os militares, os marinheiros,
os itinerantes de todo o tipo; as famílias dos presos, dos prófugos e dos
exilados; as famílias que vivem praticamente marginalizadas nas grandes
cidades; aquelas que não têm casa, as incompletas ou «monoparentais»; as
famílias com filhos deficientes ou drogados; as famílias dos alcoólatras; as
desenraizadas do seu ambiente social e cultural ou em risco de perdê-lo; as
discriminadas por motivos políticos ou por outras razões; as famílias
ideologicamente divididas; as que dificilmente conseguem ter um contacto com a
paróquia; as que sofrem violência ou tratamentos injustos por causa da própria
fé; as que se compõem de cônjuges menores; os anciãos, não raramente forçados a
viver na solidão e sem meios adequados de subsistência.
As
famílias dos emigrantes, tratando-se especialmente de operários e
de agricultores devem encontrar em toda a parte, na Igreja, a sua pátria. É
este um dever conatural à Igreja, sendo como é sinal de unidade na diversidade.
Na medida do possível sejam assistidos pelos sacerdotes do seu próprio rito,
cultura e idioma. Diz respeito também à Igreja apelar à consciência pública e a
quantos exercem a autoridade sobre a vida social, económica e política, para
que os operários encontrem trabalho na sua região e pátria. sejam retribuídos
com um salário justo, as famílias se voltem a unir o mais depressa possível,
sejam consideradas na sua identidade cultural, tratadas como as outras e aos
seus filhos sejam dadas oportunidades de formação profissional e de exercício
da profissão, como também da posse da terra necessária para trabalhar e viver.
Um problema difícil é o
das famílias ideologicamente divididas. Nestes casos há necessidade
de um particular cuidado pastoral. Antes de tudo é preciso, com discrição,
manter um contacto pessoal com tais famílias. Os crentes devem ser fortificados
na fé e sustentados na vida cristã. Embora a parte fiel ao catolicismo não
possa ceder, é preciso manter sempre vivo o diálogo com a outra parte. Devem
ser multiplicadas as manifestações de amor e de respeito, na esperança firme de
manter intocável a unidade. Depende muito também das relações entre pais e filhos.
As ideologias estranhas à fé poderão estimular os membros crentes da família a
crescer na fé e no testemunho de amor. Outros momentos difíceis em que a
família tem necessidade de ajuda da comunidade eclesial e dos seus pastores,
podem ser: a irrequieta adolescência contestadora e às vezes tumultuosa dos
filhos; o seu matrimónio, que os separa da família de origem; a incompreensão
ou a falta de amor da parte das pessoas mais queridas; o abandono do cônjuge ou
a sua perda, que faz começar a experiência dolorosa da viuvez, a morte de um
familiar, que mutila e transforma em profundidade o núcleo originário da
família.
Igualmente não pode ser
transcurado pela Igreja o momento da velhice, com todos os seus conteúdos
positivos e negativos: de possível aprofundamento do amor conjugal sempre mais
purificado e enobrecido pela longa e sempre contínua fidelidade; de
disponibilidade a pôr ao serviço dos outros, em forma nova, a bondade e a
sabedoria acumuladas e as energias que permanecem; de dura solidão, mais frequentemente
psicológica e afectiva que física, por um abandono eventual ou por uma atenção
insuficiente dos filhos e dos parentes; de sofrimento pela doença, pelo
progressivo declínio das forças, pela humilhação de ter que depender de outros,
pela amargura de se sentir talvez um peso para os seus próprios entes queridos,
pelo aproximar-se o fim da vida. São estas as ocasiões em que - como insinuaram
os Padres Sinodais - mais facilmente se compreendem e vivem aqueles elevados
aspectos da espiritualidade matrimonial e familiar, que se inspiram no valor da
Cruz e ressurreição de Cristo, fonte de santificação e de profunda alegria na
vida quotidiana, à luz das grandes realidades escatológicas da vida eterna.
Em todas estas variadas
situações nunca se descuide a oração, fonte de luz, de força e alimento da
esperança cristã.
Matrimónios
mistos
78. O número crescente
dos matrimónios entre católicos e outros baptizados exige uma peculiar atenção
pastoral à luz das orientações e das normas, contidas nos mais recentes documentos
da Santa Sé e das Conferências episcopais, para uma aplicação concreta às
diversas situações.
Os casais que vivem em
matrimónio misto apresentam exigências peculiares, que se podem reduzir a três
aspectos fundamentais.
Antes de tudo,
considerem-se as obrigações da parte católica derivantes da fé, no que
concernem ao seu livre exercício e a consequente obrigação de providenciar,
segundo as próprias forças, ao baptismo e à educação dos filhos na fé católica(178).
É necessário ter
presente as particulares dificuldades inerentes às relações entre marido e
mulher no que diz respeito à liberdade religiosa: esta pode ser violada seja
por pressões indevidas para obter a mudança de convicções religiosas do ou da
consorte, seja por impedimentos postos à sua livre manifestação na prática
religiosa.
No que diz respeito à
forma litúrgica e canónica do matrimónio, os Ordinários podem usar amplamente
das suas faculdades para as várias necessidades.
No tratamento destas
exigências especiais é preciso ter em conta os pontos seguintes:
- na preparação própria
para este tipo de matrimónio, deve ser feito um esforço razoável para
proporcionar um bom conhecimento da doutrina católica sobre as qualidades e
exigências do matrimónio, como também para se certificar de que no futuro não
se verifiquem as pressões e os obstáculos, de que até agora se tem tratado;
- é de suma importância
que, com o apoio da comunidade, a parte católica seja fortificada na fé e
ajudada positivamente a amadurecer na sua compreensão e na sua prática, de modo
a tornar-se testemunha autêntica no seio da família, mediante a vida e a qualidade
de amor demonstrado ao cônjuge e aos filhos.
Os matrimónios entre
católicos e outros baptizados, na sua fisionomia particular, apresentam
numerosos elementos que convêm valorizar e desenvolver, quer pelo seu valor
intrínseco, quer pela ajuda que podem dar ao movimento ecuménico. Isto é
verdade de um modo particular quando os dois cônjuges são fiéis aos seus
deveres religiosos. O baptismo comum e o dinamismo da graça fornecem aos
esposos, nestes matrimónios, a base e a motivação para exprimir a sua unidade
na esfera dos valores morais e espirituais.
Para tal fim, e mesmo
para pôr em evidência a importância ecuménica de um tal matrimónio misto,
vivido plenamente na fé pelos dois cônjuges cristãos, procure-se - mesmo que
nem sempre seja fácil - uma colaboração cordial entre o ministro católico e o
não católico, desde o momento da preparação para o matrimónio e para as
núpcias.
Quanto à participação
do cônjuge não católico na comunhão eucarística, sigam-se as normas emanadas do
Secretariado para a união dos cristãos(179).
Em várias partes do
mundo nota-se, hoje, um crescente número de matrimónios entre católicos e não
baptizados. Em muitos casos o cônjuge não baptizado professa uma outra religião
e as suas convicções devem ser tratadas com respeito, segundo os princípios da
Declaração Nostra Aetate do
Concílio Ecuménico Vaticano II sobre as relações com as religiões não cristãs;
mas em muitos outros, particularmente nas sociedades secularizadas, a pessoa
não baptizada não professa religião alguma. Para estes matrimónios é necessário
que as Conferências episcopais e cada bispo tomem medidas pastorais adequadas,
a fim de garantir a defesa da fé do cônjuge católico e o seu livre exercício,
principalmente no que se refere ao dever de fazer quanto estiver ao seu alcance
para que os filhos sejam baptizados e educados catolicamente. O cônjuge
católico deve ser, além disso, apoiado em todos os modos no empenhamento de
oferecer à própria família um genuíno testemunho de fé e de vida católica.
Acção
pastoral perante algumas situações irregulares
79. Na sua solicitude
pela tutela da família em todas as suas dimensões, não somente na dimensão
religiosa, o Sínodo dos Bispos não deixou de prestar atenta consideração a
algumas situações irregulares, religiosa e muitas vezes também civilmente, que
- nas rápidas mudanças culturais hodiernas - se vão infelizmente difundindo
mesmo entre os católicos, com não pequeno dano do instituto familiar e da
sociedade, de que constitui a célula fundamental.
a) O matrimónio
à experiência
80. Uma primeira
situação irregular é dada pelo que se chama «matrimónio à experiência», que
hoje muitos querem justificar, atribuindo-lhe um certo valor. A razão humana
insinua já a sua não aceitação, mostrando quanto seja pouco convincente que se
faça uma «experiência» em relação a pessoas humanas, cuja dignidade exige que
sejam elas só e sempre, o termo do amor de doação sem limite algum nem de tempo
nem de qualquer outra circunstância.
Por sua parte, a Igreja
não pode admitir um tal tipo de união por ulteriores motivos, originais,
derivantes da fé. Por um lado, com efeito, o dom do corpo na relação sexual é
símbolo real da doação de toda a pessoa: uma doação tal que, além do mais, na
actual economia da salvação não pode actuar-se com verdade plena sem o concurso
do amor de caridade, dado por Cristo. Por outro lado, o matrimónio entre duas
pessoas baptizadas é o símbolo real da união de Cristo com a Igreja, uma união
não temporária ou «à experiência», mas eternamente fiel; entre dois baptizados,
portanto, não pode existir senão um matrimónio indissolúvel.
Ordinariamente tal
situação não poder ser superada se a pessoa humana, desde a infância, com a
ajuda da graça de Cristo e sem temores, não for educada para o domínio da
concupiscência nascente e para estabelecer com os outros relações de amor
genuíno. Isso não se consegue sem uma verdadeira educação para o amor autêntico
e para o recto uso da sexualidade, de modo a introduzir a pessoa humana em
todas as suas dimensões, mesmo no referente ao próprio corpo, na plenitude do
mistério de Cristo.
Seria muito útil
indagar sobre as causas deste fenómeno, também no seu aspecto psicológico e
sociológico, para chegar a uma terapia adequada.
b) Uniões
livres de facto
81. Trata-se de uniões
sem nenhum vínculo institucional, civil ou religioso, publicamente reconhecido.
Este fenómeno - cada vez mais frequente - não deixará de chamar a atenção dos
pastores, exactamente porque existindo na sua base elementos muito diversos,
será possível actuar sobre eles e limitar-lhes as consequências.
Alguns, com efeito,
consideram-se quase constrangidos a tais uniões por situações difíceis de
carácter económico, cultural e religioso, já que contraindo um matrimónio
regular, seriam expostos a um dano, à perda de vantagens económicas, à
discriminação, etc. Outras, pelo contrário, fazem-no numa atitude de desprezo,
de contestação ou de rejeição da sociedade, do instituto familiar, do
ordenamento socio-político, ou numa busca única de prazer. Outros, enfim, são
obrigados pela extrema ignorância e pobreza, às vezes por condicionamentos
verificados por situações de verdadeira injustiça, ou também de uma certa
imaturidade psicológica, que os torna incertos e duvidosos na contracção de um
vínculo estável e definitivo. Em alguns países os costumes tradicionais prevêem
o matrimónio verdadeiro e próprio só depois de um período de coabitação e
depois do nascimento do primeiro filho.
Cada um destes
elementos põe à Igreja árduos problemas pastorais, pelas graves consequências
quer religiosas e morais (perda do sentido religioso do matrimónio à luz da
Aliança de Deus com o seu Povo; privação da graça do sacramento; escândalo
grave), quer também sociais (destruição do conceito de família; enfraquecimento
do sentido de fidelidade mesmo para com a sociedade; possíveis traumas
psicológicos nos filhos; afirmação do egoísmo).
Os pastores e a
comunidade eclesial serão diligentes em conhecer tais situações e as suas
causas concretas, caso por caso; em aproximar-se dos conviventes com discrição
e respeito; em esforçar-se com uma acção de esclarecimento paciente, de
caridosa correcção, de testemunho familiar cristão, que lhes possa aplanar o
caminho para regularizar a situação. Faça-se, sobretudo, obra de prevenção, cultivando
o sentido da fidelidade na educação moral e religiosa dos jovens, instruindo-os
acerca das condições e das estruturas que favorecem tal fidelidade, sem a qual
não há verdadeira liberdade, ajudando-os a amadurecer espiritualmente e
fazendo-lhes compreender a riqueza da realidade humana e sobrenatural do
matrimónio-sacramento.
O Povo de Deus actue
também junto das autoridades públicas, para que, resistindo a estas tendências
desagregadoras da própria sociedade e prejudiciais à dignidade, segurança e
bem-estar dos cidadãos, a opinião pública não seja induzida a menosprezar a
importância institucional do matrimónio e da família. E já que em muitas
regiões, pela pobreza extrema derivante de estruturas sócio-económicas injustas
ou inadequadas, os jovens não estão em condições de se casarem como convém, a
sociedade e as autoridades públicas favoreçam o matrimónio legítimo mediante
uma série de intervenções sociais e políticas, garantindo o salário familiar,
emanando disposições para uma habitação adaptada à vida familiar, criando
possibilidades adequadas de trabalho e de vida.
c) Católicos
unidos só em matrimónio civil
82. Difunde-se
sempre mais o caso de católicos que, por motivos ideológicos e práticos,
preferem contrair só matrimónio civil, rejeitando ou pelo menos adiando o
religioso. A sua situação não se pode equiparar certamente à dos simples
conviventes sem nenhum vinculo, pois que ali se encontra ao menos um
empenhamento relativo a um preciso e provavelmente estável estado de vida,
mesmo se muitas vezes não está afastada deste passo a perspectiva de um
eventual divórcio. Procurando o reconhecimento público do vínculo da parte do
Estado, tais casais mostram que estão dispostos a assumir, com as vantagens
também as obrigações. Não obstante, tal situação não é aceitável por parte da
Igreja.
A acção pastoral
procurará fazer compreender a necessidade da coerência entre a escolha de um
estado de vida e a fé que se professa, e tentará todo o possível para levar
tais pessoas a regularizar a sua situação à luz dos princípios cristãos.
Tratando-as embora com muita caridade, e interessando-as na vida das
respectivas comunidades, os pastores da Igreja não poderão infelizmente
admiti-las aos sacramentos.
d) Separados e
divorciados sem segunda união
83. Motivos diversos,
quais incompreensões recíprocas, incapacidade de abertura a relações
interpessoais, etc. podem conduzir dolorosamente o matrimónio válido a uma
fractura muitas vezes irreparável. Obviamente que a separação deve ser
considerada remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as
tentativas razoáveis.
A solidão e outras
dificuldades são muitas vezes herança para o cônjuge separado, especialmente se
inocente. Em tal caso, a comunidade eclesial deve ajudá-lo mais que nunca;
demonstrar-lhe estima, solidariedade, compreensão e ajuda concreta de modo que
lhe seja possível conservar a fidelidade mesmo na situação difícil em que se
encontra; ajudá-lo a cultivar a exigência do perdão própria do amor cristão e a
disponibilidade para retomar eventualmente a vida conjugal anterior.
Análogo é o caso do
cônjuge que foi vítima de divórcio, mas que - conhecendo bem a
indissolubilidade do vínculo matrimonial válido - não se deixa arrastar para
uma nova união, empenhando-se, ao contrário, unicamente no cumprimento dos
deveres familiares e na responsabilidade da vida cristã. Em tal caso, o seu
exemplo de fidelidade e de coerência cristã assume um valor particular de
testemunho diante do mundo e da Igreja, tornando mais necessária ainda, da
parte desta, uma acção contínua de amor e de ajuda, sem algum obstáculo à
admissão aos sacramentos.
e) Divorciados
que contraem nova união
84. A experiência
quotidiana mostra, infelizmente, que quem recorreu ao divórcio tem normalmente
em vista a passagem a uma nova união, obviamente não com o rito religioso
católico. Pois que se trata de uma praga que vai, juntamente com as outras,
afectando sempre mais largamente mesmo os ambientes católicos, o problema deve
ser enfrentado com urgência inadiável. Os Padres Sinodais estudaram-no
expressamente. A Igreja, com efeito, instituída para conduzir à salvação todos
os homens e sobretudo os baptizados, não pode abandonar aqueles que - unidos já
pelo vínculo matrimonial sacramental - procuraram passar a novas núpcias. Por
isso, esforçar-se-á infatigavelmente por oferecer-lhes os meios de salvação.
Saibam os pastores que,
por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações. Há, na
realidade, diferença entre aqueles que sinceramente se esforçaram por salvar o
primeiro matrimónio e foram injustamente abandonados e aqueles que por sua
grave culpa destruíram um matrimónio canonicamente válido. Há ainda aqueles que
contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes,
estão subjectivamente certos em consciência de que o prece dente matrimónio
irreparavelmente destruído nunca tinha sido válido.
Juntamente com o Sínodo
exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os
divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados
da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua
vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da
Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as
iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã,
a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a
dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe
misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança.
A Igreja, contudo,
reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão
eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos,
do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela
união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há,
além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à
Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da
Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio.
A reconciliação pelo
sacramento da penitência - que abriria o caminho ao sacramento eucarístico -
pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da
Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de
vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio. Isto tem
como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos
sérios - quais, por exemplo, a educação dos filhos - não se podem separar,
«assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos
actos próprios dos cônjuges»(180).
Igualmente o respeito
devido quer ao sacramento do matrimónio quer aos próprios cônjuges e aos seus
familiares, quer ainda à comunidade dos fiéis proíbe os pastores, por qualquer
motivo ou pretexto mesmo pastoral, de fazer em favor dos divorciados que
contraem uma nova união, cerimónias de qualquer género. Estas dariam a
impressão de celebração de novas núpcias sacramentais válidas, e
consequentemente induziriam em erro sobre a indissolubilidade do matrimónio
contraído validamente.
Agindo de tal maneira,
a Igreja professa a própria fidelidade a Cristo e à sua verdade; ao mesmo tempo
comporta-se com espírito materno para com estes seus filhos, especialmente para
com aqueles que sem culpa, foram abandonados pelo legítimo cônjuge.
Com firme confiança ela
vê que, mesmo aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor e vivem agora
nesse estado, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se
perseverarem na oração, na penitência e na caridade.
Os
sem-família
85. Desejo ainda
acrescentar uma palavra para uma categoria de pessoas que, pela situação
concreta em que se encontram - e muitas vezes não por sua vontade deliberada -
eu considero particularmente junto do Coração de Cristo e dignas do afecto e da
solicitude da Igreja e dos pastores.
Infelizmente há no
mundo muitíssimas pessoas que não podem referir-se de modo algum ao que poderia
definir-se em sentido próprio uma família. Grandes sectores da humanidade vivem
em condições de enorme pobreza, em que a promiscuidade, a carência de habitações,
a irregularidade e instabilidade das relações, a falta extrema de cultura não
permitem praticamente poder falar de verdadeira família. Há outras pessoas que,
por motivos diversos, ficaram sós no mundo. Também para todos estes há um «bom
anúncio da família».
Em favor de quantos
vivem na pobreza extrema, já falei da necessidade urgente de trabalhar com
coragem para se encontrarem soluções mesmo a nível político, que consintam
ajudar a superar estas condições desumanas de prostração. É um dever que incumbe,
solidariamente, à sociedade inteira, mas de uma maneira especial às autoridades
pela força do seu cargo e das responsabilidades consequentes, assim como às
famílias, que devem demonstrar grande compreensão e vontade de ajudar.
Àqueles que não têm uma
família natural, é preciso abrir ainda mais as portas da grande família que é a
Igreja, concretizada na família diocesana e paroquial, nas comunidades
eclesiais de base ou nos movimentos apostólicos. Ninguém está privado da
família neste mundo: a Igreja é casa e família para todos, especialmente para
quantos estão «cansados e oprimidos»(181).
CONCLUSÃO
A vós esposos, a vós
pais e mães de família;
a vós, jovens e
donzelas, que sois o futuro e a esperança da Igreja e do mundo e construireis o
núcleo que garantirá e dinamizará a família no terceiro milénio que se
aproxima;
a vós, veneráveis e
caros Irmãos no episcopado e no sacerdócio, queridos filhos religiosos e
religiosas, almas consagradas ao Senhor, que testemunhais aos esposos a
realidade última do amor de Deus;
a vós, homens todos de
coração recto, que por razões diversas vos preocupais da situação da família,
dirige-se com trepidante solicitude, a minha atenção ao final desta Exortação
Apostólica.
O
futuro da humanidade passa pela família!
É pois indispensável e
urgente que cada homem de boa vontade se empenhe em salvar e promover os
valores e as exigências da família.
Sinto-me no dever de
pedir aos filhos da Igreja um esforço especial neste campo. Conhecendo
plenamente, pela fé, o maravilhoso plano de Deus, eles têm uma razão mais para
se dedicar à realidade da família neste nosso tempo de prova e de graça.
Devem amar
particularmente a família. É o que concreta e exigentemente vos confio.
Amar a família
significa saber estimar os seus valores e possibilidades, promovendo-os sempre.
Amar a família significa descobrir os perigos e os males que a ameaçam, para
poder superá-los. Amar a família significa empenhar-se em criar um ambiente
favorável ao seu desenvolvimento. E, por fim, forma eminente de amor à família
cristã de hoje, muitas vezes tentada por incomodidades e angustiada por
crescentes dificuldades, é dar-lhe novamente razões de confiança em si mesma,
nas riquezas próprias que lhe advém da natureza e da graça e na missão que Deus
lhe confiou. «É necessário que as famílias do nosso tempo tomem novamente
altura! É necessário que sigam a Cristo»(182).
Compete ainda aos
cristãos a tarefa de anunciar com alegria e convicção a «boa nova»
acerca da família, que tem necessidade absoluta de ouvir e de compreender
sempre mais profundamente as palavras autênticas que lhe revelam a sua
identidade, os seus recursos interiores, a importância da sua missão na Cidade
dos homens e na de Deus.
A Igreja conhece o
caminho pelo qual a família pode chegar ao coração da sua verdade profunda.
Este caminho, que a Igreja aprendeu na escola de Cristo e da história
interpretada à luz do Espírito, não o impõe, mas sente a exigência indeclinável
de o propor a todos sem medo, com grande confiança e esperança, sabendo, porém,
que a «boa nova» conhece a linguagem da Cruz. É, no entanto, através da Cruz
que a família pode atingir a plenitude do seu ser e a perfeição do seu amor.
Desejo, por fim,
convidar todos os cristãos a colaborar, carinhosa e corajosamente,
com todos os homens de boa vontade, que vivem a responsabilidade própria no
serviço à família. Os que dentro da Igreja, em seu nome e sob a sua inspiração,
quer individualmente quer em grupos, movimentos ou associações, se consagram ao
bem da família, encontram muitas vezes a seu lado pessoas e instituições
empenhadas no mesmo ideal. Na fidelidade aos valores do Evangelho e do homem e
no respeito a um legítimo pluralismo de iniciativas, esta colaboração poderá
favorecer uma mais rápida e integral promoção da família.
E agora, ao concluir
esta mensagem pastoral, que visa chamar a atenção de todos sobre as pesadas mas
fascinantes tarefas da família cristã, desejo invocar a protecção da Família de
Nazaré.
Por misterioso desígnio
de Deus, nela viveu o Filho de Deus escondido por muitos anos: é, pois,
protótipo e exemplo de todas as famílias cristãs. E aquela Família, única no
mundo, que passou uma existência anónima e silenciosa numa pequena localidade
da Palestina; que foi provada pela pobreza, pela perseguição, pelo exílio; que
glorificou a Deus de modo incomparavelmente alto e puro, não deixará de ajudar
as famílias cristãs, ou melhor, todas as famílias do mundo, na fidelidade aos
deveres quotidianos, no suportar as ânsias e as tribulações da vida, na
generosa abertura às necessidades dos outros, no feliz cumprimento do plano de
Deus a seu respeito.
Que São José, «homem
justo», trabalhador incansável, guarda integérrimo dos penhores que lhe foram
confiados, as guarde, proteja e ilumine.
Que a Virgem Maria, Mãe
da Igreja, seja também a Mãe da «Igreja doméstica» e, graças ao seu auxílio
materno, cada família cristã possa tornar-se verdadeiramente uma «pequena
Igreja», na qual se manifeste e reviva o mistério da Igreja de Cristo. Seja
Ela, a Escrava do Senhor, o exemplo de acolhimento humilde e generoso da
vontade de Deus; seja Ela, Mãe das Dores aos pés da Cruz, a confortar e a
enxugar as lágrimas dos que sofrem pelas dificuldades das suas famílias.
E Cristo Senhor, Rei do
Universo, Rei das famílias, como em Caná, esteja presente em cada lar cristão a
conceder-lhe luz, felicidade, serenidade, fortaleza.
No dia solene dedicado
à sua Realeza, peço que cada família Lhe ofereça um contributo próprio,
original para a vinda no mundo do seu Reino, «Reino de verdade e de vida, de
santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz»(183), para o qual se encaminha a história.
A Ele, a Maria e a José
confio cada família. Nas suas mãos e no seu coração ponho esta Exortação: sejam
Eles a transmiti-la a vós, veneráveis Irmãos e dilectos filhos, e a abrir os
vossos corações à luz que o Evangelho irradia sobre cada família.
A todos e a cada um,
assegurando a minha constante prece, concedo de coração a Bênção Apostólica em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Dado
em Roma, junto de São Pedro, no dia 22 de Novembro de 1981, Solenidade de N. S.
Jesus Cristo Rei do Universo, quarto ano do meu Pontificado.
JOÃO
PAULO II
Notas
(1) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 52.
(2) Cfr. João Paulo PP. II, Homilia para a abertura da VI Sínodo dos Bispos (26
de Setembro de 1980), 2: AAS 72 (1980), 1008.
(5) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 47; João Paulo PP. II, Carta Appropinquat iam (15 de Agosto de 1980), 1: AAS 72
(1980), 791.
(7) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 47.
(8) Cfr. João Paulo PP. II, Discurso ao Conselho da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos (23
de Fevereiro de 1980):Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 (1980),
472-476.
(9) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Consta
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 4.
(13) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, 12; Sagrada Congregação para a Doutrina da
Fé, Declaração Mysterium Ecclesiae, 2: AAS 65
(1973), 398-400.
(14) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, 12; Const. dogmática sobre a Revelação
DivinaDei Verbum, 10.
(15) Cfr. João Paulo PP. II, Homilia para a abertura do VI Sínodo dos Bispos (26
de Setembro de 1980), 3: AAS 72 (1980), 1008.
(18) Cfr. Ef. 3, 8: Conc. Ecum. Vat. II,
Const. pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 44; Decr. sobre a actividade missionária
da Igreja Ad gentes, 15 e 22.
(22) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 12.
(30) Cfr. Conc. Ecum. Trident., Sessio XXIV,
can. 1: I. D. Mansi, Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio,
33, 149 s.
(31) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.
(32) João Paulo PP. II, Discurso aos
Delegados do « Centre de Liaison des Equipes de Recherche » (3 de Novembro de
1979), 3:Insegnamenti di Giovanni Paolo II, II, 2 (1979), 1032.
(34) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.
(37) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 78.
(44) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral
sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.
(47) Cfr. João Paulo PP. II, Discurso aos Esposos (Kinshasa, 3 de
Maio de 1980), 4: AAS 72 (1980), 426
(48) Const. pastoral sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 49; cfr. João Paulo PP. II, Discurso aos
Esposos (Kinshasa, 3 de Maio de 1980): 1. c.
(49) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral sobre
a Igreja no mundo contemporâneo, Gaudium et spes, 48.
(58) Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogmática
sobre a Igreja Lumen Gentium, 11; Cfr. Decr. sobre o apostolado dos
LeigosApostolicam actuositatem, 11.
(59) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral
sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 52.
(61) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.
(63) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 24.
(72) Cfr. João Paulo PP. II, Homilia aos fiéis de Terni (19 de Março de
1981), 3-5: AAS 73 (1981), 268-271.
(74) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 52.
(76) João Paulo PP. II, Discurso Assembleia Geral das Nações Unidas (2
de Outubro de 1979), 21: AAS 71 (1979), 1159.
(78) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 48.
(79) João Paulo PP. II, Discurso aos participantes no « International Forum on Active Aging » (5
de Setembro de 1980), 5:Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 2
(1980), 539.
(82) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral
sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 50.
(83) Propositio 22; A
conclusão do n. 11 da Enc. Humanae vitae afirma: « Chamando os homens à
observância das normas da lei natural interpretada por sua constante doutrina,
a Igreja ensina que todo o acto matrimonial deve permanecer aberto à
transmissão da vida » (« ut quilibet matrimonii usus ad vitam humanam
procreandam per se destinatus permaneat »): AAS 60 (1968),
488.
(85) Cfr. Mensagem do VI Sínodo dos Bispos às Famílias cristãs no mundo
contemporâneo, 5: 24 de Outubro de 1980.
(95) João Paulo PP. II, Homilia para a conclusão do VI Sínodo dos Bispos (25
de Outubro de 1980), 8: AAS 72 (1980), 1083.
(97) Cfr. João Paulo PP. II, Discurso aos Delegados do « Centre de Liaison des Equipes de Recherche » (3
de Novembro de 1979), 9: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, II, 2
(1979), 1035; cfr. também Discurso aos Participantes no primeiro Congresso para a Família de
África e de Europa (15 de Janeiro de 1981): « L'Osservatore
Romano », 16 de Janeiro de 1981.
(100) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral
sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 35.
(114) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, 11; Decr. sobre o apostolado dos LeigosApostolicam actuositatem, 11; João Paulo PP.
II, Homilia para a abertura do VI Sínodo dos Bispos (26
de Setembro de 1980), 3:AAS 72 (1980), 1008.
(124) Cfr. Discurso à III Assembleia Geral dos Bispos da América Latina (28
de Janeiro de 1979) IV, a: AAS 71 (1979), 204.
(133) Cfr. Conc. Ecum. Vat. II, Const.
dogmática sobre a Igreja Lumen gentium, 35; Decr. sobre o apostolado dos LeigosApostolicam actuositatem, 11.
(138) Conc. Ecum. Vat. II, Const. pastoral
sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 49.
(151) Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre a
Educação cristã Gravissimum educationis, 3; cfr. João Paulo
PP. II. Exort. Ap. Catechesi tradendae, 36: AAS 71
(1979), 1308.
(152) Discurso na Audiência geral (11 de
Agosto de 1976): Insegnamenti di Paolo VI, XIV (1976), 640.
(156) João Paulo PP. II, Discurso ao Santuário de Mentorella (29 de Outubro de
1978): Insegnamenti di Giovanni Paolo II, I (1978), 78s.
(158) Cfr. João Paulo PP. I, Discurso aos Bispos da XII Região Pastoral dos Estados Unidos da América (12
de Setembro de 1978):AAS 70 (1978), 767.
(164) Cfr. Mensagem do VI Sínodo dos Bispos às Famílias cristãs no mundo
contemporâneo, 12 (24 de Outubro de 1980).
(165) Cfr. João Paulo PP. II, Discurso à III Assembleia Geral dos Bispos da América Latina (28
de Janeiro de 1979) IV, a: AAS 71 (1979), 204.
(171) Paulo PP. VI, Mensagem para a III° Jornada das Comunicações Sociais (7
de Abril de 1969): AAS 61 (1969), 455.
(172) João Paulo PP. II, Mensagem para a Jornada Mundial das Comunicações Sociais (1°
de Maio de 1980): Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 (1980),
1042.
(173) João Paulo PP. II, Mensagem para a Jornada Mundial das Comunicações Sociais (1°
de Maio de 1981), 5: « L'Osservatore Romano », 22 de Maio de 1981.
(177) Mensagem para a Jornada Mundial das Comunicações Sociais,
1980: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, III, 1 (1980), 1044.
(178) Cfr. Paulo PP. VI, Motu Proprio Matrimonia Mixta, 4-5: AAS 62
(1970), 257 ss.; João Paulo PP. II, Discurso aos participantes à Plenária do Secretariado para a União dos
Cristãos(13 Novembre 1981): «L'Osservatore Romano » (14
Novembre 1981).
(179) Instruç. In quibus rerum
circumstantiis (15 de Junho de 1972): AAS 64 (1972),
518-525; Nota de 17 de Outubro de 1973:AAS 65 (1973), 616-619.
(180) João Paulo PP. II, Homilia para a conclusão do VI Sínodo dos Bispos (25
de Outubro de 1980), 7: AAS 72 (1980), 1082.
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