AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS ESPOSOS CRISTÃOS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
1. A ALEGRIA DO AMOR que se vive nas famílias é
também o júbilo da Igreja. Apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio –
como foi observado pelos Padres sinodais – «o desejo de família permanece vivo,
especialmente entre os jovens, e isto incentiva a Igreja».[1] Como
resposta a este anseio, «o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente
uma boa notícia».[2]
2. O caminho sinodal permitiu analisar a situação
das famílias no mundo actual, alargar a nossa perspectiva e reavivar a nossa
consciência sobre a importância do matrimónio e da família. Ao mesmo tempo, a
complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a
aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e
pastorais. A reflexão dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja, honesta,
realista e criativa, ajudar-nos-á a alcançar uma maior clareza. Os debates, que
têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e
mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas.
3. Recordando que o tempo é superior ao espaço,
quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais
devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na
Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que
existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou
algumas consequências que decorrem dela. Assim há-de acontecer até que o
Espírito nos conduza à verdade completa (cf. Jo 16, 13), isto
é, quando nos introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver
tudo com o seu olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar
soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De
facto, «as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...),
se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado».[3]
4. Em todo o caso, devo dizer que o caminho sinodal
se revestiu duma grande beleza e proporcionou muita luz. Agradeço tantas
contribuições que me ajudaram a considerar, em toda a sua amplitude, os
problemas das famílias do mundo inteiro. O conjunto das intervenções dos
Padres, que ouvi com atenção constante, pareceu-me um precioso poliedro,
formado por muitas preocupações legítimas e questões honestas e sinceras. Por
isso, considerei oportuno redigir uma Exortação Apostólica pós-sinodal que
recolha contribuições dos dois Sínodos recentes sobre a família, acrescentando
outras considerações que possam orientara reflexão, o diálogo ou a práxis
pastoral, e simultaneamente ofereçam coragem, estímulo e ajuda às famílias na
sua doação e nas suas dificuldades.
5. Esta Exortação adquire um significado especial
no contexto deste Ano Jubilar da Misericórdia, em primeiro lugar, porque a vejo
como uma proposta para as famílias cristãs, que as estimule a apreciar os dons
do matrimónio e da família e a manter um amor forte e cheio de valores como a
generosidade, o compromisso, a fidelidade e a paciência; em segundo lugar,
porque se propõe encorajar todos a serem sinais de misericórdia e proximidade
para a vida familiar, onde esta não se realize perfeitamente ou não se
desenrole em paz e alegria.
6. No desenvolvimento do texto, começarei por uma
abertura inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir
disso, considerarei a situação actual das famílias, para manter os pés assentes
na terra. Depois lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja
sobre o matrimónio e a família, seguindo-se os dois capítulos centrais,
dedicados ao amor. Em seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos
levem a construir famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus, e
dedicarei um capítulo à educação dos filhos. Depois deter-me-ei sobre um
convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante situações que não
correspondem plenamente ao que o Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei
breves linhas de espiritualidade familiar.
7. Devido à riqueza que os dois anos de reflexão do
caminho sinodal ofereceram, esta Exortação aborda, com diferentes estilos,
muitos e variados temas. Isto explica a sua inevitável extensão. Por isso, não
aconselho uma leitura geral apressada. Poderá ser de maior proveito, tanto para
as famílias como para os agentes de pastoral familiar, aprofundar pacientemente
uma parte de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam em cada
circunstância concreta. É provável, por exemplo, que os esposos se identifiquem
mais como quarto e quinto capítulo, que os agentes pastorais tenham especial
interesse pelo capítulo sexto, e que todos se sintam muito interpelados pelo
oitavo. Espero que cada um, através da leitura, se sinta chamado a cuidar com
amor da vida das famílias, porque elas «não são um problema, são sobretudo uma
oportunidade».[4]
8. A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações,
histórias de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra
em cena a família de Adão e Eva, como seu peso de violência mas também com a
força da vida que continua (cf. Gn 4), até às últimas páginas
onde aparecem as núpcias da Esposa e do Cordeiro (cf. Ap21, 2.9).As
duas casas de que fala Jesus, construídas ora sobre a rocha ora sobre a areia
(cf. Mt 7, 24-27), representam muitas situações familiares,
criadas pela liberdade de quantos habitam nelas, porque – como escreve o poeta
– «toda a casa é um candelabro».[5]Agora
entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista, através dum canto que ainda
hoje se proclama nas liturgias nupciais quer judaica quer cristã:
«Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao Senhor.
O Senhor te abençoe do monte Sião!
Possas contemplara prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida,
e chegues a ver os filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!» (Sl 128/127, 1-6).
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao Senhor.
O Senhor te abençoe do monte Sião!
Possas contemplara prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida,
e chegues a ver os filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!» (Sl 128/127, 1-6).
Tu e a tua esposa
9. Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a
sua família sentada ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o
casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se
realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não
lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher?» (Mt 19,
4). E retoma o mandato do livro do Génesis: «Por esse motivo, o homem deixará o
pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2,
24).
10. Aqueles dois primeiros capítulos grandiosos do
Génesis oferecem-nos a representação do casal humano na sua realidade
fundamental. Naquele trecho inicial da Bíblia, sobressaem algumas afirmações
decisivas. A primeira, citada sinteticamente por Jesus, declara: «Deus criou o
ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher»
(1, 27). Surpreendentemente, a «imagem de Deus» tem como paralelo explicativo
precisamente o casal «homem e mulher». Quererá isto significar que o próprio
Deus é sexuado ou tem a seu lado uma companheira divina, como acreditavam
algumas religiões antigas? Não, obviamente! Sabemos com quanta clareza a Bíblia
rejeitou como idolátricas tais crenças, generalizadas entre os cananeus da
Terra Santa. Preserva-se a transcendência de Deus, mas, uma vez que é ao mesmo
tempo o Criador, a fecundidade do casal humano é «imagem» viva e eficaz, sinal
visível do acto criador.
11. O casal que ama e gera a vida é a verdadeira
«escultura» viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de
manifestar Deus criador e salvador. Por isso, o amor fecundo chega a ser o
símbolo das realidades íntimas de Deus (cf. Gn 1, 28; 9, 7;
17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48, 3-4). Devido a isso a narrativa do Génesis,
atendo-se à chamada «tradição sacerdotal», aparece permeada por várias sequências
genealógicas (cf. Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10; 11, 10-32; 25,
1-4.12-17.19-26; 36): de facto, a capacidade que o casal humano tem de gerar é
o caminho por onde se desenrola a história da salvação. Sob esta luz, a relação
fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever o mistério de
Deus, fundamental na visão cristã da Trindade que, em Deus, contempla o Pai, o
Filho e o Espírito de amor. O Deus Trindade é comunhão de amor; e a família, o
seu reflexo vivente. A propósito, são elucidativas estas palavras de São João
Paulo II: «O nosso Deus, no seu mistério mais íntimo, não é solidão, mas uma
família, dado que tem em Si mesmo paternidade, filiação e a essência da
família, que é o amor. Este amor, na família divina, é o Espírito Santo».[6] Concluindo,
a família não é alheia à própria essência divina.[7] Este
aspecto trinitário do casal encontra uma nova representação na teologia
paulina, quando o Apóstolo relaciona o casal com o «mistério» da união entre
Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 21-33).
12. Mas Jesus, na sua reflexão sobre o matrimónio,
alude a outra página do Génesis – o capítulo 2 – onde aparece um retrato
admirável do casal com detalhes elucidativos. Escolhemos apenas dois. O
primeiro é a inquietação vivida pelo homem, que busca «uma auxiliar semelhante»
(vv. 18.20), capaz de resolver esta solidão que o perturba e que não encontra
remédio na proximidade dos animais e da criação inteira. A expressão original
hebraica faz-nos pensar numa relação directa, quase «frontal» – olhos nos olhos
–, num diálogo também sem palavras, porque, no amor, os silêncios costumam ser
mais eloquentes do que as palavras: é o encontro com um rosto, um «tu» que
reflecte o amor divino e constitui – como diz um sábio bíblico – «o primeiro
dos bens, uma ajuda condizente e uma coluna de apoio» (Sir 36, 24).
Ou como exclamará a mulher do Cântico dos Cânticos, numa confissão estupenda de
amor e doação na reciprocidade, «o meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu
sou para o meu amado e o meu amado é para mim» (2, 16; 6, 3).
13. Deste encontro, que cura a solidão, surge a
geração e a família. Este é um segundo detalhe, que podemos evidenciar: Adão,
que é também o homem de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta,
juntamente com a sua esposa dá origem a uma nova família, como afirma Jesus
citando o Génesis: «Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só» (Mt 19,
5; cf. Gn 2, 24). No original hebraico, o verbo «unir-se»
indica uma estreita sintonia, uma adesão física e interior, a ponto de se
utilizar para descrever a união com Deus, como canta o orante: «A minha alma
está unida a Ti» (Sl 63/62, 9). Deste modo, evoca-se a união
matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua
doação voluntária de amor. O fruto desta união é «tornar-se uma só carne», quer
no abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e, porventura, no
filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de levar as duas «carnes»,
unindo-as genética e espiritualmente.
Os teus filhos como rebentos de
oliveira
14. Retomemos o canto do Salmista. Lá, dentro da
casa onde o homem e a sua esposa estão sentados à mesa, aparecem os filhos que
os acompanham «como rebentos de oliveira» (Sl 128/127, 3), isto é,
cheios de energia e vitalidade. Se os pais são como que os alicerces da casa,
os filhos constituem as «pedras vivas» da família (cf. 1Ped 2,
5). É significativo que, no Antigo Testamento, a palavra que aparece mais vezes
depois da designação divina (YHWH, o «Senhor») é «filho» (ben),
um termo que remete para o verbo hebraico que significa «construir» (banah).
Por isso, noutro Salmo, exalta-se o dom dos filhos com imagens que aludem quer
à edificação duma casa, quer à vida social e comercial que se desenrolava às
portas da cidade: «Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os
construtores. (...) Olhai: os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das
entranhas, uma verdadeira dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim
são os filhos nascidos na juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua
aljava! Não será envergonhado pelos seus inimigos, quando com eles discutir às
portas da cidade» (Sl127/126, 1.3-5). É verdade que estas imagens
reflectem a cultura duma sociedade antiga, mas a presença dos filhos é, em todo
o caso, um sinal de plenitude da família na continuidade da mesma história de
salvação, de geração em geração.
15. Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da
família. Sabemos que, no Novo Testamento, se fala da «igreja que se reúne em
casa» (cf. 1Cor 16, 19; Rm 16, 5; Col 4,
15; Flm 2). O espaço vital duma família podia transformar-se
em igreja doméstica, em local da Eucaristia, da presença de Cristo sentado à
mesma mesa. Inesquecível é a cena descrita no Apocalipse: «Olha que Eu estou à
porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua
casa e cearei com ele e ele comigo» (3, 20). Esboça-se assim uma casa que
abriga no seu interior a presença de Deus, a oração comum e, por conseguinte, a
bênção do Senhor. Isto mesmo se afirma no Salmo 128, que nos serviu de base:
«Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor. O Senhor te abençoe do
monte Sião!» (vv. 4-5).
16. A Bíblia considera a família também como o
local da catequese dos filhos. Vê-se isto claramente na descrição da celebração
pascal (cf. Ex 12, 26-27; Dt 6, 20-25) – mais
tarde explicitado na haggadah judaica –, concretamente no
diálogo que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como um Salmo exalta o anúncio
familiar da fé: «O que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados nos
transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos às
gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que Ele
fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E
ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações
futuras a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem aos seus
próprios filhos» (Sl 78/77, 3-6). Por isso, a família é o lugar
onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma
tarefa «artesanal», pessoa a pessoa: «Se amanhã o teu filho te perguntar (...),
dir-lhe-ás...» (Ex 13, 14). Assim, entoarão o seu canto ao Senhor
as diferentes gerações, «os jovens e as donzelas, os velhos e as crianças» (Sl 148,
12).
17. Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade,
a sua missão educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia (cf. Pr 3,
11-12;6, 20-22; 13, 1; 29, 17). Os filhos são chamados a receber e praticar o
mandamento «honra o teu pai e a tua mãe» (Ex 20, 12), querendo o
verbo «honrar» indicar o cumprimento das obrigações familiares e sociais em
toda a sua plenitude, sem os transcurar com desculpas religiosas (cf. Mc 7,
11-13). Com efeito, «o que honra o pai alcança o perdão dos pecados, e quem
honra a sua mãe é semelhante ao que acumula tesouros» (Sir 3, 3-4).
18. O Evangelho lembra-nos também que os filhos não
são uma propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se
é verdade que Jesus Se apresenta como modelo de obediência a seus pais
terrenos, submetendo-Se a eles (cf. Lc 2, 51), também é certo
que Ele faz ver que a escolha de vida do filho e a sua própria vocação cristã
podem exigir uma separação para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de Deus
(cf. Mt 10, 34-37; Lc 9, 59-62). Mais ainda!
Ele próprio, aos doze anos, responde a Maria e a José que tem uma missão mais
alta a realizar para além da sua família histórica (cf. Lc 2,
48-50). Por isso, exalta a necessidade de outros laços mais profundos, mesmo
dentro das relações familiares: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem
a Palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 8, 21). Por outro lado,
Jesus presta tal atenção às crianças – consideradas, na sociedade do Médio
Oriente antigo, como sujeitos sem particulares direitos e inclusivamente como
parte da propriedade familiar –, que chega ao ponto de as propor aos adultos
como mestres, devido à sua confiança simples e espontânea nos outros. «Em
verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis
entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o
maior no Reino do Céu» (Mt 18, 3-4).
Um rasto de sofrimento e sangue
19. O idílio, que o Salmo128 apresenta, não nega
uma amarga realidade que marca toda a Sagrada Escritura: é a presença do
sofrimento, do mal, da violência, que dilaceram a vida da família e a sua
comunhão íntima de vida e de amor. Não é de estranhar que o discurso de Cristo
sobre o matrimónio (cf.Mt 19, 3-9) apareça inserido numa disputa a
respeito do divórcio. A Palavra de Deus é testemunha constante desta dimensão
obscura que assoma já nos primórdios, quando, com o pecado, a relação de amor e
pureza entre o homem e a mulher se transforma num domínio: «Procurarás
apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará» (Gn 3, 16).
20. É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa
muitas páginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra
Abel e dos vários litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas
Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família
de David, até às numerosas dificuldades familiares que regista a história de
Tobias ou a confissão amarga de Job abandonado: Deus «afastou de mim os meus
irmãos, e os meus amigos retiraram-se como estranhos. (...)A minha mulher sente
repugnância do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos» (Jb 19,
13.17).
21. O próprio Jesus nasce numa família modesta, que
à pressa tem de fugir para uma terra estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde
a sua sogra está doente (cf. Mc 1, 29-31), deixa-Se envolver
no drama da morte na casa de Jairo ou no lar de Lázaro (cf. Mc5,
22-24.35-43; Jo 11, 1-44), ouve o pranto desesperado da viúva
de Naim pelo seu filho morto (cf. Lc 7, 11-15); atende o grito
do pai do epiléptico numa pequena povoação rural (cf. Mc 9,
17-27). Encontra-Se com publicanos, como Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias
casas (cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10), e também
com pecadoras, como a mulher que invade a casa do fariseu (cf. Lc 7,
36-50). Conhece as ansiedades e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas
parábolas: desde filhos que deixam a própria casa para tentar alguma aventura
(cf. Lc 15, 11-32) até filhos difíceis com comportamentos
inexplicáveis (cf. Mt 21, 28-31) ou vítimas da violência
(cf. Mc 12, 1-9). Interessa-Se ainda pela situação embaraçosa
que se vive numas bodas pela falta de vinho (cf. Jo 2, 1-10)
ou pela recusa dos convidados a participar nelas (cf. Mt 22,
1-10), e conhece também o pesadelo que representa a perda duma moeda numa
família pobre (cf. Lc 15, 8-10).
22. Nesta breve resenha, podemos comprovar que a
Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstractas, mas
como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou
imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus
«enxugar todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto,
nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4).
O fruto do teu próprio trabalho
23. No início do Salmo 128, o pai é apresentado
como um trabalhador que pode, com a obradas suas mãos, manter o bem-estar
físico e a serenidade da sua família: «Comerás do fruto do teu próprio
trabalho: assim serás feliz e viverás contente» (v. 2). O facto de o trabalho
ser uma parte fundamental da dignidade da vida humana deduz-se das primeiras
páginas da Bíblia, quando se afirma que Deus «colocou [o homem] no Jardim do
Éden, para o cultivar e, também, para o guardar» (Gn2, 15). Temos aqui a
imagem do trabalhador que transforma a matéria e aproveita as energias da
criação, fazendo nascer o «pão de tanta fadiga» (Sl127/126, 2), para
além de se cultivar a si mesmo.
24. O trabalho torna possível simultaneamente o
desenvolvimento da sociedade, o sustento da família e também a sua estabilidade
e fecundidade: «Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da
tua vida e chegues a veros filhos dos teus filhos» (Sl 128/127,
5-6). No livro dos Provérbios, realça-se também a tarefa da mãe de família,
cujo trabalho aparece descrito nas suas múltiplas mansões diárias, merecendo o
elogio do marido e dos filhos (cf.31, 10-31). O próprio apóstolo Paulo
sentia-se orgulhoso por ter vivido sem ser um fardo para os outros, porque
trabalhou comas suas mãos, garantindo-se deste modo o sustento (cf. Act 18,
3; 1Cor 4, 12; 9, 12).Estava tão convencido da necessidade do
trabalho, que estabeleceu esta férrea norma para as suas comunidades: «Se
alguém não quer trabalhar, também não coma» (2Ts 3,10; cf. 1Ts 4,
11).
25. Dito isto, compreende-se que o desemprego e a
precariedade laboral gerem sofrimento, como atesta o livro de Rute e como
lembra Jesus na parábola dos trabalhadores sentados, em ócio forçado, na praça
da localidade (cf. Mt 20, 1-16), ou como pôde verificar
pessoalmente vendo-Se muitas vezes rodeado de necessitados e famintos. Isto
mesmo vive tragicamente a sociedade actual em muitos países, e esta falta de
emprego afecta, de várias maneiras, a serenidade das famílias.
26. Também não podemos esquecera degeneração que o
pecado introduz na sociedade, quando o homem se comporta como um tirano com a
natureza, devastando-a, utilizando-a de forma egoísta e até brutal. Como
consequência, temos, simultaneamente, a desertificação do solo (cf.Gn 3,
17-19) e os desequilíbrios económicos e sociais, contra os quais se levanta,
abertamente, a voz dos profetas, desde Elias (cf.1Re 21) até chegar
às palavras que o próprio Jesus pronuncia contra a injustiça (cf. Lc 12,
13-21; 16,1-31).
A ternura do abraço
27. Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs
sobretudo a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22,
39; Jo13, 34), e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe
costumam testemunhar na sua própria vida: «Ninguém tem maior amor do que quem
dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13). Frutos do amor são também
a misericórdia e o perdão. Nesta linha, é emblemática a cena que nos apresenta
uma adúltera na explanada do templo de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus
acusadores e, depois, sozinha com Jesus, que não a condena mas convida-a a uma
vida mais digna (cf. Jo 8, 1-11).
28. No horizonte do amor, essencial na experiência
cristã do matrimónio e da família, destaca-se ainda outra virtude, um pouco
ignorada nestes tempos de relações frenéticas e superficiais: a ternura.
Detenhamo-nos no terno e denso Salmo 131, onde – como se observa, aliás,
noutros textos (cf. Ex 4, 22; Is 49,
15; Sl 27/26, 10) – a união entre o fiel e o seu Senhor é
expressa com traços de amor paterno e materno. Lá aparece a intimidade delicada
e carinhosa entre a mãe e o seu bebé, um recém-nascido que dorme nos braços de
sua mãe depois de ter sido amamentado. Como indica a palavra hebraica gamùl,
trata-se dum menino que acaba de mamar e se agarra conscientemente à mãe que o
leva ao colo. É, pois, uma intimidade consciente, e não meramente biológica.
Por isso canta o Salmista: «Estou sossegado e tranquilo, como criança saciada
ao colo da mãe» (Sl 131/130, 2). Paralelamente, podemos ver outra
cena na qual o profeta Oseias coloca na boca de Deus, visto como pai, estas
palavras comoventes: «Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o (...), Eu
ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços (...). Segurava-o com laços
de ternura, com laços de amor, fui para ele como os que levantam uma criancinha
contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer» (Os 11,
1.3-4).
29. Com este olhar feito de fé e amor, de graça e
compromisso, de família humana e Trindade divina, contemplamos a família que a
Palavra de Deus confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos, para que
formem uma comunhão de pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e
o Espírito Santo. Por sua vez, a actividade geradora e educativa é um reflexo
da obra criadora do Pai. A família é chamada a compartilhara oração diária, a
leitura da Palavra de Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor
e tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.
30. Cada família tem diante de si o ícone da
família de Nazaré, com o seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos,
como quando teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes, experiência
que ainda hoje se repete tragicamente em muitas famílias de refugiados
descartados e inermes. Como os Magos, as famílias são convidadas a contemplar o
Menino com sua Mãe, a prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11).
Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios
familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as
maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). No tesouro do coração de
Maria, estão também todos os acontecimentos de cada uma das nossas famílias,
que Ela guarda solicitamente. Por isso pode ajudar-nos a interpretá-los de modo
a reconhecera mensagem de Deus na história familiar.
31. O bem da família é decisivo para o futuro do
mundo e da Igreja. Inúmeras são as análises feitas sobre o matrimónio e a
família, sobre as suas dificuldades e desafios actuais. É salutar prestar
atenção à realidade concreta, porque «os pedidos e os apelos do Espírito
ressoam também nos acontecimentos da história» através dos quais «a Igreja pode
ser guiada para uma compreensão mais profunda do inexaurível mistério do
matrimónio e da família».[8] Não
tenho a pretensão de apresentar aqui tudo aquilo que poderia ser dito sobre os
vários temas relacionados coma família no contexto actual. Mas, dado que os
Padres sinodais ofereceram um panorama da realidade das famílias de todo o
mundo, considero oportuno recolher algumas das suas contribuições pastorais,
acrescentando outras preocupações derivadas da minha própria visão.
A situação actual da família
32. «Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a
realidade actual da família em toda a sua complexidade, nas suas luzes e
sombras. (...) Hoje, a mudança antropológico-cultural influencia todos os
aspectos da vida e requer uma abordagem analítica e diversificada».[9] Já
no contexto de várias décadas atrás, os bispos da Espanha reconheciam uma
realidade doméstica com mais espaços de liberdade, «com uma distribuição
equitativa de encargos, responsabilidades e tarefas (...). Valorizando mais a
comunicação pessoal entre os esposos, contribui-se para humanizar toda a vida
familiar. (...) Nem a sociedade em que vivemos nem aquela para onde caminhamos
permitem a sobrevivência indiscriminada de formas e modelos do passado».[10] Mas
«estamos conscientes da direcção que vão tomando as mudanças
antropológico-culturais, em razão das quais os indivíduos são menos apoiados do
que no passado pelas estruturas sociais na sua vida afectiva e familiar».[11]
33. Por outro lado, «há que considerar o crescente
perigo representado por um individualismo exagerado que desvirtua os laços familiares
e acaba por considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo
prevalecer, em certos casos, a ideia dum sujeito que se constrói segundo os
seus próprios desejos assumidos com carácter absoluto».[12] «As
tensões causadas por uma cultura individualista exagerada da posse e fruição
geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e agressividade».[13]Gostaria
de acrescentar o ritmo da vida actual, o stresse, a organização social e
laboral, porque são factores culturais que colocam em risco a possibilidade de
opções permanentes. Ao mesmo tempo, encontramo-nos perante fenómenos ambíguos.
Por exemplo, aprecia-se uma personalização que aposte na autenticidade em vez
de reproduzir comportamentos prefixados. É um valor que pode promover as
diferentes capacidades e a espontaneidade, mas, se for mal orientado, pode
criar atitudes de permanente suspeita, fuga dos compromissos, confinamento no
conforto, arrogância. A liberdade de escolher permite projectar a própria vida
e cultivar o melhor de si mesmo, mas, se não se tiver objectivos nobres e
disciplina pessoal, degenera numa incapacidade de se dar generosamente. De
facto, em muitos países onde diminui o número de matrimónios, cresce o número
de pessoas que decidem viver sozinhas ou que convivem sem coabitar. Podemos
assinalar também um louvável sentido de justiça; mas, mal compreendido,
transforma os cidadãos em clientes que só exigem o cumprimento de serviços.
34. Se estes riscos se transpõem para o modo de
compreender a família, esta pode transformar-se num lugar de passagem, aonde
uma pessoa vai quando lhe parecer conveniente para si mesma ou para reclamar
direitos, enquanto os vínculos são deixados à precariedade volúvel dos desejos
e das circunstâncias. No fundo, hoje é fácil confundir a liberdade genuína com
a ideia de que cada um julga como lhe parece, como se, para além dos
indivíduos, não houvesse verdades, valores, princípios que nos guiam, como se
tudo fosse igual e tudo se devesse permitir. Neste contexto, o ideal
matrimonial com um compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por ser
destruído pelas conveniências contingentes ou pelos caprichos da sensibilidade.
Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de protecção e fidelidade mas, ao mesmo
tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a
satisfação das aspirações pessoais.
35. Como cristãos, não podemos renunciar a propor o
matrimónio, para não contradizer a sensibilidade actual, para estar na moda, ou
por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos
a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer. É verdade que não
tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males actuais, como se isso
pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela
força da autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que
consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimónio e a
família, de modo que as pessoas estejam melhor preparadas para responder à
graça que Deus lhes oferece.
36. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e
realistas, para reconhecer que às vezes a nossa maneira de apresentar as
convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar
aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reacção de
autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentámos de tal maneira o matrimónio
que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua
ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação. Também
não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos,
com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas
preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentámos um ideal teológico do
matrimónio demasiado abstracto, construído quase artificialmente, distante da
situação concreta e das possibilidades efectivas das famílias tais como são.
Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança na
graça, não fez com que o matrimónio fosse mais desejável e atraente; muito pelo
contrário.
37. Durante muito tempo pensámos que, com a simples
insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura
à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo
dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos
dificuldade em apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de
crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também
nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o
melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de
realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os
esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender
substituí-las.
38. Devemos dar graças pela maioria das pessoas
valorizar as relações familiares que querem permanecer no tempo e garantem o
respeito pelo outro. Por isso, aprecia-se que a Igreja ofereça espaços de apoio
e aconselhamento sobre questões relacionadas com o crescimento do amor, a
superação dos conflitos e a educação dos filhos. Muitos estimam a força da
graça que experimentam na Reconciliação sacramental e na Eucaristia, que lhes
permite enfrentar os desafios do matrimónio e da família. Nalguns países,
especialmente em várias partes da África, o secularismo não conseguiu
enfraquecer alguns valores tradicionais e, em cada matrimónio, gera-se uma
forte união entre duas famílias alargadas, onde se conserva ainda um sistema
bem definido de gestão de conflitos e dificuldades. No mundo actual, aprecia-se
também o testemunho dos cônjuges que não se limitam a perdurar no tempo, mas
continuam a sustentar um projecto comum e conservam o afecto. Isto abre a porta
a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento
gradual das exigências do Evangelho. No entanto, muitas vezes agimos na
defensiva e gastámos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo
decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade.
Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um
reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que
propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às
pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera.
39. Isto não significa deixar de advertir a
decadência cultural que não promove o amor e a doação. As consultações que
antecederam os dois últimos Sínodos trouxeram à luz vários sintomas da «cultura
do provisório». Refiro-me, por exemplo, à rapidez com que as pessoas passam
duma relação afectiva para outra. Crêem que o amor, como acontece nas redes
sociais, se possa conectar ou desconectar ao gosto do consumidor e inclusive
bloquear rapidamente. Penso também no medo que desperta a perspectiva dum
compromisso permanente, na obsessão pelo tempo livre, nas relações que medem
custos e benefícios e mantêm-se apenas se forem um meio para remediar a
solidão, ter protecção ou receber algum serviço. Transpõe-se para as relações
afectivas o que acontece com os objectos e o meio ambiente: tudo é descartável,
cada um usa e joga fora, gasta e rompe, aproveita e espreme enquanto serve;
depois… adeus. O narcisismo torna as pessoas incapazes de olhar para além de si
mesmas, dos seus desejos e necessidades. Mas quem usa os outros, mais cedo ou
mais tarde acaba por ser usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica. Faz
impressão ver que as rupturas ocorrem, frequentemente, entre adultos já de
meia-idade que buscam uma espécie de «autonomia» e rejeitam o ideal de
envelhecer juntos cuidando-se e apoiando-se.
40. «Correndo o risco de simplificar, poderemos
dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família,
porque privam-nos de possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura
apresenta a outros tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma
família».[14] Nalguns
países, muitos jovens «são frequentemente levados a adiar o matrimónio por
problemas de tipo económico, laboral ou de estudo. Às vezes também por outros
motivos, tais como a influência das ideologias que desvalorizam o matrimónio e
a família, a experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem
expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as
oportunidades sociais e os benefícios económicos derivados da convivência, uma
concepção puramente emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e
a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e
burocrático».[15] Precisamos
de encontrar as palavras, as motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar
as cordas mais íntimas dos jovens, onde são mais capazes de generosidade, de
compromisso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com
entusiasmo e coragem, o desafio de matrimónio.
41. Os Padres sinodais aludiram a certas
«tendências culturais que parecem impor uma afetividade sem qualquer limitação,
(…) uma afetividade narcisista, instável e mutável que não ajuda os sujeitos a
atingir uma maior maturidade». Preocupa a «difusão da pornografia e da
comercialização do corpo, favorecida, entre outras coisas, por um uso
distorcido da internet» e pela «situação das pessoas que são obrigadas a
praticar a prostituição». Neste contexto, por vezes os casais sentem-se
inseguros, indecisos, custando-lhes a encontrar as formas para crescer. Muitos
são aqueles que tendem a ficar nos estádios primários da vida emocional e
sexual. A crise do casal destabiliza a família e pode chegar, através das
separações e dos divórcios, a ter sérias consequências para os adultos, os
filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais».[16] As
crises conjugais são «enfrentadas muitas vezes de modo apressado e sem a
coragem da paciência, da averiguação, do perdão recíproco, da reconciliação e
até do sacrifício. Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, novos
casais, novas uniões e novos casamentos, criando situações familiares complexas
e problemáticas para a opção cristã».[17]
42. «A própria queda demográfica, causada por uma
mentalidade anti natalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde
reprodutiva, não só determina uma situação em que a sucessão das gerações deixa
de estar garantida, mas corre-se o risco de levar, com o tempo, a um
empobrecimento económico e a uma perda de esperança no futuro. O avanço das biotecnologias
também teve um forte impacto sobre a natalidade».[18] Podem
juntar-se outros factores, como «a industrialização, a revolução sexual, o
temor da superpopulação, os problemas económicos (...). A sociedade de consumo
também pode dissuadir as pessoas de ter filhos, só para manter a sua liberdade
e estilo de vida».[19] É
verdade que a consciência recta dos esposos, quando foram muito generosos na
transmissão da vida, pode orientá-los para a decisão de limitar o número dos
filhos por razões suficientemente sérias; e também «por amor desta dignidade da
consciência, a Igreja rejeita com todas as suas forças as intervenções
coercitivas do Estado a favor da contracepção, da esterilização e até mesmo do
aborto».[20] Estas
medidas são inaceitáveis mesmo em áreas com alta taxa de natalidade, mas é
notável que os políticos as incentivem também nalguns países que sofrem o drama
duma taxa de natalidade muito baixa. Como assinalaram os bispos da Coreia, isto
é «agir de forma contraditória e negligenciando o próprio dever».[21]
43. O enfraquecimento da fé e da prática religiosa,
nalgumas sociedades, afecta as famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas
dificuldades. Os Padres disseram que «uma das maiores pobrezas da cultura
actual é a solidão, fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da
fragilidade das relações. Há também uma sensação geral de impotência face à
realidade socioeconómica que, muitas vezes, acaba por esmagar as famílias.
(...) Frequentemente as famílias sentem-se abandonadas pelo desinteresse e a
pouca atenção das instituições. As consequências negativas sob o ponto de vista
da organização social são evidentes: da crise demográfica às dificuldades
educativas, da fadiga em acolher a vida nascente ao sentir a presença dos
idosos como um peso, até à difusão dum mal-estar afectivo que às vezes chega à
violência. O Estado tem a responsabilidade de criar as condições legislativas e
laborais para garantir o futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu
projecto de formar uma família».[22]
44. A falta duma habitação digna ou adequada leva
muitas vezes a adiar a formalização duma relação. É preciso lembrar que «a
família tem direito a uma habitação condigna, apropriada para a vida familiar e
proporcional ao número dos seus membros, num ambiente fisicamente sadio que
proporcione os serviços básicos para a vida da família e da comunidade».[23] Uma
família e uma casa são duas realidades que se reclamam mutuamente. Este exemplo
mostra que devemos insistir nos direitos da família, e não apenas nos direitos
individuais. A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas
precisa de ser protegida.[24] A
defesa destes direitos é «um apelo profético a favor da instituição familiar,
que deve ser respeitada e defendida contra toda a agressão»,[25] sobretudo
no contexto actual em que habitualmente ocupa pouco espaço nos projectos
políticos. As famílias têm, entre outros direitos, o de «poder contar com uma
adequada política familiar por parte das autoridades públicas no campo
jurídico, económico, social e fiscal».[26] Às
vezes as angústias das famílias tornam-se dramáticas, quando têm de enfrentar a
doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde adequados, ou quando
se prolonga o tempo sem ter conseguido um emprego decente. «As coerções
económicas excluem o acesso das famílias à educação, à vida cultural e à vida
social activa. O actual sistema económico produz várias formas de exclusão
social. As famílias sofrem de modo particular com os problemas relativos ao
trabalho. As possibilidades para os jovens são poucas e a oferta de trabalho é
muito selectiva e precária. As jornadas de trabalho são longas e, muitas vezes,
agravadas pelo tempo gasto na deslocação. Isto não ajuda os esposos a
encontrar-se entre si e com os filhos, para alimentar diariamente as suas
relações».[27]
45. «Há muitos filhos nascidos fora do matrimónio,
especialmente nalguns países, e muitos são os que, em seguida, crescem comum só
dos progenitores e num contexto familiar alargado ou reconstituído. (...) Por
outro lado, a exploração sexual da infância constitui uma das realidades mais
escandalosas e perversas da sociedade actual. Além disso, nas sociedades feridas
pela violência da guerra, do terrorismo ou da presença do crime organizado,
acabam deterioradas as situações familiares, sobretudo nas grandes metrópoles,
e nas suas periferias cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua».[28] O
abuso sexual das crianças torna-se ainda mais escandaloso, quando se verifica
em ambientes onde deveriam ser protegidas, particularmente nas famílias e nas
comunidades e instituições cristãs.[29]
46. As migrações «constituem outro sinal dos
tempos, que deve ser enfrentado e compreendido com todo o seu peso de
consequências sobre a vida familiar».[30] O
último Sínodo atribuiu grande importância a esta problemática ao reconhecer
que, «sob modalidades diferentes, atinge populações inteiras em várias partes
do mundo. A Igreja desempenhou, neste campo, papel de primária grandeza. A
necessidade de manter e desenvolver este testemunho evangélico (cf. Mt 25,
35) aparece hoje mais urgente do que nunca. (...) A mobilidade humana, que
corresponde ao movimento histórico natural dos povos, pode revelar-se uma verdadeira
riqueza tanto para a família que emigra como para o país que a recebe. Caso
diferente é a migração forçada das famílias, em consequência de situações de
guerra, perseguição, pobreza, injustiça, marcada pelas vicissitudes duma viagem
que, muitas vezes, põe em perigo a vida, traumatiza as pessoas e destabiliza as
famílias. O acompanhamento dos migrantes exige uma pastoral específica dirigida
tanto às famílias que emigram como aos membros dos núcleos familiares que
ficaram nos lugares de origem. Isto deve ser feito respeitando as suas
culturas, a formação religiosa e humana da sua origem, a riqueza espiritual dos
seus ritos e tradições, inclusive através dum cuidado pastoral específico.
(...) As migrações revelam-se particularmente dramáticas e devastadoras tanto
para as famílias como para as pessoas, quando têm lugar à margem da legalidade
e são sustentadas por circuitos internacionais do tráfico de pessoas. O mesmo
se pode dizer quando envolvem mulheres ou crianças não acompanhadas, forçadas a
estadias prolongadas nos locais de passagem entre um país e outro, nos campos
de refugiados, onde não é possível iniciar um percurso de integração. A pobreza
extrema e outras situações de desintegração induzem, por vezes, as famílias até
mesmo a vender os próprios filhos para a prostituição ou o tráfico de órgãos».[31] «As
perseguições dos cristãos, bem como as de minorias étnicas e religiosas, em
várias partes do mundo, especialmente no Médio Oriente, constituem uma grande
prova: não só para a Igreja mas também para toda a comunidade internacional.
Devem ser apoiados todos os esforços para favorecer a permanência das famílias
e das comunidades cristãs nas suas terras de origem».[32]
47. Os Padres dedicaram especial atenção também «às
famílias das pessoas com deficiência, já que tal deficiência, ao irromper na
vida, gera um desafio profundo e inesperado e transtorna os equilíbrios, os
desejos, as expectativas. (...) Merecem grande admiração as famílias que
aceitam, com amor, a prova difícil dum filho deficiente. Dão à Igreja e à
sociedade um valioso testemunho de fidelidade ao dom da vida. A família poderá
descobrir, juntamente com a comunidade cristã, novos gestos e linguagens,
formas de compreensão e identidade, no percurso de acolhimento e cuidado do
mistério da fragilidade. As pessoas com deficiência são, para a família, um dom
e uma oportunidade para crescer no amor, na ajuda recíproca e na unidade. (...)
A família que aceita, com os olhos da fé, a presença de pessoas com deficiência
poderá reconhecer e garantir a qualidade e o valor de cada vida, com as suas
necessidades, os seus direitos e as suas oportunidades. Tal família
providenciará assistência e cuidados e promoverá companhia e carinho em cada
fase da vida».[33] Quero
sublinhar que a atenção prestada tanto aos migrantes como às pessoas com
deficiência é um sinal do Espírito. Pois ambas as situações são paradigmáticas:
põem especialmente em questão o modo como se vive, hoje, a lógica do
acolhimento misericordioso e da integração das pessoas frágeis.
48. «A maioria das famílias respeita os idosos,
rodeia-os de carinho e considera-os uma bênção. Um agradecimento especial deve
ser dirigido às associações e movimentos familiares que trabalham a favor dos
idosos, sob o aspecto espiritual e social (...). Nas sociedades altamente industrializadas,
onde o seu número tende a aumentar enquanto diminui a taxa de natalidade, os
idosos correm o risco de ser vistos como um peso. Por outro lado, os cuidados
que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes queridos».[34] «A
valorização da fase conclusiva da vida é, hoje, ainda mais necessária, porque
na sociedade actual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o momento da
passagem. Às vezes, a fragilidade e dependência do idoso são iniquamente
exploradas por mero proveito económico. Muitas famílias ensinam-nos que é
possível enfrentar os últimos anos da vida, valorizando o sentido de realização
e integração de toda a existência no mistério pascal. Um grande número de
idosos é acolhido em estruturas da Igreja, onde podem viver num ambiente sereno
e familiar a nível material e espiritual. A eutanásia e o suicídio assistido
são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A sua prática é legal em
muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais
práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros
idosos e doentes».[35]
49. Quero assinalar a situação das famílias caídas
na miséria, penalizadas de tantas maneiras, onde as limitações da vida se fazem
sentir de forma lancinante. Se todos têm dificuldades, estas, numa casa muito
pobre, tornam-se mais duras.[36] Por
exemplo, se uma mulher deve criar o seu filho sozinha, devido a uma separação
ou por outras causas, e tem de ir trabalhar sem a possibilidade de o deixar com
outra pessoa, o filho cresce num abandono que o expõe a todos os tipos de risco
e fica comprometido o seu amadurecimento pessoal. Nas situações difíceis em que
vivem as pessoas mais necessitadas, a Igreja deve pôr um cuidado especial em
compreender, consolar e integrar, evitando impor-lhes um conjunto de normas
como se fossem uma rocha, tendo como resultado fazê-las sentir-se julgadas e
abandonadas precisamente por aquela Mãe que é chamada a levar-lhes a
misericórdia de Deus. Assim, em vez de oferecer a força sanadora da graça e da
luz do Evangelho, alguns querem «doutrinar» o Evangelho, transformá-lo em
«pedras mortas para as jogar contra os outros».[37]
Alguns desafios
50. As respostas recebidas nas duas consultações,
efectuadas no caminho sinodal, mencionaram as mais diversas situações que
colocam novos desafios. Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à
função educativa, que acaba dificultada porque, entre outras causas, os pais
chegam a casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não
há sequer o hábito de comer em juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas
de distracção, para além da dependência da televisão. Isto torna difícil a
transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias
habitualmente padecem duma enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por
prevenir problemas futuros do que por compartilhar o presente. Isto, que é uma
questão cultural, vê-se agravado por um futuro profissional incerto, pela
insegurança económica ou pelo medo quanto ao futuro dos filhos.
51. Mencionou-se também a toxicodependência como um
dos flagelos do nosso tempo que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba
por destruí-las. Algo semelhante acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e
outras dependências. A família poderia ser o lugar da prevenção e das boas
regras, mas a sociedade e a política não chegam a perceber que uma família em
risco «perde a capacidade de reacção para ajudar os seus membros (...).
Observamos as graves consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos
desenraizados, idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e
jovens desorientados e sem regras». [38] Como
apontaram os bispos do México, há tristes situações de violência familiar que
são terreno fértil para novas formas de agressividade social, porque «as
relações familiares explicam também a predisposição para uma personalidade
violenta. As famílias que influem nesta direcção são aquelas em que há uma
comunicação deficiente; aquelas em que predominam as atitudes defensivas e os
seus membros não se apoiam entre si; onde não há actividades familiares que
favoreçam a participação; as famílias onde as relações entre os pais costumam
ser conflituosas e violentas, e as relações pais-filhos se caracterizam por
atitudes hostis. A violência no seio da família é escola de ressentimento e
ódio nas relações humanas básicas».[39]
52. Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da
família como sociedade natural fundada no matrimónio seja algo que beneficia a
sociedade. Antes pelo contrário, prejudica o amadurecimento das pessoas, o
cultivo dos valores comunitários e o desenvolvimento ético das cidades e das
aldeias. Já não se adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel
entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um
compromisso estável e tornar possível a fecundidade. Devemos reconhecer a
grande variedade de situações familiares que podem fornecer uma certa regra de
vida, mas as uniões de facto ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não
podem ser simplistamente equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou
fechada à transmissão da vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem
se preocupa hoje com fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que
os ameaçam, acompanhá-los no seu papel educativo, incentivar a estabilidade da
união conjugal?
53. «Nalgumas sociedades, vigora ainda a prática da
poligamia; noutros contextos, permanece a prática dos matrimónios combinados.
(...) Em muitos contextos, e não apenas ocidentais, está a difundir-se
largamente a prática da convivência que precede o matrimónio e também a prática
de convivências não orientadas para assumir a forma dum vínculo institucional».[40] Em
vários países, a legislação facilita o avanço de várias alternativas, de modo
que um matrimónio com as características de exclusividade, indissolubilidade e
abertura à vida acaba por aparecer como mais uma proposta antiquada entre
muitas outras. Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família,
que tende a adoptar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da
autonomia da vontade. Embora seja legítimo e justo rejeitar velhas formas de
família «tradicional», caracterizadas pelo autoritarismo e inclusive pela
violência, todavia isso não deveria levar ao desprezo do matrimónio, mas à
redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua renovação. A força da família
«reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito
ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor».[41]
54. Neste relance sobre a realidade, desejo
salientar que, apesar das melhorias notáveis registadas no reconhecimento dos
direitos da mulher e na sua participação no espaço público, ainda há muito que
avançar nalguns países. Não se acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis;
destaco a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os
maus-tratos familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um
sinal de força masculina, mas uma covarde degradação. A violência verbal,
física e sexual, perpetrada contra as mulheres nalguns casais, contradiz a
própria natureza da união conjugal. Penso na grave mutilação genital da mulher
nalgumas culturas, mas também na desigualdade de acesso a postos de trabalho
dignos e aos lugares onde as decisões são tomadas. A história carrega os
vestígios dos excessos das culturas patriarcais, onde a mulher era considerada
um ser de segunda classe, mas recordemos também o «aluguer de ventres» ou «a
instrumentalização e comercialização do corpo feminino na cultura mediática
contemporânea».[42]Alguns
consideram que muitos dos problemas actuais ocorreram a partir da emancipação
da mulher. Mas este argumento não é válido, «é falso, não é verdade! Trata-se
de uma forma de machismo».[43] A
idêntica dignidade entre o homem e a mulher impele a alegrar-nos com a
superação de velhas formas de discriminação e o desenvolvimento dum estilo de
reciprocidade dentro das famílias. Se aparecem formas de feminismo que não
podemos considerar adequadas, de igual modo admiramos a obra do Espírito no
reconhecimento mais claro da dignidade da mulher e dos seus direitos.
55. O homem «desempenha um papel igualmente
decisivo na vida da família, especialmente na protecção e sustentamento da
esposa e dos filhos. (...) Muitos homens estão conscientes da importância do
seu papel na família e vivem-no com as qualidades peculiares da índole
masculina. A ausência do pai penaliza gravemente a vida familiar, a educação
dos filhos e a sua integração na sociedade. Tal ausência pode ser física,
afectiva, cognitiva e espiritual. Esta carência priva os filhos dum modelo
adequado do comportamento paterno».[44]
56. Outro desafio surge de várias formas duma
ideologia genericamente chamada gender, que «nega a diferença e a
reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de
sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a
projectos educativos e directrizes legislativas que promovem uma identidade
pessoal e uma intimidade afectiva radicalmente desvinculadas da diversidade
biológica entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção
individualista, que também muda com o tempo».[45] Preocupa
o facto de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas
aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único
que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso não esquecer que
«sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender)
podem-se distinguir, mas não separar».[46]Por
outro lado, «a revolução biotecnológica no campo da procriação humana
introduziu a possibilidade de manipular o acto generativo, tornando-o
independente da relação sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana bem
como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e
decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos
casais».[47]Uma
coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é
aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da
realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos
criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida
como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto
significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.
57. Dou graças a Deus porque muitas famílias, que
estão bem longe de se considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua
vocação e continuam para diante embora caiam muitas vezes ao longo do caminho.
Partindo das reflexões sinodais, não se chega a um estereótipo da família
ideal, mas um interpelante mosaico formado por muitas realidades diferentes,
cheias de alegrias, dramas e sonhos. As realidades que nos preocupam, são
desafios. Não caiamos na armadilha de nos consumirmos em lamentações
autodefensivas, em vez de suscitar uma criatividade missionária. Em todas as
situações, «a Igreja sente a necessidade de dizer uma palavra de verdade e de
esperança. (...) Os grandes valores do matrimónio e da família cristã
correspondem à busca que atravessa a existência humana».[48]Se
constatamos muitas dificuldades, estas são – como disseram os bispos da
Colômbia – um apelo para «libertar em nós as energias da esperança,
traduzindo-as em sonhos proféticos, acções transformadoras e imaginação da
caridade».[49]
58. Diante das famílias e no meio delas, deve
ressoar sempre de novo o primeiro anúncio, que é o «mais belo, mais importante,
mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário»[50] e
«deve ocupar o centro da atividade evangelizadora».[51] É
o anúncio principal, «aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes
maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou
doutra».[52]Porque
«nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais
sábio que esse anúncio» e «toda a formação cristã é, primariamente, o
aprofundamento do querigma».[53]
59. O nosso ensinamento sobre o matrimónio e a
família não pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de
amor e ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem
vida. Com efeito, o próprio mistério da família cristãs ó se pode compreender
plenamente à luz do amor infinito do Pai, que se manifestou em Cristo entregue
até ao fim e vivo entre nós. Por isso, quero contemplar Cristo vivo que está
presente em tantas histórias de amor e invocar o fogo do Espírito sobre todas
as famílias do mundo.
60. Dentro deste quadro, o presente capítulo
recolhe uma síntese da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família.
Também aqui citarei várias contribuições prestadas pelos Padres sinodais nas
suas considerações acerca da luz que a fé nos oferece. Eles partiram do olhar
de Jesus, dizendo que Ele «olhou para as mulheres e os homens que encontrou com
amor e ternura, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e
misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus».[54] De
igual modo nos acompanha, hoje, o Senhor no nosso compromisso de viver e
transmitir o Evangelho da família.
Jesus recupera e realiza plenamente o
projecto divino
61. Contrariamente àqueles que proibiam o
matrimónio, o Novo Testamento ensina que «tudo o que Deus criou é bom e nada
deve ser rejeitado» (1Tim 4, 4). O matrimónio é um «dom» do Senhor
(cf. 1 Cor 7, 7). Ao mesmo tempo que se dá esta avaliação
positiva, acentua-se fortemente a obrigação de cuidar deste dom divino: «Seja o
matrimónio honrado por todos e imaculado o leito conjugal» (Heb 13,
4). Este dom de Deus inclui a sexualidade: «Não vos recuseis um ao outro» (1Cor 7,
5).
62. Os Padres sinodais lembraram que Jesus, «ao
referir-Se ao desígnio primordial sobre o casal humano, reafirma a união
indissolúvel entre o homem e a mulher, mesmo admitindo que, “por causa da
dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres;
mas, ao princípio, não foi assim” (Mt 19, 8). A indissolubilidade
do matrimónio (“o que Deus uniu não o separe o homem”: Mt 19,
6) não se deve entender primariamente como “jugo” imposto aos homens, mas como
um “dom” concedido às pessoas unidas em matrimónio. (...) A condescendência
divina acompanha sempre o caminho humano, com a sua graça, cura e transforma o
coração endurecido, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da
cruz. Nos Evangelhos, sobressai claramente a postura de Jesus, que (...)
anunciou a mensagem relativa ao significado do matrimónio como plenitude da
revelação que recupera o projecto originário de Deus (cf. Mt 19,
3)».[55]
63. «Jesus, que reconciliou em Si todas as coisas,
voltou a levar o matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc10,
1-12). A família e o matrimónio foram redimidos por Cristo(cf. Ef 5,
21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério donde brota todo
o amor verdadeiro. A aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na
história da salvação, recebe a revelação plena do seu significado em Cristo e
na sua Igreja. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a
graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O
Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27) até à realização
do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro
(cf. Ap 19, 9)».[56]
64. «A postura de Jesus é paradigmática para a
Igreja (...). Ele inaugurou a sua vida pública com o sinal de Caná, realizado
num banquete de núpcias (cf. Jo 2, 1-11). (…) Compartilhou
momentos diários de amizade com a família de Lázaro e suas irmãs (cf.Lc10,
38) e com a família de Pedro (cf. Mt 8, 14). Escutou o pranto
dos pais pelos seus filhos, restituindo-os à vida (cf. Mc 5,
41;Lc 7, 14-15) e mostrando assim o verdadeiro significado da
misericórdia, a qual implica a restauração da Aliança (cf. João Paulo II,Dives in misericordia, 4).Vê-se isto claramente nos
encontros com a mulher samaritana (cf. Jo 4, 1-30) e com a
adúltera (cf. Jo 8, 1-11), nos quais a noção do pecado é
avivada perante o amor gratuito de Jesus».[57]
65. A encarnação do Verbo numa família humana, em
Nazaré, comove com a sua novidade a história do mundo. Precisamos de mergulhar
no mistério do nascimento de Jesus, no sim de Maria ao anúncio do anjo, quando
foi concebida a Palavra no seu seio; e ainda no sim de José, que deu o nome a
Jesus e cuidou de Maria; na festa dos pastores no presépio; na adoração dos
Magos; na fuga para o Egipto, em que Jesus participou no sofrimento do seu povo
exilado, perseguido e humilhado; na devota espera de Zacarias e na alegria que
acompanhou o nascimento de João Baptista; na promessa que Simeão e Ana viram
cumprida no templo; na admiração dos doutores da lei ao escutarem a sabedoria
de Jesus adolescente. E, em seguida, penetrar nos trinta longos anos em que
Jesus ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração e a
tradição crente do seu povo e formando-Se na fé dos seus pais, até fazê-la
frutificar no mistério do Reino. Este é o mistério do Natal e o segredo de
Nazaré, cheio de perfume a família! É o mistério que tanto fascinou Francisco
de Assis, Teresa do Menino Jesus e Charles de Foucauld, e do qual bebem também
as famílias cristãs para renovar a sua esperança e alegria.
66. «A aliança de amor e fidelidade, vivida pela
Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a
torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. Sobre
este fundamento, cada família, mesmo na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz
na escuridão do mundo. “Aqui se aprende (…) uma lição de vida familiar. Que
Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e
simples beleza, o seu carácter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré como
é preciosa e insubstituível a educação familiar e como é fundamental e
incomparável a sua função no plano social”(Paulo VI, Alocução em Nazaré,
5 de Janeiro de 1964)».[58]
A família nos documentos da Igreja
67. O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-se, na
Constituição pastoral Gaudium et spes, da promoção da dignidade do
matrimónio e da família (cf. nn. 47-52). «Definiu o matrimónio como comunidade
de vida e amor (cf. n. 48), colocando o amor no centro da família (...). O
“verdadeiro amor entre marido e mulher” (n. 49) implica a mútua doação de si
mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a afectividade, correspondendo ao
desígnio divino (cf. nn. 48-49). Além disso sublinha o enraizamento dos esposos
em Cristo: Cristo Senhor “vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento
do matrimónio” (n. 48) e permanece com eles. Na encarnação, Ele assume o amor
humano, purifica-o, leva-o à plenitude e dá aos esposos, com o seu Espírito, a
capacidade de o viver, impregnando toda a sua vida com a fé, a esperança e a
caridade. Assim, os cônjuges são de certo modo consagrados e, por meio duma
graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem uma igreja doméstica
(cf. Lumen gentium, 11), de tal modo que a Igreja, para
compreender plenamente o seu mistério, olha para a família cristã, que o
manifesta de forma genuína».[59]
68. Em seguida, «na esteira do Concílio Vaticano
II, o Beato Paulo VI aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e a família. Em
particular, com a Encíclica Humanae vitae, destacou o vínculo intrínseco entre
amor conjugal e procriação: “o amor conjugal requer nos esposos uma consciência
da sua missão de ‘paternidade responsável’, sobre a qual hoje tanto se insiste,
e justificadamente, e que deve também ela ser compreendida com exactidão (...).
O exercício responsável da paternidade implica, portanto, que os cônjuges
reconheçam plenamente os próprios deveres para com Deus, para consigo próprios,
para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores”(n.
10). Na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, Paulo VI salientou a relação entre a
família e a Igreja».[60]
69. «São João Paulo II dedicou especial atenção à
família, através das suas catequeses sobre o amor humano, a Carta às famíliasGratissimam sane e sobretudo com a Exortação
apostólica Familiaris consortio. Nestes documentos, o Pontífice
definiu a família «caminho da Igreja»; ofereceu uma visão de conjunto sobre a
vocação ao amor do homem e da mulher; propôs as linhas fundamentais para a
pastoral da família e para a presença da família na sociedade. Concretamente,
ao tratar da caridade conjugal (cf. Familiaris consortio, 13), descreveu o modo como os
cônjuges, no seu amor mútuo, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua vocação
à santidade».[61]
70. «Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est, retomou o tema da verdade do amor
entre o homem e a mulher, que se vê iluminado plenamente apenas à luz do amor
de Cristo crucificado (cf.n. 2). Sublinha que “o matrimónio baseado num amor
exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu
povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano”(n.
11).Além disso, na Encíclica Caritas in veritate, destaca a importância do amor como
princípio devida na sociedade (cf. n. 44), lugar onde se aprende a experiência
do bem comum».[62]
O sacramento do matrimónio
71. «A Sagrada Escritura e a Tradição abrem-nos o
acesso a um conhecimento da Trindade que Se revela com traços familiares. A
família é imagem de Deus, que (…) é comunhão de pessoas. No baptismo, a voz do
Pai chamou a Jesus Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer o Espírito
Santo (cf. Mc 1, 10-11). Jesus, que tudo reconciliou em Si
mesmo e redimiu o homem do pecado, não só voltou a levar o matrimónio e a
família à sua forma original, mas também elevou o matrimónio a sinal
sacramental do seu amor pela Igreja (cf. Mt 19, 1-12; Mc 10,
1-12; Ef 5, 21-32). Na família humana, reunida em Cristo, é
restaurada a “imagem e semelhança” da Santíssima Trindade (cf. Gn 1,
26), mistério donde brota todo o amor verdadeiro. O matrimónio e a família
recebem de Cristo, através da Igreja, a graça para testemunhar o Evangelho do
amor de Deus».[63]
72. O sacramento do matrimónio não é uma convenção
social, um rito vazio ou o mero sinal externo dum compromisso. O sacramento é
um dom para a santificação e a salvação dos esposos, porque «a sua pertença
recíproca é a representação real, através do sinal sacramental, da mesma
relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a
lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para
os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar».[64] O
matrimónio é uma vocação, sendo uma resposta à chamada específica para viver o
amor conjugal como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso,
a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto dum discernimento
vocacional.
73. «O dom recíproco constitutivo do matrimónio
sacramental está enraizado na graça do baptismo, que estabelece a aliança
fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. Na mútua recepção e com a
graça de Cristo, os noivos prometem-se entrega total, fidelidade e abertura à
vida, e também reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons
que Deus lhes oferece, tomando a sério o seu mútuo compromisso, em nome de Deus
e perante a Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens do matrimónio como
compromissos que se podem cumprir melhor com a ajuda da graça do sacramento.
(...) Portanto, o olhar da Igreja volta-se para os esposos como o coração da
família inteira, que, por sua vez, levanta o seu olhar para Jesus».[65] O
sacramento não é uma «coisa» nem uma «força», mas o próprio Cristo, na
realidade, «vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do
matrimónio. Fica com eles, dá-lhes a coragem de O seguirem, tomando sobre si a
sua cruz, de se levantarem depois das quedas, de se perdoarem mutuamente, de levarem
o fardo um do outro».[66] O
matrimónio cristão é um sinal que não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja
na Aliança selada na Cruz, mas torna presente esse amor na comunhão dos
esposos. Quando se unem numa só carne, representam o desposório do Filho de
Deus com a natureza humana. Por isso, «nas alegrias do seu amor e da sua vida
familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um antegozo do festim das núpcias do
Cordeiro».[67] Embora
«a analogia entre o casal marido-esposa e Cristo-Igreja» seja uma «analogia
imperfeita»,[68] convida
a invocar o Senhor para que derrame o seu amor nas limitações das relações
conjugais.
74. Vivida de modo humano e santificada pelo
sacramento, a união sexual é, por sua vez, caminho de crescimento na vida da
graça para os esposos. É o «mistério nupcial».[69] O
valor da união dos corpos está expresso nas palavras do consentimento, pelas
quais se acolheram e doaram reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas
palavras conferem um significado à sexualidade, libertando-a de qualquer
ambiguidade. Mas, na realidade, toda a vida em comum dos esposos, toda a rede
de relações que hão-de tecer entre si, com os seus filhos e com o mundo, estará
impregnada e robustecida pela graça do sacramento que brota do mistério da
Encarnação e da Páscoa, onde Deus exprimiu todo o seu amor pela humanidade e Se
uniu intimamente com ela. Os esposos nunca estarão sós, com as suas próprias
forças, a enfrentar os desafios que surgem. São chamados a responder ao dom de
Deus com o seu esforço, a sua criatividade, a sua perseverança e a sua luta
diária, mas sempre poderão invocar o Espírito Santo que consagrou a sua união,
para que a graça recebida se manifeste sem cessar em cada nova situação.
75. No sacramento do matrimónio, segundo a tradição
latina da Igreja, os ministros são o homem e a mulher que se casam,[70]os
quais, ao manifestar o seu consentimento e expressá-lo na sua entrega corpórea,
recebem um grande dom. O seu consentimento e a união dos seus corpos são os
instrumentos da acção divina que os torna uma só carne. No baptismo, ficou
consagrada a sua capacidade de se unir em matrimónio como ministros do Senhor,
para responder à vocação de Deus. Por isso, quando dois cônjuges não-cristãos
recebem o baptismo, não é necessário renovar a promessa nupcial sendo
suficiente que não a rejeitem, pois, pelo baptismo que recebem, essa união
torna-se automaticamente sacramental. O próprio direito canónico reconhece a
validade de alguns matrimónios que se celebram sem um ministro ordenado.[71] É
que a ordem natural foi assumida pela redenção de Jesus Cristo, pelo que,
«entre baptizados, não pode haver contrato matrimonial válido que não seja,
pelo mesmo facto, sacramento».[72] A
Igreja pode exigir que o acto seja público, a presença de testemunhas e outras
condições que foram variando ao longo da história, mas isto não tira, aos dois
esposos, o seu carácter de ministros do sacramento, nem diminui a centralidade
do consentimento do homem e da mulher, que é aquilo que, de por si, estabelece
o vínculo sacramental. Em todo o caso, precisamos de reflectir mais sobre a
acção divina no rito nupcial, que aparece muito evidenciada nas Igrejas Orientais
ao ressaltarem a importância da bênção sobre os contraentes como sinal do dom
do Espírito.
Sementes do Verbo e situações
imperfeitas
76. «O Evangelho da família nutre também as
sementes ainda à espera de desenvolver-se e deve cuidar das árvores que perderam
vitalidade e necessitam que não as transcurem»,[73] de
modo que, partindo do dom de Cristo no sacramento, «sejam conduzidas
pacientemente mais além, chegando a um conhecimento mais rico e uma integração
mais plena deste mistério na sua vida».[74]
77. Assumindo o ensinamento bíblico de que tudo foi
criado por Cristo e para Cristo (cf. Col 1, 16), os Padres
sinodais lembraram que «a ordem da redenção ilumina e realiza a da criação.
Assim, o matrimónio natural compreende-se plenamente à luz da sua realização
sacramental: só fixando o olhar em Cristo é que se conhece cabalmente a verdade
das relações humanas. “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do
Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. (...) Cristo, novo Adão, na
própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime” (Gaudium et spes, 22). Em particular é oportuno
compreender, em chave cristocêntrica, (...) o bem dos cônjuges (bonum
coniugum)»,[75]que
inclui a unidade, a abertura à vida, a fidelidade, a indissolubilidade e, no
matrimónio cristão, também a ajuda mútua no caminho que leva a uma amizade mais
plena com o Senhor. «O discernimento da presença das semina Verbi nas
outras culturas (cf. Ad gentes, 11) pode-se aplicar também à
realidade matrimonial e familiar. Para além do verdadeiro matrimónio natural,
há elementos positivos também nas formas matrimoniais doutras tradições
religiosas»,[76] embora
não faltem também as sombras. Podemos dizer que «toda a pessoa que deseja
formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se por cada
acção que se proponha vencer o mal – uma família que mostre que o Espírito está
vivo e operante – encontrará gratidão e estima, independentemente do povo,
região ou religião a que pertença».[77]
78. «O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o
homem (cf. Jo 1, 9; Gaudium et spes, 22), inspira o cuidado pastoral da
Igreja pelos fiéis que simplesmente vivem juntos, que contraíram matrimónio
apenas civil ou são divorciados que voltaram a casar. Na perspectiva da
pedagogia divina, a Igreja olha com amor para aqueles que participam de modo
imperfeito na vida dela: com eles, invoca a graça da conversão; encoraja-os
afazerem o bem, a cuidarem com amor um do outro e colocarem-se ao serviço da
comunidade onde vivem e trabalham. (...) Quando a união alcança uma
estabilidade notável por meio dum vínculo público – e se reveste de afecto
profundo, responsabilidade pela prole, capacidade de superaras provações –,
pode ser vista como uma oportunidade a encaminhar para o sacramento do
matrimónio, sempre que este seja possível».[78]
79. «Perante situações difíceis e famílias feridas,
é preciso lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor
à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio, 84). O grau de responsabilidade não é
igual em todos os casos, e podem existir factores que limitem a capacidade de
decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que
evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações,
e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da
sua condição».[79]
A transmissão da vida e a educação dos
filhos
80. O matrimónio é, em primeiro lugar, uma «íntima
comunidade da vida e do amor conjugal»,[80]que
constitui um bem para os próprios esposos;[81]e
a sexualidade «ordena-se para o amor conjugal do homem e da mulher».[82]Por
isso, também «os esposos a quem Deus não concedeu a graça de ter filhos podem
ter uma vida conjugal cheia de sentido, humana e cristãmente falando».[83]Contudo,
esta união está ordenada para a geração «por sua própria natureza».[84]O
bebé que chega «não vem de fora juntar-se ao amor mútuo dos esposos; surge no
próprio coração deste dom mútuo, do qual é fruto e complemento».[85]Não
aparece como o final dum processo, mas está presente desde o início do amor
como uma característica essencial que não pode ser negada sem mutilar o próprio
amor. Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si
mesmo, e abre-se a uma fecundidade que o prolonga para além da sua própria
existência. Assim nenhum acto sexual dos esposos pode negar este significado,[86]embora,
por várias razões, nem sempre possa efectivamente gerar uma nova vida.
81. O filho pede para nascer, não de qualquer
maneira, mas deste amor, porque ele «não é uma dívida, mas uma dádiva»,[87]que
é «o fruto do acto específico do amor conjugal de seus pais».[88] Com
efeito, «segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma
mulher e a transmissão da vida estão ordenados reciprocamente (cf. Gn 1,
27-28). Deste modo, o Criador tornou participantes da obra da sua criação o
homem e a mulher e, ao mesmo tempo, fê-los instrumentos do seu amor, confiando
à sua responsabilidade o futuro da humanidade através da transmissão da vida
humana».[89]
82. Os Padres sinodais referiram que «não é difícil
constatar como se está espalhando uma mentalidade que reduza geração da vida a
uma variável dos projectos individuais ou dos cônjuges».[90] A
doutrina da Igreja «ajuda a viver de maneira harmoniosa e consciente a comunhão
entre os cônjuges, em todas as suas dimensões, juntamente com a
responsabilidade geradora. É preciso redescobrira mensagem da Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que sublinha a necessidade
de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral dos métodos de regulação
da natalidade. (...)A escolha da adopção e do acolhimento exprime uma
fecundidade particular da experiência conjugal».[91] Com
particular gratidão, a Igreja «apoia as famílias que acolhem, educam e rodeiam
de carinho os filhos deficientes».[92]
83. Neste contexto, não posso deixar de afirmar
que, se a família é o santuário da vida, o lugar onde a vida é gerada e
cuidada, constitui uma contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é
negada e destruída. É tão grande o valor duma vida humana e inalienável o
direito à vida do bebé inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo
nenhum se pode afirmar como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de
tomar decisões sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto
de domínio doutro ser humano. A família protege a vida em todas as fases da
mesma, incluindo o seu ocaso. Por isso, «a quem trabalha nas estruturas
sanitárias, lembra-se a obrigação moral da objecção de consciência. Da mesma
forma, a Igreja não só sente a urgência de afirmar o direito à morte natural,
evitando o excesso terapêutico e a eutanásia», mas também «rejeita firmemente a
pena de morte».[93]
84. Os Padres quiseram sublinhar também que «um dos
desafios fundamentais que as famílias enfrentam hoje é seguramente o desafio
educativo, que se tornou ainda mais difícil e complexo por causa da realidade
cultural actual e da grande influência dos meios de comunicação».[94] «A
Igreja desempenha um papel precioso de apoio às famílias, a começar pela
iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras».[95] Mas
parece-me muito importante lembrar que a educação integral dos filhos é,
simultaneamente, «dever gravíssimo» e «direito primário» dos pais.[96] Não
é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e
insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pretender
tirar-lhes. O Estado oferece um serviço educativo de maneira subsidiária,
acompanhando a função não-delegável dos pais, que têm direito de poder escolher
livremente o tipo de educação – acessível e de qualidade – que querem dar aos
seus filhos, de acordo com as suas convicções. A escola não substitui os pais;
serve-lhes de complemento. Este é um princípio básico: «qualquer outro
participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com
o seu consenso e, em certa media, até mesmo por seu encargo».[97]Infelizmente,
«abriu-se uma fenda entre família e sociedade, entre família e escola; hoje, o
pacto educativo quebrou-se; e, assim, a aliança educativa da sociedade com a
família entrou em crise».[98]
85. A Igreja é chamada a colaborar, com uma acção
pastoral adequada, para que os próprios pais possam cumprir a sua missão
educativa; e sempre o deve fazer, ajudando-os a valorizar a sua função
específica e a reconhecer que quantos recebem o sacramento do matrimónio são
transformados em verdadeiros ministros educativos, pois, quando formam os seus
filhos, edificam a Igreja[99] e,
fazendo-o, aceitam uma vocação que Deus lhes propõe.[100]
A família e a Igreja
86. «Com íntima alegria e profunda consolação, a
Igreja olha para as famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do
Evangelho, agradecendo-lhes pelo testemunho que dão e encorajando-as. Com
efeito, graças a elas, torna-se credível a beleza do matrimónio indissolúvel e
fiel para sempre. Na família, “como numa igreja doméstica” (Lumen gentium, 11), amadurece a primeira experiência
eclesial da comunhão entre as pessoas, na qual, por graça, se reflecte o
mistério da Santíssima Trindade. “É aqui que se aprende a tenacidade e a
alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado, e
sobretudo o culto divino, pela oração e pelo oferecimento da própria vida” (Catecismo da Igreja Católica, 1657)».[101]
87. A Igreja é família de famílias, constantemente
enriquecida pela vida de todas as igrejas domésticas. Assim, «em virtude do
sacramento do matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem
para a Igreja. Nesta perspectiva, será certamente um dom precioso, para o
momento actual da Igreja, considerar também a reciprocidade entre família e
Igreja: a Igreja é um bem para a família, a família é um bem para a Igreja. A
salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família
individual, mas a toda a comunidade cristã».[102]
88. O amor vivido nas famílias é uma força
permanente para a vida da Igreja. «O fim unitivo do matrimónio é um apelo
constante a crescer e aprofundar este amor. Na sua união de amor, os esposos
experimentam a beleza da paternidade e da maternidade; partilham projectos e
fadigas, anseios e preocupações; aprendem a cuidar um do outro e a perdoar-se
mutuamente. Neste amor, celebram os seus momentos felizes e apoiam-se nos
episódios difíceis da história da sua vida. (...)A beleza do dom recíproco e
gratuito, a alegria pela vida que nasce e a amorosa solicitude de todos os seus
membros, desde os pequeninos aos idosos, são apenas alguns dos frutos que
tornam única e insubstituível a resposta à vocação da família»,[103] tanto
para a Igreja como para a sociedade inteira.
89. Tudo o que foi dito não é suficiente para
exprimir o Evangelho do matrimónio e da família, se não nos detivermos
particularmente a falar do amor. Com efeito, não poderemos encorajar um caminho
de fidelidade e doação recíproca, se não estimularmos o crescimento, a
consolidação e o aprofundamento do amor conjugal e familiar. De facto, a graça
do sacramento do matrimónio destina-se, antes de mais nada, «a aperfeiçoar o
amor dos cônjuges».[104] Também
aqui é verdade que, «ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas,
se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e
entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor de nada me vale» (1Cor 13,
2-3). Mas a palavra «amor», uma das mais usadas, muitas vezes aparece
desfigurada.[105]
O nosso amor quotidiano
90. No chamado hino à caridade escrito por São
Paulo, vemos algumas características do amor verdadeiro:
«O amor é paciente,
o amor é prestável;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta» (1Cor 13, 4-7).
o amor é prestável;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta» (1Cor 13, 4-7).
Isto pratica-se e cultiva-se na vida que os esposos
partilham dia-a-dia entre si e com os seus filhos. Por isso, vale a pena
deter-se a esclarecer o significado das expressões deste texto, tendo em vista
uma aplicação à existência concreta de cada família.
Paciência
91. A primeira palavra usada é «macrothymei».
A sua tradução não é simplesmente «suporta tudo», porque esta ideia é expressa
no final do versículo 7. O sentido encontra-se na tradução grega do texto do
Antigo Testamento onde se diz que Deus é «lento para a ira» (Nm 14,
18; cf. Ex 34, 6). Uma pessoa mostra-se paciente, quando não
se deixa levar pelos impulsos interiores e evita agredir. A paciência é uma
qualidade do Deus da Aliança, que convida a imitá-Lo também na vida familiar.
Os textos onde Paulo usa este termo devem ser lidos à luz do livro da Sabedoria
(cf. 11, 23; 12, 2.15-18): ao mesmo tempo que se louva a moderação de Deus para
dar tempo ao arrependimento, insiste-se no seu poder que se manifesta quando
actua com misericórdia. A paciência de Deus é exercício da misericórdia de Deus
para com o pecador e manifesta o verdadeiro poder.
92. Ter paciência não é deixar que nos maltratem
permanentemente, nem tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como
objectos. O problema surge quando exigimos que as relações sejam idílicas, ou
que as pessoas sejam perfeitas, ou quando nos colocamos no centro esperando que
se cumpra unicamente a nossa vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva
a reagir com agressividade. Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos
desculpas para responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não
sabem conviver, anti-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a família
tornar-se-á um campo de batalha. Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: «Toda
a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós,
juntamente com toda a maldade» (Ef 4, 31). Esta paciência
reforça-se quando reconheço que o outro, assim como é, também tem direito a
viver comigo nesta terra. Não importa se é um estorvo para mim, se altera os
meus planos, se me molesta com o seu modo de ser ou com as suas ideias, se não é
em tudo como eu esperava. O amor possui sempre um sentido de profunda
compaixão, que leva a aceitar o outro como parte deste mundo, mesmo quando age
de modo diferente daquilo que eu desejaria.
Atitude de serviço
93. Vem depois a palavra jrestéuetai –
a única vez que aparece em toda a Bíblia –, que deriva de jrestós (pessoa
boa, que mostra a sua bondade nas acções). Mas pelo lugar onde está, ou seja,
em estrito paralelismo com o verbo anterior, é seu complemento. Deste modo
Paulo pretende esclarecer que a «paciência», nomeada em primeiro lugar, não é
uma postura totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada por uma actividade,
uma reacção dinâmica e criativa perante os outros. Indica que o amor beneficia
e promove os outros. Por isso, traduz-se como «prestável».
94. No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer
insistir que o amor não é apenas um sentimento, mas deve ser entendido no
sentido que o verbo «amar»tem em hebraico: «fazer o bem». Como dizia Santo
Inácio de Loyola, «o amor deve ser colocado mais nas obras do que nas
palavras».[106] Assim
poderá mostrar toda a sua fecundidade, permitindo-nos experimentara felicidade
de dar, a nobreza e grandeza de doar-se superabundantemente, sem calcular nem
reclamar pagamento, mas apenas pelo prazer de dar e servir.
Curando a inveja
95. Em seguida rejeita-se, como contrária ao amor,
uma atitude expressa como zeloi (ciúme ou inveja). Significa
que, no amor, não há lugar para sentir desgosto pelo bem do outro (cf. Act 7,
9;17, 5). A inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demonstrando que não nos
interessa a felicidade dos outros, porque estamos concentrados exclusivamente
no nosso bem-estar. Enquanto o amor nos faz sair de nós mesmos, a inveja leva a
centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro amor aprecia os sucessos alheios, não
os sente como uma ameaça, libertando-se do sabor amargo da inveja. Aceita que
cada um tenha dons distintos e caminhos diferentes na vida; e,
consequentemente, procura descobrir o seu próprio caminho para ser feliz,
deixando que os outros encontrem o deles.
96. Em última análise, trata-se de cumprir o que
pedem os dois últimos mandamentos da Lei de Deus: «Não desejarás a casa do teu
próximo. Não desejarás a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu
boi, o seu burro, e tudo o que é do teu próximo» (Ex 20, 17). O
amor leva-nos a uma apreciação sincera de cada ser humano, reconhecendo o seu
direito à felicidade. Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que
nos dá tudo «para nosso usufruto» (1Tim 6, 17), e consequentemente
aceito, no meu íntimo, que ela possa usufruir dum momento bom. Entretanto esta
mesma raiz do amor leva-me a rejeitar a injustiça de alguns terem muito e
outros não terem nada, ou induz-me a procurar que os próprios descartáveis da
sociedade possam viver um pouco de alegria. Mas isto não é inveja; são anseios
de equidade.
Sem ser arrogante nem se orgulhar
97. Segue-se o termo perpereuetai, que
indica vanglória, desejo de se mostrar superior para impressionar os outros com
atitude pedante e um pouco agressiva. Quem ama não só evita falar muito de si
mesmo, mas, porque está centrado nos outros, sabe manter-se no seu lugar sem
pretender estar no centro. A palavra seguinte – physioutai – é
muito semelhante, indicando que o amor não é arrogante. Literalmente afirma que
não se «engrandece» diante dos outros; mas indica algo de mais subtil. Não se
trata apenas duma obsessão por mostrar as próprias qualidades; é pior: perde-se
o sentido da realidade, a pessoa considera-se maior do que é, porque se crê
mais «espiritual» ou «sábia». Paulo usa este verbo noutras ocasiões, para
dizer, por exemplo, que «a ciência incha», ao passo que «a caridade edifica» (1Cor 8,
1). Por outras palavras, alguns julgam-se grandes, porque sabem mais do que os
outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na
realidade, o que nos faz grandes é o amor que compreende, cuida, integra, está
atento aos fracos. Noutro versículo, usa-o para criticar aqueles que «se
tornaram insolentes» (1Cor 4, 18), mas, na realidade, têm mais
palavreado do que verdadeiro «poder» do Espírito (cf. 1Cor 4,
19).
98. É importante que os cristãos vivam isto no seu
modo de tratar os familiares pouco formados na fé, frágeis ou menos firmes nas
suas convicções. Às vezes, dá-se o contrário: as pessoas que, no seio da
família, se consideram mais desenvolvidas, tornam-se arrogantes insuportáveis.
A atitude de humildade aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque,
para poder compreender, desculpar ou servir os outros de coração, é
indispensável curar o orgulho e cultivar a humildade. Jesus lembrava aos seus
discípulos que, no mundo do poder, cada um procura dominar o outro, e
acrescentava: «não seja assim entre vós» (Mt 20, 26). A lógica do
amor cristão não é a de quem se considera superior aos outros e precisa de
fazer-lhes sentir o seu poder, mas a de «quem no meio de vós quiser ser o
primeiro, seja vosso servo» (Mt 20, 27). Na vida familiar, não pode
reinar a lógica do domínio de uns sobre os outros, nem a competição para ver
quem é mais inteligente ou poderoso, porque esta lógica acaba com o amor. Vale
também para a família o seguinte conselho: «Revesti-vos todos de humildade no
trato uns com os outros, porque Deus opõe-se aos soberbos, mas dá a sua graça
aos humildes» (1Ped 5, 5).
Amabilidade
99. Amar é também tornar-se amável, e nisto está o
sentido do termo asjemonéi. Significa que o amor não age rudemente,
não actua de forma inconveniente, não se mostra duro no trato. Os seus modos,
as suas palavras, os seus gestos são agradáveis; não são ásperos, nem rígidos.
Detesta fazer sofrer os outros. A cortesia «é uma escola de sensibilidade e
altruísmo», que exige que a pessoa «cultive a sua mente e os seus sentidos,
aprenda a ouvir, a falar e, em certos momentos, a calar».[107] Ser
amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das
exigências irrenunciáveis do amor, por isso «todo o ser humano está obrigado a
ser afável com aqueles que o rodeiam».[108] Diariamente
«entrar na vida do outro, mesmo quando faz parte da nossa existência, exige a
delicadeza duma atitude não invasiva, que renova a confiança e o respeito.
(...) E quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto mais exigirá o respeito
pela liberdade e a capacidade de esperar que o outro abra a porta do seu
coração».[109]
100. A fim de se predispor para um verdadeiro
encontro com o outro, requer-se um olhar amável pousado nele. Isto não é
possível quando reina um pessimismo que põe em evidência os defeitos e erros
alheios, talvez para compensar os próprios complexos. Um olhar amável faz com
que nos detenhamos menos nos limites do outro, podendo assim tolerá-lo e
unirmo-nos num projecto comum, apesar de sermos diferentes. O amor amável gera
vínculos, cultiva laços, cria novas redes de integração, constrói um tecido
social firme. Deste modo, uma pessoa protege-se a si mesma, pois, sem sentido
de pertença, não se pode sustentar uma entrega aos outros, acabando cada um por
buscar apenas as próprias conveniências, e a convivência torna-se impossível.
Uma pessoa anti-social julga que os outros existem para satisfazer as suas
necessidades e, quando o fazem, cumprem apenas o seu dever. Neste caso, não
haveria espaço para a amabilidade do amor e a sua linguagem. A pessoa que ama é
capaz de dizer palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem, consolam,
estimulam. Vejamos, por exemplo, algumas palavras que Jesus dizia às pessoas:
«Filho, tem confiança!» (Mt 9, 2). «Grande é a tua fé!» (Mt 15,
28). «Levanta-te!» (Mc 5, 41). «Vai em paz» (Lc 7, 50).
«Não temais!» (Mt 14, 27). Não são palavras que humilham,
angustiam, irritam, desprezam. Na família, é preciso aprender esta linguagem
amável de Jesus.
Desprendimento
101. Como se diz muitas vezes, para amar os outros,
é preciso primeiro amar-se a si mesmo. Todavia este hino à caridade afirma que
o amor «não procura o seu próprio interesse», ou «não procura o que é seu».
Esta expressão aparece ainda noutro texto: «Não tenha cada um em vista os
próprios interesses, mas todos e cada um exactamente os interesses dos outros»
(Flp 2, 4).Perante uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura,
deve-se evitar de dar prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre
do que o dom de si aos outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se
pode entender como condição psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de se
amar a si mesma sente dificuldade em amar os outros: «Para quem será bom aquele
que é mau para si mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si
mesmo» (Sir 14, 5-6).
102. Mas o próprio Tomás de Aquino explicou «ser
mais próprio da caridade querer amar do que querer ser amado»,[110] e
que de facto «as mães, que são as que mais amam, procuram mais amar do que ser
amadas».[111] Por
isso, o amor pode superar a justiça e transbordar gratuitamente «sem nada
esperar em troca» (Lc 6, 35), até chegar ao amor maior que é «dar a
vida» pelos outros (Jo 15, 13). Mas será possível um desprendimento
assim, que permite dar gratuitamente e dar até ao fim? Sem dúvida, porque é o
que pede o Evangelho: «Recebestes de graça, dai de graça» (Mt 10,
8).
Sem violência interior
103. Se a primeira expressão do hino nos convidava
à paciência, que evita reagir bruscamente perante as fraquezas ou erros dos
outros, agora aparece outra palavra – paroxýnetai –que diz
respeito a uma reacção interior de indignação provocada por algo exterior.
Trata-se de uma violência interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa
perante os outros, como se fossem inimigos molestos a evitar. Alimentar esta
agressividade íntima, de nada aproveita. Serve apenas para nos adoentar,
acabando por nos isolar. A indignação é saudável, quando nos leva a reagir
perante uma grave injustiça; mas é prejudicial, quando tende a impregnar todas
as nossas atitudes para com os outros.
104. O Evangelho convida a olhar primeiro a trave
na própria vista (cf. Mt 7, 5), e nós, cristãos, não podemos
ignorar o convite constante da Palavra de Deus para não se alimentar a ira:
«Não te deixes vencer pelo mal» (Rm 12, 21); «não nos cansemos de
fazer o bem» (Gal 6, 9). Uma coisa é sentir a força da
agressividade que irrompe, e outra é consentir nela, deixar que se torne uma
atitude permanente: «Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre
o vosso ressentimento» (Ef 4, 26). Por isso, nunca se deve terminar
o dia sem fazer as pazes na família. «E como devo fazer as pazes? Ajoelhar-me?
Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um pequeno gesto, uma coisa de
nada. É suficiente uma carícia, sem palavras. Mas nunca permitais que o dia em
família termine sem fazer as pazes».[112] A
reacção interior perante uma moléstia que nos causam os outros, deveria ser,
antes de mais nada, abençoar no coração, desejar o bem do outro, pedir a Deus
que o liberte e cure. «Respondei com palavras de bênção, pois a isto fostes
chamados: a herdar uma bênção» (1Ped 3, 9). Se tivermos de lutar
contra um mal, façamo-lo; mas sempre digamos «não» à violência interior.
Perdão
105. Se permitirmos a entrada dum mau sentimento no
nosso íntimo, damos lugar ao ressentimento que se aninha no coração. A
frase logízetai to kakón significa que se «tem em conta o
mal», «trá-lo gravado», ou seja, está ressentido. O contrário disto é o perdão;
perdão fundado numa atitude positiva que procura compreender a fraqueza alheia
e encontrar desculpas para a outra pessoa, como Jesus que diz: «Perdoa-lhes,
Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). Entretanto a
tendência costuma ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais
maldades, supor todo o tipo de más intenções, e assim o ressentimento vai
crescendo e cria raízes. Deste modo, qualquer erro ou queda do cônjuge pode
danificar o vínculo de amor e a estabilidade familiar. O problema é que, às
vezes, atribui-se a tudo a mesma gravidade, com o risco de tornar-se cruel
perante qualquer erro do outro. A justa reivindicação dos próprios direitos
torna-se mais uma persistente e constante sede de vingança do que uma sã defesa
da própria dignidade.
106. Quando estivermos ofendidos ou desiludidos, é
possível e desejável o perdão; mas ninguém diz que seja fácil. A verdade é que
«a comunhão familiar só pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito
de sacrifício. Exige, de facto, de todos e de cada um, pronta e generosa
disponibilidade à compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação.
Nenhuma família ignora como o egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos
agridem, de forma violenta e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e
variadas formas de divisão da vida familiar».[113]
107. Hoje sabemos que, para se poder perdoar,
precisamos de passar pela experiência libertadora de nos compreendermos e
perdoarmos a nós mesmos. Quantas vezes os nossos erros ou o olhar crítico das
pessoas que amamos nos fizeram perder o amor a nós próprios; isto acaba por nos
levar a acautelar-nos dos outros, esquivando-nos do seu afecto, enchendo-nos de
suspeitas nas relações interpessoais. Então, poder culpar os outros torna-se um
falso alívio. Faz falta rezar com a própria história, aceitar-se a si mesmo,
saber conviver comas próprias limitações e inclusive perdoar-se, para poder ter
esta mesma atitude com os outros.
108. Mas isto pressupõe a experiência de ser
perdoados por Deus, justificados gratuitamente e não pelos nossos méritos.
Fomos envolvidos por um amor prévio a qualquer obra nossa, que sempre dá uma
nova oportunidade, promove e incentiva. Se aceitamos que o amor de Deus é
incondicional, que o carinho do Pai não se deve comprar nem pagar, então
poderemos amar sem limites, perdoar aos outros, ainda que tenham sido injustos
para connosco. Caso contrário, a nossa vida em família deixará de ser um lugar
de compreensão, companhia e incentivo, e tornar-se-á um espaço de permanente
tensão ou de castigo mútuo.
Alegrar-se com os outros
109. A expressão jaireiepi te adikíaindica
algo de negativo arraigado no segredo do coração da pessoa. É a atitude
venenosa de quem, ao ver feita a alguém uma injustiça, se alegra. A frase é
completada pela seguinte, que o diz de forma positiva: sygjairei te
alétheia – rejubila com a verdade. Por outras palavras, alegra-se como
bem do outro, quando se reconhece a sua dignidade, quando se aprecia mas suas
capacidades e as suas boas obras. Isto é impossível para quem sente a
necessidade de estar sempre a comparar-se ou a competir, inclusive com o
próprio cônjuge, até ao ponto de se alegrar secretamente com os seus fracassos.
110. Quando uma pessoa que ama pode fazer algo de
bom pelo outro, ou quando vê que a vida está a correr bem ao outro, vive isso
com alegria e, assim, dá glória a Deus, porque «Deus ama quem dá com alegria» (2Cor 9,
7), nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra com a felicidade do
outro. Se não alimentamos a nossa capacidade de rejubilar como bem do outro,
concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades, condenamo-nos a
viver com pouca alegria, porque – como disse Jesus – «a felicidade está mais em
dar do que em receber» (At 20, 35). A família deve ser sempre o
lugar onde uma pessoa que consegue algo de bom na vida, sabe que ali se vão
congratular com ela.
Tudo desculpa
111. O elenco é completado com quatro expressões
que falam duma totalidade: «tudo». Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta. Assim se destaca vigorosamente o dinamismo contracorrente do amor,
capaz de enfrentar qualquer coisa que o possa ameaçar.
112. Em primeiro lugar, diz-se que «tudo desculpa
– panta stégei». É diferente de «não ter em conta o mal», porque
este termo tem a ver com o uso da língua; pode significar «guardar silêncio» a
propósito do mal que possa haver noutra pessoa. Implica limitar o juízo, conter
a inclinação para se emitir uma condenação dura e implacável: «Não condeneis e
não sereis condenados» (Lc 6, 37). Embora isto vá contra o uso que
habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos: «Não faleis mal
uns dos outros, irmãos» (Tg 4, 11). Deter-se a danificar a imagem
do outro é uma maneira de reforçar a própria, de descarregar ressentimentos e
invejas, sem se importar com o dano causado. Muitas vezes esquece-se que a
difamação pode ser um grande pecado, uma grave ofensa a Deus, quando afecta
seriamente a boa fama dos outros, causando-lhes danos muito difíceis de
reparar. Por isso a Palavra de Deus se mostra tão dura com a língua, dizendo
que «é um mundo de iniquidade [que] contamina todo o corpo» (Tg 3,
6), «um mal incontrolável, carregado de veneno mortal» (Tg 3, 8).
Se «com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus» (Tg 3,
9), o amor faz o contrário, defendendo a imagem dos outros e com uma delicadeza
tal que leva mesmo a preservar a boa fama dos inimigos. Ao defender a lei
divina, é preciso nunca esquecer esta exigência do amor.
113. Os esposos, que se amam e se pertencem, falam
bem um do outro, procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas
fraquezas e erros. Em todo o caso, guardam silêncio para não danificar a sua
imagem. Mas não é apenas um gesto externo, brota duma atitude interior. Também
não é a ingenuidade de quem pretende não ver as dificuldades e os pontos fracos
do outro, mas a perspectiva ampla de quem coloca estas fraquezas e erros no seu
contexto; lembra-se de que estes defeitos constituem apenas uma parte, não são
a totalidade do ser do outro: um facto desagradável no relacionamento não é a
totalidade desse relacionamento. Assim é possível aceitar, com simplicidade,
que todos somos uma complexa combinação de luzes e sombras. O outro não é
apenas aquilo que me incomoda; é muito mais do que isso. E, pela mesma razão,
não lhe exijo que seja perfeito o seu amor para o apreciar: ama-me como é e
como pode, com os seus limites, mas o facto de o seu amor ser imperfeito não
significa que seja falso ou que não seja real. É real, mas limitado e terreno.
Por isso, se eu lhe exigir demais, de alguma maneira mo fará saber, pois não
poderá nem aceitará desempenhar o papel dum ser divino nem estar ao serviço de
todas as minhas necessidades. O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e
sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado.
Confia
114. «Panta pisteuei – tudo crê». Pelo
contexto, não se deve entender esta «fé» em sentido teológico, mas no sentido
comum de «confiança». Não se trata apenas de não suspeitar que o outro esteja
mentindo ou enganando; esta confiança básica reconhece a luz acesa por Deus que
se esconde por detrás da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as cinzas.
115. É precisamente esta confiança que torna
possível uma relação em liberdade. Não é necessário controlar o outro, seguir
minuciosamente os seus passos, para evitar que fuja dos meus braços. O amor
confia, deixa em liberdade, renuncia a controlar tudo, a possuir, a dominar.
Esta liberdade, que possibilita espaços de autonomia, abertura ao mundo e novas
experiências, consente que a relação se enriqueça e não se transforme numa
endogamia sem horizontes. Assim, ao reencontrar-se, os cônjuges podem viver a
alegria de partilhar o que receberam e aprenderam fora do circuito familiar. Ao
mesmo tempo torna possível a sinceridade e a transparência, porque uma pessoa,
quando sabe que os outros confiam nela e apreciam a bondade basilar do seu ser,
mostra-se como é, sem dissimulações. Pelo contrário, quando alguém sabe que
sempre suspeitam dele, julgam-no sem compaixão e não o amam incondicionalmente,
preferirá guardar os seus segredos, esconder as suas quedas e fraquezas, fingir
o que não é. Concluindo, uma família, onde reina uma confiança sólida,
carinhosa e, suceda o que suceder, sempre se volta a confiar, permite o
florescimento da verdadeira identidade dos seus membros, fazendo com que se
rejeite espontaneamente o engano, a falsidade e a mentira.
Espera
116. Panta elpízei: não desespera do
futuro. Ligado à palavra anterior, indica a esperança de quem sabe que o outro
pode mudar; sempre espera que seja possível um amadurecimento, um inesperado
surto de beleza, que as potencialidades mais recônditas do seu ser germinem
algum dia. Não significa que, nesta vida, tudo vai mudar; implica aceitar que
nem tudo aconteça como se deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas
tortas e saiba tirar algum bem dos males que não se conseguem vencer nesta
terra.
117. Aqui aparece a esperança no seu sentido pleno,
porque inclui a certeza duma vida para além da morte. Aquela pessoa, com todas
as suas fraquezas, é chamada à plenitude do Céu: lá, completamente transformada
pela ressurreição de Cristo, cessarão de existir as suas fraquezas, trevas e
patologias; lá, o verdadeiro ser daquela pessoa resplandecerá com toda a sua
potência de bem e beleza. Isto permite-nos, no meio das moléstias desta terra,
contemplar aquela pessoa com um olhar sobrenatural, à luz da esperança, e
aguardar aquela plenitude que, embora hoje não seja visível, há-de receber um
dia no Reino celeste.
Tudo suporta
118. Panta hypoménei significa que
suporta, com espírito positivo, todas as contrariedades. É manter-se firme no
meio dum ambiente hostil. Não consiste apenas em tolerar algumas coisas
molestas, mas é algo de mais amplo: uma resistência dinâmica e constante, capaz
de superar qualquer desafio. É amor que apesar de tudo não desiste, mesmo que
todo o contexto convide a outra coisa. Manifesta uma dose de heroísmo tenaz, de
força contra qualquer corrente negativa, uma opção pelo bem que nada pode
derrubar. Isto lembra-me Martin Luther King, quando reafirmava a opção pelo
amor fraterno, mesmo nomeio das piores perseguições e humilhações: «A pessoa
que mais te odeia, tem algo de bom nela; mesmo a nação que mais odeia, tem algo
de bom nela; mesmo a raça que mais odeia, tem algo de bom nela. E, quando
chegas ao ponto de fixar o rosto de cada ser humano e, bem no fundo dele, vês o
que a religião chama a “imagem de Deus”, começas, não obstante tudo, a amá-lo.
Não importa o que faça, lá vês a imagem de Deus. Há um elemento de bondade de
que nunca poderás livrar-te. (...) Outra forma de amares o teu inimigo é esta:
quando surge a oportunidade de derrotares o teu inimigo, aquele é o momento em
que deves decidir não o fazer. (...) Quando te elevas ao nível do amor, da sua
grande beleza e poder, a única coisa que procuras derrotar são os sistemas
malignos. Às pessoas que caíram na armadilha deste sistema, tu ama-las, mas
procuras derrotar o sistema. (...) Ódio por ódio só intensifica a existência do
ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a
pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante… obviamente continua-se
até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter um
pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que pode
quebrar a cadeia do ódio, a cadeia do mal. (...) Alguém deve ter bastante fé e
moralidade para a quebrar e injectar dentro da própria estrutura do universo o
elemento forte e poderoso do amor».[114]
119. Na vida familiar, é preciso cultivar esta
força do amor, que permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa
dominar pelo ressentimento, o desprezo das pessoas, o desejo de se lamentar ou
vingar de alguma coisa. O ideal cristão, nomeadamente na família, é amor que
apesar de tudo não desiste. Deixa-me maravilhado, por exemplo, a atitude das
pessoas que, para se proteger da violência física, tiveram de separar-se do seu
cônjuge e todavia, pela caridade conjugal que sabe ultrapassar os sentimentos,
foram capazes de procurar o seu bem, mesmo através de terceiros, em momentos de
doença, tribulação ou dificuldade. Isto também é amor que apesar de tudo não desiste.
Crescer na caridade conjugal
120. O cântico de São Paulo, que acabámos de
repassar, permite-nos avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor que une
os esposos,[115] amor
santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimónio. É
uma «união afectiva»,[116]espiritual
e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora
seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem. O
Papa Pio XI ensinava que este amor permeia todos os deveres da vida conjugal e
«detém como que o primado da nobreza».[117] Com
efeito, este amor forte, derramado pelo Espírito Santo, é reflexo da aliança
indestrutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entrega até ao fim na
cruz. «O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a
mulher capazes de se amarem como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge assim
aquela plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal».[118]
121. O matrimónio é um sinal precioso, porque,
«quando um homem e uma mulher celebram o sacramento do matrimónio, Deus, por
assim dizer, “espelha-Se” neles, imprime neles as suas características e o
carácter indelével do seu amor. O matrimónio é o ícone do amor de Deus por nós.
Com efeito, também Deus é comunhão: as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito
Santo – vivem desde sempre e para sempre em unidade perfeita. É precisamente
nisto que consiste o mistério do matrimónio: dos dois esposos, Deus faz uma só
existência».[119] Isto
tem consequências muito concretas na vida do dia-a-dia, porque, «em virtude do
sacramento, os esposos são investidos numa autêntica missão, para que possam
tornar visível, a partir das realidades simples e ordinárias, o amor com que
Cristo ama a sua Igreja, continuando a dar a vida por ela».[120]
122. Todavia convém não confundir planos
diferentes: não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso
tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e
a sua Igreja, porque o matrimónio como sinal implica «um processo dinâmico, que
avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus».[121]
A vida toda, tudo em comum
123. Depois do amor que nos une a Deus, o amor
conjugal é a «amizade maior».[122] É
uma união que tem todas as características duma boa amizade: busca do bem do
outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhança entre
os amigos que se vai construindo com a vida partilhada. O matrimónio, porém,
acrescenta a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no
projecto estável de partilhar e construir juntos toda a existência. Sejamos
sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projecta
que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; quem vive intensamente a
alegria de se casar não está a pensar em algo de passageiro; aqueles que
acompanham a celebração duma união cheia de amor, embora frágil, esperam que
possa perdurar no tempo; os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas
também que sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais
mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao
definitivo. A união, que se cristaliza na promessa matrimonial para sempre, é
mais do que uma formalidade social ou uma tradição, porque radica-se nas
inclinações espontâneas da pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança
diante de Deus, que exige fidelidade: «O Senhor constituiu-Se testemunha entre
ti e a esposa da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a
tua companheira e aquela com quem fizeste aliança. (...) Ninguém atraiçoe a
mulher da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio» (Ml 2,
14.15-16).
124. Um amor frágil ou enfermiço, incapaz de
aceitar o matrimónio como um desafio que exige lutar, renascer, reinventar-se e
recomeçar sempre de novo até à morte, não pode sustentar um nível alto de
compromisso. Cede à cultura do provisório, que impede um processo constante de
crescimento. Mas «prometer um amor que dure para sempre é possível, quando se
descobre um desígnio maior que os próprios projectos, que nos sustenta e
permite doar o futuro inteiro à pessoa amada».[123] Para
que este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo,
requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto
Belarmino, «o facto de um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel, de
modo que não possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo
quando se perdeu a esperança da prole, isto não pode acontecer sem um grande
mistério».[124]
125. Além disso, o matrimónio é uma amizade que
inclui as características próprias da paixão, mas sempre orientada para uma
união cada vez mais firme e intensa. Com efeito, «não foi instituído só em
ordem à procriação», mas para que o amor mútuo «se exprima convenientemente,
aumente e chegue à maturidade».[125] Esta
amizade peculiar entre um homem e uma mulher adquire um carácter totalizante,
que só se verifica na união conjugal. E precisamente por ser totalizante, esta
união também é exclusiva, fiel e aberta à geração. Partilha-se tudo, incluindo
a sexualidade, sempre no mútuo respeito. Isto mesmo expressou o Concílio
Vaticano II ao dizer que, «unindo o humano e o divino, esse amor leva os
esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura
do afecto e com as obras, e penetra toda a sua vida».[126]
Alegria e beleza
126. No matrimónio, convém cuidar a alegria do
amor. Quando a busca do prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não
permite encontrar outros tipos de satisfações. Pelo contrário, a alegria
expande a capacidade de desfrutar e permite-nos encontrar prazerem realidades
variadas, mesmo nas fases da vida em que o prazer se apaga. Por isso, dizia São
Tomás que se usa a palavra «alegria» para se referir à dilatação da amplitude
do coração.[127] A
alegria matrimonial, que se pode viver mesmo no meio do sofrimento, implica
aceitar que o matrimónio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de
tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de
aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade que impele os esposos a
cuidarem um do outro: «prestam-se recíproca ajuda e serviço».[128]
127. O amor de amizade chama-se «caridade», quando
capta e aprecia o «valor sublime» que tem o outro.[129] A
beleza – o «valor sublime» do outro, que não coincide com os seus atractivos
físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa,
sem a imperiosa necessidade de a possuir. Na sociedade de consumo, o sentido
estético empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser
comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura
é uma manifestação deste amor que se liberta do desejo da posse egoísta.
Leva-nos a vibrar à vista duma pessoa, com imenso respeito e um certo receio de
lhe causar dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro implica este gosto
de contemplar e apreciar o que é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe
para além das minhas necessidades. Isto permite-me procurar o seu bem, mesmo
quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável,
agressivo ou chato. Por isso, «do amor pelo qual uma pessoa me é agradável,
depende que lhe dê algo de graça».[130]
128. A experiência estética do amor exprime-se
naquele olhar que contempla o outro como fim em si mesmo, ainda que esteja
doente, velho ou privado de atractivos sensíveis. O olhar que aprecia tem uma
enorme importância e, recusá-lo, habitualmente faz dano. Às vezes, quantas
coisas fazem os cônjuges e os filhos para ser considerados e tidos em conta!
Muitas feridas e crises têm a sua origem no momento em que deixamos de nos
contemplar. Isto é o que exprimem algumas queixas e reclamações, que se ouvem
nas famílias: «O meu marido não me olha, para ele parece que sou invisível».
«Por favor, olha para mim, quando te falo». «A minha mulher já não me olha,
agora só tem olhos para os filhos». «Em minha casa, não interesso a ninguém, nem
sequer me vêem, é como se não existisse». O amor abre os olhos e
permite ver, mais além de tudo, quanto vale um ser humano.
129. A alegria deste amor contemplativo deve ser
cultivada. Uma vez que somos feitos para amar, sabemos que não há maior alegria
do que partilhar um bem: «Dá e recebe, e alegra a tua vida» (Sir 14,
16). As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a
felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena
feliz do filme A festa de Babette, quando a generosa cozinheira
recebe um abraço agradecido e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e
consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas.
Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si
mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para
o outro e se torna fecundo nele.
130. Por outro lado, a alegria renova-se no
sofrimento. Como dizia Santo Agostinho, «quanto mais grave foi o perigo no
combate, tanto maior é o gozo no triunfo».[131] Depois
de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a
pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem
apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas
como quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes
custou um grande esforço compartilhado.
Casar-se por amor
131. Quero dizer aos jovens que nada disto é
prejudicado, quando o amor assume a modalidade da instituição matrimonial. A
união encontra nesta instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu
crescimento real e concreto. É verdade que o amor é muito mais do que um
consentimento externo ou uma forma de contrato matrimonial, mas é igualmente
certo que a decisão de dar ao matrimónio uma configuração visível na sociedade
com certos compromissos manifesta a sua relevância: mostra a seriedade da
identificação com o outro, indica uma superação do individualismo de
adolescente e expressa a firme opção de se pertencerem um ao outro. Casar-se é
uma maneira de exprimir que realmente se abandonou o ninho materno, para tecer
outros laços fortes e assumir uma nova responsabilidade perante outra pessoa.
Isto vale muito mais do que uma mera associação espontânea para mútua
compensação, que seria a privatização do matrimónio. Este, como instituição
social, é protecção e instrumento para o compromisso mútuo, para o
amadurecimento do amor, para que a opção pelo outro cresça em solidez,
concretização e profundidade, e possa, por sua vez, cumprir a sua missão na
sociedade. Por isso, o matrimónio supera qualquer moda passageira e persiste. A
sua essência está radicada na própria natureza da pessoa humana e do seu
carácter social. Implica uma série de obrigações; mas estas brotam do próprio
amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de arriscar o futuro.
132. Semelhante opção pelo matrimónio expressa a
decisão real e efectiva de transformar dois caminhos num só, aconteça o que
acontecer e contra todo e qualquer desafio. Pela seriedade de que se reveste
este compromisso público de amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas,
pela mesma razão, também não pode ser adiado indefinidamente. Comprometer-se de
forma exclusiva e definitiva com outrem sempre encerra uma parcela de risco e
de aposta ousada. A recusa de assumir um tal compromisso é egoísta,
interesseira, mesquinha; não consegue reconhecer os direitos do outro e não
chega jamais a apresentá-lo à sociedade como digno de ser amado
incondicionalmente. Aliás, aqueles que estão verdadeiramente enamorados tendem
a manifestar aos outros o seu amor. O amor concretizado num matrimónio
contraído diante dos outros, com todas as obrigações decorrentes dessa
institucionalização, é manifestação e protecção dum «sim» que se dá sem
reservas nem restrições. Este sim significa dizer ao outro que poderá sempre
confiar, não será abandonado, se perder atractivo, se tiver dificuldades ou se
se apresentarem novas possibilidades de prazer ou de interesses egoístas.
Amor que se manifesta e cresce
133. O amor de amizade unifica todos os aspectos da
vida matrimonial e ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas
fases. Por isso, os gestos que exprimem este amor devem ser constantemente
cultivados, sem mesquinhez, cheios de palavras generosas. Na família, «é
necessário usar três palavras: com licença, obrigado, desculpa. Três
palavras-chave».[132]«Quando
numa família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não
somos egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”, e quando na família nos damos
conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe
paz e alegria».[133] Não
sejamos mesquinhos no uso destas palavras, sejamos generosos repetindo-as
dia-a-dia, porque «pesam certos silêncios, às vezes mesmo em família, entre
marido e mulher, entre pais e filhos, entre irmãos».[134] Pelo
contrário, as palavras adequadas, ditas no momento certo, protegem e alimentam
o amor dia após dia.
134. Tudo isto se realiza num caminho de contínuo
crescimento. Esta forma muito particular de amor, que é o matrimónio, é chamada
a um amadurecimento constante, pois deve aplicar-se-lhe sempre aquilo que São
Tomás de Aquino dizia da caridade: «A caridade, devido à sua natureza, não tem
um termo de aumento, porque é uma participação da caridade infinita que é o
Espírito Santo. (...) E, do lado do sujeito, também não é possível prefixar-lhe
um termo, porque, ao crescer na caridade, eleva-se também a capacidade para um
aumento maior».[135] Paulo
exortava com veemência: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade
uns para com os outros» (1Ts 3, 12); e acrescenta: «A respeito do
amor (...), exortamo-vos, irmãos, a progredir sempre mais» (1Ts 4,
9.10). Sempre mais. O amor matrimonial não se estimula falando, antes de mais
nada, da indissolubilidade como uma obrigação, nem repetindo uma doutrina, mas
robustecendo-o por meio dum crescimento constante sob o impulso da graça. O
amor que não cresce, começa a correr perigo; e só podemos crescer
correspondendo à graça divina com mais actos de amor, com actos de carinho mais
frequentes, mais intensos, mais generosos, mais ternos, mais alegres. O marido
e a mulher «tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a
realizam».[136] O
dom do amor divino que se derrama nos esposos é, ao mesmo tempo, um apelo a um
constante desenvolvimento deste dom da graça.
135. Não fazem bem certas fantasias sobre um amor
idílico e perfeito, privando-o assim de todo o estímulo para crescer. Uma ideia
celestial do amor terreno esquece que o melhor ainda não foi alcançado, o vinho
sazonado com o tempo. Como recordaram os bispos do Chile, «não existem as
famílias perfeitas que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe. Nelas,
não passam os anos, não existe a doença, a tribulação nem a morte. (...) A
publicidade consumista mostra uma realidade ilusória que não tem nada a ver com
a realidade que devem enfrentar no dia-a-dia os pais e as mães de família».[137] É
mais saudável aceitar com realismo os limites, os desafios e as imperfeições, e
dar ouvidos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a
solidez da união, suceda o que suceder.
O diálogo
136. O diálogo é uma modalidade privilegiada e
indispensável para viver, exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e
familiar. Mas requer uma longa e diligente aprendizagem. Homens e mulheres,
adultos e jovens têm maneiras diversas de comunicar, usam linguagens
diferentes, regem-se por códigos distintos. O modo de perguntar, a forma de
responder, o tom usado, o momento escolhido e muitos outros factores podem
condicionar a comunicação. Além disso, é sempre necessário cultivar algumas atitudes
que são expressão de amor e tornam possível o diálogo autêntico.
137. Reservar tempo, tempo de qualidade, que
permita escutar, com paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado
tudo o que precisava de comunicar. Isto requer a ascese de não começar a falar
antes do momento apropriado. Em vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é
preciso assegurar-se de ter escutado tudo o que o outro tem necessidade de
dizer. Isto implica fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no coração
e na mente: despojar-se das pressas, pôr de lado as próprias necessidades e
urgências, dar espaço. Muitas vezes um dos cônjuges não precisa duma solução
para os seus problemas, mas de ser ouvido. Tem de sentir que se apreendeu a sua
mágoa, a sua desilusão, o seu medo, a sua ira, a sua esperança, o seu sonho.
Todavia é frequente ouvir estes queixumes: «Não me ouve. E quando parece que o
faz, na realidade está a pensar noutra coisa». «Falo-lhe e tenho a sensação de
que está à espera que acabe de vez». «Quando lhe falo, tenta mudar de assunto
ou dá-me respostas rápidas para encerrar a conversa».
138. Desenvolver o hábito de dar real importância
ao outro. Trata-se de dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de
existir, pensar de maneira autónoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar
aquilo que diz ou reivindica, ainda que seja necessário exprimir o meu ponto de
vista. A tudo isto subjaz a convicção de que todos têm algo para dar, pois têm
outra experiência da vida, olham doutro ponto de vista, desenvolveram outras
preocupações e possuem outras capacidades e intuições. É possível reconhecer a
verdade do outro, a importância das suas preocupações mais profundas e a
motivação de fundo do que diz, inclusive das palavras agressivas. Para isso, é
preciso colocar-se no seu lugar e interpretar a profundidade do seu coração,
individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para
aprofundar o diálogo.
139. Amplitude mental, para não se encerrar
obsessivamente numas poucas ideias, e flexibilidade para poder modificar ou
completar as próprias opiniões. É possível que, do meu pensamento e do
pensamento do outro, possa surgir uma nova síntese que nos enriqueça a ambos. A
unidade, a que temos de aspirar, não é uniformidade, mas uma «unidade na diversidade»
ou uma «diversidade reconciliada». Neste estilo enriquecedor de comunhão
fraterna, seres diferentes encontram-se, respeitam-se e apreciam-se, mas
mantendo distintos matizes e acentos que enriquecem o bem comum. Temos de nos
libertar da obrigação de ser iguais. Também é necessária sagacidade para
advertir a tempo eventuais «interferências», a fim de que não destruam um
processo de diálogo. Por exemplo, reconhecer os maus sentimentos que poderiam
surgir e relativizá-los, para não prejudicarem a comunicação. É importante a
capacidade de expressar aquilo que se sente, sem ferir; utilizar uma linguagem
e um modo de falar que possam ser mais facilmente aceites ou tolerados pelo
outro, embora o conteúdo seja exigente; expor as próprias críticas, mas sem
descarregar a ira como uma forma de vingança, e evitar uma linguagem
moralizante que procure apenas agredir, ironizar, culpabilizar, ferir. Há
tantas discussões no casal que não são por questões muito graves; às vezes
trata-se de pequenas coisas, pouco relevantes, mas o que altera os ânimos é o
modo de as dizer ou a atitude que se assume no diálogo.
140. Ter gestos de solicitude pelo outro e
demonstrações de carinho. O amor supera as piores barreiras. Quando se pode
amar alguém ou quando nos sentimos amados por essa pessoa, conseguimos entender
melhor o que ela quer exprimir e fazer-nos compreender. É preciso superar a
fragilidade que nos leva a temer o outro como se fosse um «concorrente». É
muito importante fundar a própria segurança em opções profundas, convicções e
valores, e não no desejo de ganhar uma discussão ou no facto de nos darem
razão.
141.Por último, reconheçamos que, para ser profícuo
o diálogo, é preciso ter algo para se dizer; e isto requer uma riqueza interior
que se alimenta com a leitura, a reflexão pessoal, a oração e a abertura à
sociedade. Caso contrário, a conversa torna-se aborrecida e inconsistente.
Quando cada um dos cônjuges não cultiva o próprio espírito e não há uma
variedade de relações com outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâmica e
o diálogo fica empobrecido.
Amor apaixonado
142. O Concílio Vaticano II ensinou que este amor
conjugal «compreende o bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode conferir
especial dignidade às manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como
elementos e sinais peculiares do amor conjugal».[138] Deve
haver qualquer motivo para um amor sem prazer nem paixão se revelar
insuficiente a simbolizar a união do coração humano com Deus: «Todos os
místicos afirmaram que o amor sobrenatural e o amor celeste encontram os
símbolos que procuram mais no amor matrimonial do que na amizade, no sentimento
filial ou na dedicação a uma causa. E o motivo encontra-se precisamente na sua
totalidade».[139] Sendo
assim, por que não determo-nos a falar dos sentimentos e da sexualidade no
matrimónio?
O mundo das emoções
143. Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos
chamavam-lhes «paixões») ocupam um lugar importante no matrimónio. Geram-se quando
«outro» se torna presente e intervém na minha vida. É próprio de todo o ser
vivo tender para outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre de sinais
afectivos basilares: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou
receio. São o pressuposto da actividade psicológica mais elementar. O ser
humano é um vivente desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de
paixões.
144. Verdadeiro homem, Jesus vivia as coisas com
grande emotividade. Por isso, sofria com a rejeição de Jerusalém (cf. Mt 23,
37) e, por esta situação, chorou (cf. Lc 19, 41).
Compadecia-Se também à vista da multidão atribulada (cf. Mc 6,
34). Vendo os outros a chorar, comovia-Se e turbava-Se (cf. Jo 11,
33), e Ele mesmo chorou pela morte dum amigo (cf. Jo 11, 35).
Estas manifestações da sua sensibilidade mostram até que ponto estava aberto
aos outros o seu coração humano.
145. Experimentar uma emoção não é, em si mesmo,
algo moralmente bom nem mau.[140] Começar
a sentir desejo ou repulsa não é pecaminoso nem censurável. O que pode ser bom
ou mau é o acto que a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois,
se os sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más
acções, o mal está na decisão de os alimentar e nos actos maus que se seguem.
Na mesma linha, sentir atração por alguém não é, de por si, um bem. Se esta
atracção me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o
sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Julgar que somos bons só porque
«provamos sentimentos», é um tremendo engano. Há pessoas que se sentem capazes
dum grande amor, só porque têm grande necessidade de afecto, mas não conseguem
lutar pela felicidade dos outros e vivem confinados nos próprios desejos. Neste
caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um egocentrismo que
torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família.
146. Entretanto, se uma paixão acompanha o acto
livre, pode manifestar a profundidade dessa opção. O amor matrimonial leva a
procurar que toda a vida emotiva se torne um bem para a família e esteja ao
serviço da vida em comum. A maturidade chega a uma família, quando a vida
emotiva dos seus membros se transforma numa sensibilidade que não domina nem
obscurece as grandes opções e valores, mas segue a sua liberdade,[141] brota
dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais harmoniosa para bem de todos.
Deus ama a alegria dos seus filhos
147. Isto requer um caminho pedagógico, um processo
que inclui renúncias: é uma convicção da Igreja, que muitas vezes foi rejeitada
pelo mundo como se fosse inimiga da felicidade humana. Bento XVI regista esta
crítica com muita clareza: «Com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não
nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala
ela proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador,
nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?»[142] Mas
ele responde que, embora não tenham faltado exageros ou ascetismos extraviados
no cristianismo, a doutrina oficial da Igreja, fiel à Sagrada Escritura, não
rejeitou «o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua
subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros (…)
priva-o da sua dignidade, desumaniza-o». [143]
148. É necessária a educação da emotividade e do
instinto e, para isso, às vezes torna-se indispensável impormo-nos algum
limite. O excesso, o descontrole, a obsessão por um único tipo de prazeres
acabam por debilitar e combalir o próprio prazer,[144] e
prejudicam a vida da família. Na verdade, pode-se fazer um belo caminho com as
paixões, o que significa orientá-las cada vez mais num projeto de auto doação e
plena realização própria que enriquece as relações interpessoais no seio da
família. Isto não implica renunciar a momentos de intenso prazer,[145] mas
assumi-los de certo modo entrelaçados com outros momentos de dedicação
generosa, espera paciente, inevitável fadiga, esforço por um ideal. A vida em
família é tudo isto e merece ser vivida inteiramente.
149. Algumas correntes espirituais insistem em
eliminar o desejo para se libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama a
alegria do ser humano, pois Ele criou tudo «para nosso usufruto» (1 Tim 6,
17). Deixemos brotar a alegria à vista da sua ternura, quando nos propõe: «Meu
filho, se tens com quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade
presente» (Sir 14, 11.14). Também um casal de esposos corresponde à
vontade de Deus, quando segue este convite bíblico: «No dia da felicidade, sê
alegre» (Qo 7, 14). A questão é ter a liberdade para aceitar que o
prazer encontre outras formas de expressão nos sucessivos momentos da vida, de
acordo com as necessidades do amor mútuo. Neste sentido, pode-se aceitar a
proposta de alguns mestres orientais que insistem em ampliar a consciência,
para não ficar presos numa experiência muito limitada que nos fecharia as
perspectivas. Esta ampliação da consciência não é a negação ou a destruição do
desejo, mas a sua dilatação e aperfeiçoamento.
A dimensão erótica do amor
150. Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos
esposos. O próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para
as suas criaturas. Quando se cultiva e evita o seu descontrole, fazemo-lo para
impedir que se produza o «depauperamento de um valor autêntico».[146] São
João Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina da Igreja leve a «uma negação
do valor do sexo humano» ou que o tolere simplesmente «pela necessidade da
procriação».[147] A
necessidade sexual dos esposos não é objecto de menosprezo, e «não se trata de
modo algum de pôr em questão aquela necessidade».[148]
151. A quantos receiam que, com a educação das
paixões e da sexualidade, se prejudique a espontaneidade do amor sexual, São
João Paulo II respondia que o ser humano «é também chamado à plena e matura
espontaneidade das relações», que «é o fruto gradual do discernimento dos
impulsos do próprio coração».[149] É
algo que se conquista, pois todo o ser humano «deve, perseverante e
coerentemente, aprender o que é o significado do corpo».[150] A
sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma
linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e
inviolável. Assim, «o coração humano torna-se participante, por assim dizer, de
outra espontaneidade».[151] Neste
contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da
sexualidade. Nele pode-se encontrar o «significado esponsal do corpo e a
autêntica dignidade do dom».[152] Nas
suas catequeses sobre a teologia do corpo humano, São João Paulo II ensinou que
a corporeidade sexuada «é não só fonte de fecundidade e de procriação», mas
possui «a capacidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o
homem-pessoa se torna dom».[153] O
erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a
admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.
152. Assim, não podemos, de maneira alguma,
entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso
tolerável para o bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos
esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade
do outro, torna-se uma «afirmação amorosa plena e cristalina», mostrando-nos de
que maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, «sente-se que
a existência humana foi um sucesso».[154]
Violência e manipulação
153. No contexto desta visão positiva da
sexualidade, é oportuno apresentar o tema na sua integridade e com um são
realismo. Pois não podemos ignorar que muitas vezes a sexualidade se
despersonaliza e enche de patologias, de modo que «se torna cada vez mais
ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos
próprios desejos e instintos».[155] Neste
tempo, também a sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito
venenoso do «usa e joga fora». Com frequência, o corpo do outro é manipulado
como uma coisa que se conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza
quando perde atractivo. Podem-se porventura ignorar ou dissimular as formas
constantes de domínio, prepotência, abuso, perversão e violência sexual que
resultam duma distorção do significado da sexualidade e sepultam a dignidade
dos outros e o apelo ao amor sob uma obscura procura de si mesmo?
154. Nunca é demais lembrar que, mesmo no
matrimónio, a sexualidade pode tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por
isso, devemos reafirmar, claramente, que «um acto conjugal imposto ao próprio
cônjuge, sem consideração pelas suas condições e pelos seus desejos legítimos,
não é um verdadeiro acto de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de recta
ordem moral, nas relações entre os esposos».[156] Os
actos próprios da união sexual dos cônjuges correspondem à natureza da
sexualidade querida por Deus, se forem vividos «de modo autenticamente humano».[157] Por
isso, São Paulo exortava: «Que ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite
do seu irmão» (1 Ts 4, 6). E não obstante ele escrevesse numa época
em que dominava uma cultura patriarcal, na qual a mulher era considerada um ser
completamente subordinado ao homem, todavia ensinou que a sexualidade deve ser
uma questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar as
relações sexuais por algum tempo, mas «de mútuo acordo» (1 Cor 7,
5).
155. São João Paulo II fez uma advertência muito
subtil, quando disse que o homem e a mulher são «ameaçados pela
insaciabilidade».[158] Por
outras palavras, são chamados a uma união cada vez mais intensa, mas correm o
risco de pretender apagar as diferenças e a distância inevitável que existe
entre os dois. Com efeito, cada um possui uma dignidade própria e irrepetível.
Quando o bem precioso da pertença recíproca se transforma em domínio, «muda
essencialmente a estrutura de comunhão na relação interpessoal».[159] Na
lógica do domínio, o dominador acaba também negando a sua própria dignidade[160]e,
em última análise, deixa «de identificar-se subjectivamente com o próprio
corpo»,[161] porque
lhe tira todo o significado. Vive o sexo como evasão de si mesmo e como
renúncia à beleza da união.
156. É importante deixar claro a rejeição de toda a
forma de submissão sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação
inadequada do texto da Carta aos Efésios, onde se pede que «as mulheres [sejam
submissas] aos seus maridos» (Ef 5, 22). São Paulo exprime-se em
categorias culturais próprias daquela época; nós não devemos assumir esta
roupagem cultural, mas a mensagem revelada que subjaz ao conjunto da perícope.
Retomemos a sábia explicação de São João Paulo II: «O amor exclui todo o género
de submissão, pelo qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido (...).
A comunidade ou unidade, que devem constituir por causa do matrimónio,
realiza-se através de uma recíproca doação, que é também submissão mútua».[162]Por
isso, se diz que «devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu
próprio corpo» (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíblico convida a
superar o cómodo individualismo para viver disponíveis aos outros:
«Submetei-vos uns aos outros» (Ef 5, 21). Entre os cônjuges, esta
recíproca «submissão» adquire um significado especial, devendo-se entender como
uma pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de características de
fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade está ao serviço desta amizade
conjugal de modo inseparável, porque tende a procurar que o outro viva em
plenitude.
157. Entretanto a rejeição das distorções da
sexualidade e do erotismo nunca deveria levar-nos ao seu desprezo nem ao seu
descuido. O ideal do matrimónio não pode configurar-se apenas como uma doação
generosa e sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e
se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma.
Lembremo-nos de que um amor verdadeiro também sabe receber do
outro, é capaz de se aceitar como vulnerável e necessitado, não renuncia a
receber, com gratidão sincera e feliz, as expressões corporais do amor na
carícia, no abraço, no beijo e na união sexual. Bento XVI era claro a este
respeito: «Se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne
como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade».[163] Por
esta razão, «o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo,
descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer
dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom».[164] Em
todo o caso, isto supõe ter presente que o equilíbrio humano é frágil, sempre
permanece algo que resiste a ser humanizado e que, a qualquer momento, pode
fugir-nos de mão novamente, recuperando as suas tendências mais primitivas e
egoístas.
Matrimónio e virgindade
158. «Muitas pessoas, que vivem sem se casar, não
só se dedicam à sua família de origem, mas muitas vezes realizam grandes
serviços no seu círculo de amigos, na comunidade eclesial e na vida profissional
(...). Muitos colocam os seus talentos também ao serviço da comunidade cristã
sob a forma de assistência caritativa e voluntariado. Temos ainda aqueles que
não se casam, porque consagram a vida por amor de Cristo e dos irmãos. Com a
sua dedicação, é extraordinariamente enriquecida a família, na Igreja e na
sociedade».[165]
159. A virgindade é uma forma de amor. Como sinal,
recorda-nos a solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao
serviço da evangelização (cf. 1Cor 7, 32) e é um reflexo da
plenitude do Céu, onde «nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos»
(Mt 22, 30). São Paulo recomendava a virgindade, porque esperava
para breve o regresso de Jesus Cristo e queria que todos se concentrassem
apenas na evangelização: «O tempo é breve» (1Cor 7, 29). Contudo
deixa claro que era uma opinião pessoal e um desejo dele (cf. 1Cor 7,
6-8), não uma exigência de Cristo: «Não tenho nenhum preceito do Senhor» (1Cor 7,
25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: «Cada um recebe de
Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra» (1Cor 7,
7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos «não oferecem
motivo para sustentar nem a “inferioridade” do matrimónio, nem a
“superioridade” da virgindade ou do celibato»[166] devido
à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob
todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de
vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido
e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo,
Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se
considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande
como «a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a
humana».[167]
160. Portanto «não se trata de diminuir o valor do
matrimónio em favor da continência»[168] e
«não existe fundamento algum para uma suposta contraposição (...). Se,
considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição (status
perfectionis), não é por motivo da continência mesma, mas a propósito do
conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos».[169] Entretanto
uma pessoa casada pode viver a caridade num grau altíssimo. E assim «chega
àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos
referidos conselhos. Tal perfeição é possível e acessível a cada homem».[170]
161. A virgindade tem o valor simbólico do amor que
não necessita de possuir o outro, reflectindo assim a liberdade do Reino dos
Céus. É um convite para os esposos viverem o seu amor conjugal na perspectiva
do amor definitivo a Cristo, como um caminho comum rumo à plenitude do Reino.
Por sua vez, o amor dos esposos apresenta outros valores simbólicos: por um
lado, é reflexo peculiar da Trindade, porque a Trindade é unidade plena na qual
existe também a distinção. Além disso, a família é um sinal cristológico,
porque mostra a proximidade de Deus que compartilha a vida do ser humano
unindo-Se-lhe na encarnação, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge torna-se
«uma só carne» com o outro e oferece-se a si mesmo para partilhar tudo com ele
até ao fim. Enquanto a virgindade é um sinal «escatológico» de Cristo
ressuscitado, o matrimónio é um sinal «histórico» para nós que caminhamos na
terra, um sinal de Cristo terreno que aceitou unir-Se a nós e Se deu até ao
derramamento do seu sangue. A virgindade e o matrimónio são – e devem ser –
modalidades diferentes de amar, porque «o homem não pode viver sem amor. Ele
permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de
sentido, se não lhe for revelado o amor».[171]
162. O celibato corre o risco de ser uma cómoda
solidão, que dá liberdade para se mover autonomamente, mudar de local, tarefa e
opção, dispor do seu próprio dinheiro, conviver com as mais variadas pessoas
segundo a atracção do momento. Neste caso, sobressai o testemunho das pessoas
casadas. Aqueles que foram chamados à virgindade podem encontrar, nalguns
casais de esposos, um sinal claro da fidelidade generosa e indestrutível de
Deus à sua Aliança, que pode estimular os seus corações a uma disponibilidade
mais concreta e oblativa. Com efeito, há pessoas casadas que mantêm a sua
fidelidade, quando o cônjuge se tornou fisicamente desagradável ou deixou de
satisfazer as suas necessidades; e fazem-no, não obstante muitas ocasiões os
convidarem à infidelidade ou ao abandono. Uma mulher pode cuidar do marido
doente e ali, ao pé da Cruz, volta a oferecer o «sim» do seu amor até à morte.
Em semelhante amor, manifesta-se de forma esplêndida a dignidade de quem ama,
dignidade como reflexo da caridade, já que é mais próprio da caridade amar do
que ser amado.[172] Uma
capacidade de serviço oblativo e carinhoso pode ser observada também em muitas
famílias com filhos difíceis e até ingratos. Isto faz desses pais um sinal do
amor livre e desinteressado de Jesus. Tudo isto se torna, para as pessoas
celibatárias, um convite a viverem a sua dedicação ao Reino com maior
generosidade e disponibilidade. Hoje, a secularização ofuscou o valor duma
união para toda a vida e debilitou a riqueza da dedicação matrimonial, pelo que
«é preciso aprofundar os aspectos positivos do amor conjugal».[173]
A transformação do amor
163. O alongamento da vida provocou algo que não
era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser
mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de
renovar repetidas vezes a recíproca escolha. Talvez o cônjuge já não esteja
apaixonado com um desejo sexual intenso que o atraia para outra pessoa, mas
sente o prazer de lhe pertencer e que esta pessoa lhe pertença, de saber que
não está só, de ter um «cúmplice» que conhece tudo da sua vida e da sua
história e tudo partilha. É o companheiro no caminho da vida, com quem se pode
enfrentar as dificuldades e gozar das coisas lindas. Também isto gera uma
satisfação, que acompanha a decisão própria do amor conjugal. Não é possível
prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos
ter um projecto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até
que a morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade. O amor, que nos
prometemos, supera toda a emoção, sentimento ou estado de ânimo, embora possa
incluí-los. É um querer-se bem mais profundo, com uma decisão do coração que
envolve toda a existência. Assim, no meio dum conflito não resolvido e ainda
que muitos sentimentos confusos girem pelo coração, mantém-se viva dia-a-dia a
decisão de amar, de se pertencer, de partilhar a vida inteira e continuar a
amar-se e perdoar-se. Cada um dos dois realiza um caminho de crescimento e
mudança pessoal. No curso de tal caminho, o amor celebra cada passo, cada etapa
nova.
164. Na história dum casal, a aparência física
muda, mas isso não é motivo para que a atracção amorosa diminua. Um cônjuge
enamora-se pela pessoa inteira do outro, com uma identidade própria, e não
apenas pelo corpo, embora este corpo, independentemente do desgaste do tempo,
nunca deixe de expressar de alguma forma aquela identidade pessoal que cativou o
coração. Quando os outros já não podem reconhecer a beleza desta identidade, o
cônjuge enamorado continua a ser capaz de a individuar com o instinto do amor,
e o carinho não desaparece. Reitera a sua decisão de lhe pertencer, volta a
escolhê-lo, e exprime esta escolha numa proximidade fiel e cheia de ternura. A
nobreza da sua opção pelo outro, por ser intensa e profunda, desperta uma nova
forma de emoção no cumprimento desta missão conjugal. Com efeito, «a emoção
provocada por outro ser humano como pessoa (...) não tende, de per si, para o
acto conjugal».[174] Adquire
outras expressões sensíveis, porque o amor «é uma única realidade, embora com
distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais».[175] O
vínculo encontra novas modalidades e exige a decisão de reatá-lo repetidamente;
e não só para o conservar, mas para o fazer crescer. É o caminho de se
construir dia após dia. Entretanto nada disto é possível, se não se invoca o
Espírito Santo, se não se clama todos os dias pedindo a sua graça, se não se
procura a sua força sobrenatural, se não Lhe fazemos presente o desejo de que
derrame o seu fogo sobre o nosso amor para o fortalecer, orientar e transformar
em cada nova situação.
165. O amor sempre dá vida. Por isso, o amor
conjugal «não se esgota no interior do próprio casal (...). Os cônjuges,
enquanto se doam entre si, doam para além de si mesmos a realidade do filho,
reflexo vivo do seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e
indissociável do ser pai e mãe».[176]
Acolher uma nova vida
166. A família é o âmbito não só da geração, mas
também do acolhimento da vida que chega como um presente de Deus. Cada nova
vida «permite-nos descobrir a dimensão mais gratuita do amor, que nunca cessa
de nos surpreender. É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são amados
antes de chegar».[177] Isto
mostra-nos o primado do amor de Deus que sempre toma a iniciativa, porque os
filhos «são amados antes de ter feito algo para o merecer».[178] Mas,
«desde o início, numerosas crianças são rejeitadas, abandonadas e subtraídas à
sua infância e ao seu futuro. Alguns ousam dizer, como que para se justificar,
que foi um erro tê-las feito vir ao mundo. Isto é vergonhoso! (...) Que
aproveitam as solenes declarações dos direitos do homem e dos direitos da
criança, se depois punimos as crianças pelos erros dos adultos?»[179] Se
uma criança chega ao mundo em circunstâncias não desejadas, os pais ou os
outros membros da família devem fazer todo o possível para aceitá-la como dom
de Deus e assumir a responsabilidade de a acolher com magnanimidade e carinho.
Com efeito, «quando se trata de crianças que vêm ao mundo, nenhum sacrifício
dos adultos será julgado demasiado oneroso ou grande, contanto que se evite que
uma criança chegue a pensar que é um erro, que não vale nada e que está
abandonada aos infortúnios da vida e à prepotência dos homens».[180] O
dom dum novo filho, que o Senhor confia ao pai e à mãe, tem início com o seu
acolhimento, continua com a sua guarda ao longo da vida terrena e tem como
destino final a alegria da vida eterna. Um olhar sereno voltado para a realização
final da pessoa humana tornará os pais ainda mais conscientes do precioso dom
que lhes foi confiado; de facto, Deus concede-lhes fazer a escolha do nome com
que Ele chamará cada um dos seus filhos por toda a eternidade.[181]
167. As famílias numerosas são uma alegria para a
Igreja. Nelas, o amor manifesta a sua fecundidade generosa. Isto não implica
esquecer uma sã advertência de São João Paulo II, quando explicava que a
paternidade responsável não é «procriação ilimitada ou falta de consciência
acerca daquilo que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a
faculdade que os cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio
e responsável, tendo em consideração tanto as realidades sociais e
demográficas, como a sua própria situação e os seus legítimos desejos».[182]
O amor na expectativa própria da
gravidez
168. A gravidez é um período difícil, mas também um
tempo maravilhoso. A mãe colabora com Deus, para que se verifique o milagre
duma nova vida. A maternidade surge duma «particular potencialidade do
organismo feminino, que, com a sua peculiaridade criadora, serve para a
concepção e a geração do ser humano».[183] Cada
mulher participa do «mistério da criação, que se renova na geração humana».[184] Assim
diz o Salmo: Senhor, «formaste-me no seio de minha mãe» (Sl 139/138,
13). Cada criança, que se forma dentro de sua mãe, é um projecto eterno de Deus
Pai e do seu amor eterno: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já
te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei» (Jr 1,
5). Cada criança está no coração de Deus desde sempre e, no momento em que é
concebida, realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos quanto vale o
embrião, desde que é concebido! É preciso contemplá-lo com este olhar amoroso
do Pai, que vê para além de toda a aparência.
169. A mulher grávida pode participar deste
projecto de Deus, sonhando o seu filho: «Toda a mãe e todo o pai sonharam o seu
filho durante nove meses. (...) Não é possível uma família sem o sonho. Numa
família, quando se perde a capacidade de sonhar, os filhos não crescem, o amor
não cresce; a vida debilita-se e apaga-se».[185] Neste
sonho, para um casal cristão, aparece necessariamente o baptismo. Os pais preparam-no
com a sua oração, confiando o filho a Jesus já antes do seu nascimento.
170. Hoje, com os progressos feitos pela ciência, é
possível saber de antemão a cor que terá o cabelo da criança e as doenças que
poderá ter no futuro, porque todas as características somáticas daquela pessoa
estão inscritas no seu código genético já no estado embrionário. Mas,
conhecê-lo em plenitude, só consegue o Pai do Céu que o criou: o mais precioso,
o mais importante só Ele conhece, pois é Ele que sabe quem é aquela criança,
qual é a sua identidade mais profunda. A mãe, que o traz no ventre, precisa de
pedir luz a Deus para poder conhecer em profundidade o seu próprio filho e
saber esperá-lo como ele é. Alguns pais sentem que o seu filho não chega no
melhor momento; faz-lhes falta pedir ao Senhor que os cure e fortaleça para
aceitarem plenamente aquele filho, para o esperarem com todo o coração. É
importante que aquela criança se sinta esperada. Não é um complemento ou uma
solução para uma aspiração pessoal, mas um ser humano, com um valor imenso, e
não pode ser usado para benefício próprio. Por conseguinte, não é importante se
esta nova vida te será útil ou não, se possui características que te agradam ou
não, se corresponde ou não aos teus projectos e sonhos. Porque «os filhos são
uma dádiva! Cada um é único e irrepetível (...). Um filho é amado porque é
filho: não, porque é bonito ou porque é deste modo ou daquele, mas porque é
filho! Não, porque pensa como eu, nem porque encarna as minhas aspirações. Um
filho é um filho».[186] O
amor dos pais é instrumento do amor de Deus Pai, que espera com ternura o nascimento
de cada criança, aceita-a incondicionalmente e acolhe-a gratuitamente.
171 A cada mulher grávida, quero pedir-lhe
afectuosamente: Cuida da tua alegria, que nada te tire a alegria interior da
maternidade. Aquela criança merece a tua alegria. Não permitas que os medos, as
preocupações, os comentários alheios ou os problemas apaguem esta felicidade de
ser instrumento de Deus para trazer uma nova vida ao mundo. Ocupa-te daquilo
que é preciso fazer ou preparar, mas sem obsessões, e louva como Maria: «A minha
alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.
Porque pôs os olhos na humildade da sua serva» (Lc 1, 46-48). Vive,
com sereno entusiasmo, no meio dos teus incómodos e pede ao Senhor que guarde a
tua alegria para poderes transmiti-la ao teu filho.
Amor de mãe e de pai
172. «Recém-nascidas, as crianças começam a receber
em dom, juntamente com o alimento e os cuidados, a confirmação das qualidades
espirituais do amor. Os gestos de amor passam através do dom do seu nome
pessoal, da partilha da linguagem, das intenções dos olhares, das iluminações
dos sorrisos. Assim, aprendem que a beleza do vínculo entre os seres humanos
mostra a nossa alma, procura a nossa liberdade, aceita a diversidade do outro,
reconhece-o e respeita-o como interlocutor. (...) E isto é amor, que contém uma
centelha do amor de Deus».[187] Toda
a criança tem direito a receber o amor de uma mãe e de um pai, ambos
necessários para o seu amadurecimento íntegro e harmonioso. Como disseram os
bispos da Austrália, ambos «contribuem, cada um à sua maneira, para o
crescimento duma criança. Respeitar a dignidade duma criança significa afirmar
a sua necessidade e o seu direito natural a ter uma mãe e um pai».[188] Não
se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também do amor entre
eles, captado como fonte da própria existência, como ninho acolhedor e como
fundamento da família. Caso contrário, o filho parece reduzir-se a uma posse
caprichosa. Ambos, homem e mulher, pai e mãe, são «cooperadores do amor de Deus
criador e como que os seus intérpretes».[189] Mostram
aos seus filhos o rosto materno e o rosto paterno do Senhor. Além disso, é
juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade, do encontro entre seres
diferentes, onde cada um contribui com a sua própria identidade e sabe também
receber do outro. Se, por alguma razão inevitável, falta um dos dois, é
importante procurar alguma maneira de o compensar, para favorecer o adequado
amadurecimento do filho.
173. O sentimento de ser órfãos, que hoje
experimentam muitas crianças e jovens, é mais profundo do que pensamos. Hoje
reconhecemos como plenamente legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram
estudar, trabalhar, desenvolver as suas capacidades e ter objectivos pessoais.
Mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da
presença materna, especialmente nos primeiros meses de vida. A realidade é que
«a mulher apresenta-se diante do homem como mãe, sujeito da nova vida humana,
que nela é concebida e se desenvolve, e dela nasce para o mundo».[190] O
enfraquecimento da presença materna, com as suas qualidades femininas, é um
risco grave para a nossa terra. Aprecio o feminismo, quando não pretende a
uniformidade nem a negação da maternidade. Com efeito, a grandeza das mulheres
implica todos os direitos decorrentes da sua dignidade humana inalienável, mas
também do seu génio feminino, indispensável para a sociedade. As suas
capacidades especificamente femininas – em particular a maternidade –
conferem-lhe também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma missão
peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem de
todos.[191]
174. De facto, «as mães são o antídoto mais forte
contra o propagar-se do individualismo egoísta. (...) São elas que testemunham
a beleza da vida».[192] Sem
dúvida, «uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana, porque as mães
sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a
força moral. As mães transmitem, muitas vezes, também o sentido mais profundo
da prática religiosa: nas primeiras orações, nos primeiros gestos de devoção
que uma criança aprende (...). Sem as mães, não somente não haveria novos
fiéis, mas a fé perderia boa parte do seu calor simples e profundo. (...)
Queridas mães, obrigado, obrigado por aquilo que sois na família e pelo que
dais à Igreja e ao mundo».[193]
175. A mãe, que ampara o filho com a sua ternura e
compaixão, ajuda a despertar nele a confiança, a experimentar que o mundo é um
lugar bom que o acolhe, e isto permite desenvolver uma auto-estima que favorece
a capacidade de intimidade e a empatia. Por sua vez, a figura do pai ajuda a
perceber os limites da realidade, caracterizando-se mais pela orientação, pela
saída para o mundo mais amplo e rico de desafios, pelo convite a esforçar-se e
lutar. Um pai com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez
combine no seu trato com a esposa o carinho e o acolhimento, é tão necessário
como os cuidados maternos. Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às
circunstâncias concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida
das duas figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o
amadurecimento da criança.
176. Diz-se que a nossa sociedade é uma «sociedade
sem pais». Na cultura ocidental, a figura do pai estaria simbolicamente
ausente, distorcida, desvanecida. Até a virilidade pareceria posta em questão.
Verificou-se uma compreensível confusão, já que, «num primeiro momento, isto
foi sentido como uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai como
representante da lei que se impõe de fora, do pai como censor da felicidade dos
filhos e impedimento à emancipação e à autonomia dos jovens. Por vezes, havia
casas em que no passado reinava o autoritarismo, em certos casos até a
prepotência».[194] Mas,
«como acontece muitas vezes, passa-se de um extremo ao outro. O problema nos
nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua
ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o pai está tão concentrado
em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas próprias realizações individuais
que até se esquece da família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos».[195] A
presença paterna e, consequentemente, a sua autoridade são afectadas também
pelo tempo cada vez maior que se dedica aos meios de comunicação e à tecnologia
da distracção. Além disso, hoje, a autoridade é olhada com suspeita e os
adultos são duramente postos em discussão. Eles próprios abandonam as certezas
e, por isso, não dão orientações seguras e bem fundamentadas aos seus filhos.
Não é saudável que sejam invertidas as funções entre pais e filhos: prejudica o
processo adequado de amadurecimento que as crianças precisam de fazer e
nega-lhes um amor capaz de as orientar e que as ajude a maturar.[196]
177. Deus coloca o pai na família, para que, com as
características preciosas da sua masculinidade, «esteja próximo da esposa, para
compartilhar tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja
próximo dos filhos no seu crescimento: quando brincam e quando se aplicam,
quando estão descontraídos e quando se sentem angustiados, quando se exprimem e
quando permanecem calados, quando ousam e quando têm medo, quando dão um passo
errado e quando voltam a encontrar o caminho; pai presente, sempre. Estar
presente não significa ser controlador, porque os pais demasiado controladores
aniquilam os filhos».[197] Alguns
pais sentem-se inúteis ou desnecessários, mas a verdade é que «os filhos têm
necessidade de encontrar um pai que os espera quando voltam dos seus fracassos.
Farão de tudo para não o admitir, para não o revelar, mas precisam dele».[198] Não
é bom que as crianças fiquem sem pais e, assim, deixem de ser crianças antes do
tempo.
Fecundidade alargada
178. Àqueles que não podem ter filhos, lembramos
que «o matrimónio não foi instituído só em ordem à procriação (...). E por
isso, mesmo que faltem os filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o
matrimónio conserva o seu valor e indissolubilidade, como comunidade e comunhão
de toda a vida».[199] Além
disso, «a maternidade não é uma realidade exclusivamente biológica, mas
expressa-se de diversas maneiras».[200]
179. A adopção é um caminho para realizar a
maternidade e a paternidade de uma forma muito generosa, e desejo encorajar
aqueles que não podem ter filhos a alargar e abrir o seu amor conjugal para
receber quem está privado de um ambiente familiar adequado. Nunca se
arrependerão de ter sido generosos. Adoptar é o acto de amor que oferece uma
família a quem não a tem. É importante insistir para que a legislação possa
facilitar o processo de adopção, sobretudo nos casos de filhos não desejados,
evitando assim o aborto ou o abandono. Aqueles que assumem o desafio de adoptar
e acolhem uma pessoa de maneira incondicional e gratuita, tornam-se mediação do
amor de Deus que diz: «Ainda que a tua mãe chegasse a esquecer-te, Eu nunca te
esqueceria» (cf. Is 49, 15).
180. «A opção da adopção e do acolhimento exprime
uma fecundidade particular da experiência conjugal, mesmo para além dos casos
de esposos com problemas de fertilidade (...). Ao contrário das situações em
que o filho é desejado a todo o custo, como um direito ao próprio
completamento, a adopção e o acolhimento, rectamente compreendidos, mostram um
aspecto importante da paternidade e da filiação ajudando a reconhecer que os
filhos, quer naturais quer adoptivos ou acolhidos, são em si mesmos outro
sujeito e é preciso recebê-los, amá-los, cuidar deles e não apenas trazê-los ao
mundo. O interesse prevalecente da criança deveria sempre inspirar as decisões
sobre a adopção e o acolhimento».[201] Por
outro lado, «deve-se impedir o tráfico de crianças entre países e continentes,
por meio de oportunas medidas legislativas e controle estatal».[202]
181. Convém lembrar-nos também de que a procriação
e a adopção não são as únicas maneiras de viver a fecundidade do amor. Mesmo a
família com muitos filhos é chamada a deixar a sua marca na sociedade onde está
inserida, desenvolvendo outras formas de fecundidade que são uma espécie de
extensão do amor que a sustenta. As famílias cristãs não esqueçam que «a fé não
nos tira do mundo, mas insere-nos mais profundamente nele. (...) A cada um de
nós cabe um papel especial na preparação da vinda do Reino de Deus».[203] A
família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando proteger-se da
sociedade. Não fica à espera, mas sai de si mesma à procura de solidariedade.
Assim transforma-se num lugar de integração da pessoa com a sociedade e num
ponto de união entre o público e o privado. Os cônjuges precisam de adquirir
consciência clara e convicta dos seus deveres sociais. Quando isto acontece,
não diminui o carinho que os une; antes, enche-se de nova luz, como está
expresso nos seguintes versos:
«As tuas mãos são a minha carícia,
o meu despertar diário
amo-te porque tuas mãos
trabalham pela justiça.
Se te amo, é porque és
o meu amor, o meu cúmplice e tudo
e na rua, lado a lado,
somos muito mais que dois».[204]
o meu despertar diário
amo-te porque tuas mãos
trabalham pela justiça.
Se te amo, é porque és
o meu amor, o meu cúmplice e tudo
e na rua, lado a lado,
somos muito mais que dois».[204]
182. Nenhuma família pode ser fecunda, se se
concebe como demasiado diferente ou «separada». Para evitar este risco,
lembremo-nos que a família de Jesus, cheia de graça e sabedoria, não era vista
como uma família «estranha», como um lar alheado e distante da gente. Por isso
mesmo as pessoas sentiram dificuldade em reconhecer a sabedoria de Jesus e
diziam: «De onde é que isto lhe vem? (…) Não é Ele o carpinteiro, o filho de
Maria?» (Mc 6, 2.3). «Não é Ele o filho do carpinteiro?» (Mt 13,
55). Isto confirma que era uma família simples, próxima de todos, integrada
normalmente na povoação. E Jesus também não cresceu numa relação fechada e
exclusiva com Maria e José, mas de bom grado movia-se na família alargada, onde
encontrava os parentes e os amigos. Isto explica por que, quando regressavam de
Jerusalém, os seus pais admitissem a possibilidade de o Menino de doze anos
vagar pela caravana um dia inteiro, ouvindo as histórias e partilhando as
preocupações de todos: «Pensando que Ele Se encontrava na caravana, fizeram um
dia de viagem» (Lc 2, 44). Mas, às vezes, acontece que algumas
famílias cristãs, pela linguagem que usam, a maneira de dizer as coisas, o
estilo do seu tratamento, a repetição constante de dois ou três assuntos, são
vistas como distantes, separadas da sociedade, e até os próprios parentes se
sentem desprezados ou julgados por elas.
183. Um casal de esposos, que experimenta a força
do amor, sabe que este amor é chamado a sarar as feridas dos abandonados,
estabelecer a cultura do encontro, lutar pela justiça. Deus confiou à família o
projecto de tornar «doméstico» o mundo,[205] de
modo que todos cheguem a sentir cada ser humano como um irmão: «Um olhar atento
à vida quotidiana dos homens e das mulheres de hoje demonstra imediatamente a
necessidade que há, em toda a parte, duma vigorosa injecção de espírito familiar.
(...) Não só a organização da vida comum encalha cada vez mais numa burocracia
totalmente alheia aos vínculos humanos fundamentais, mas até o costume social e
político mostra frequentemente sinais de degradação».[206] Pelo
contrário, as famílias magnânimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são
capazes de tecer uma amizade com aqueles que estão a viver pior do que elas. Se
realmente têm a peito o Evangelho, não podem esquecer o que diz Jesus: «Sempre
que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o
fizestes» (Mt 25, 40). Em última análise, vivem o que nos é pedido,
de forma tão eloquente, neste texto: «Quando deres um almoço ou um jantar, não
convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus
vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim
retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os
coxos e os cegos. E serás feliz» (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui
está o segredo duma família feliz.
184. Com o testemunho e também com a palavra, as
famílias falam de Jesus aos outros, transmitem a fé, despertam o desejo de Deus
e mostram a beleza do Evangelho e do estilo de vida que nos propõe. Assim os
esposos cristãos pintam o cinzento do espaço público, colorindo-o de
fraternidade, sensibilidade social, defesa das pessoas frágeis, fé luminosa,
esperança activa. A sua fecundidade alarga-se, traduzindo-se em mil e uma
maneiras de tornar o amor de Deus presente na sociedade.
Distinguir o Corpo
185. Nesta linha, convém tomar muito a sério um
texto bíblico que habitualmente é interpretado fora do seu contexto ou duma
maneira muito geral, pelo que é possível negligenciar o seu sentido mais
imediato e directo, que é marcadamente social. Trata-se da primeira Carta aos
Coríntios (11, 17-34), onde São Paulo enfrenta uma situação vergonhosa da
comunidade. Nela, algumas pessoas facultosas tendiam a discriminar os pobres, e
isto verificava-se mesmo na ágape que acompanhava a celebração da Eucaristia.
Enquanto os ricos se deleitavam com seus manjares, os pobres olhavam e passavam
fome: «Enquanto um passa fome, outro fica embriagado. Porventura não tendes
casas para comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar
aqueles que nada têm?» (vv. 21-22).
186. A Eucaristia exige a integração no único corpo
eclesial. Quem se abeira do Corpo e do Sangue de Cristo não pode ao mesmo tempo
ofender aquele mesmo Corpo, fazendo divisões e discriminações escandalosas
entre os seus membros. Na realidade, trata-se de «distinguir» o Corpo do
Senhor, de O reconhecer com fé e caridade, quer nos sinais sacramentais quer na
comunidade; caso contrário, come-se e bebe-se a própria condenação (cf. v. 29).
Este texto bíblico é um sério aviso para as famílias que se fecham na própria
comodidade e se isolam e, de modo especial, para as famílias que ficam
indiferentes aos sofrimentos das famílias pobres e mais necessitadas. Assim, a
celebração eucarística torna-se um apelo constante a cada um para que «se
examine a si mesmo» (v. 28), a fim de abrir as portas da própria família a uma
maior comunhão com os descartados da sociedade e depois, sim, receber o
sacramento do amor eucarístico que faz de nós um só corpo. Não se deve esquecer
que «a “mística” do sacramento tem um carácter social».[207] Quando
os comungantes se mostram relutantes em deixar-se impelir a um compromisso a
favor dos pobres e atribulados ou consentem diferentes formas de divisão,
desprezo e injustiça, recebem indignamente a Eucaristia. Ao contrário, as
famílias, que se alimentam da Eucaristia com a disposição adequada, reforçam o
seu desejo de fraternidade, o seu sentido social e o seu compromisso para com
os necessitados.
A vida na família em sentido amplo
187. O núcleo familiar restrito não deveria
isolar-se da família alargada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os
vizinhos. Nesta família ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda, ou
pelo menos de companhia e gestos de carinho, ou pode haver grandes sofrimentos
que precisam de conforto.[208] Às
vezes o individualismo destes tempos leva a fechar-se na segurança dum pequeno
ninho e a sentir os outros como um incómodo. Todavia este isolamento não
proporciona mais paz e felicidade, antes fecha o coração da família e priva-a
do horizonte amplo da existência.
Ser filho
188. Em primeiro lugar, falemos dos pais próprios.
Jesus lembrava aos fariseus que o abandono dos pais é contrário à Lei de Deus
(cf. Mc 7, 8-13). Não faz bem a ninguém perder a consciência
de ser filho. Em cada pessoa, «mesmo quando se torna adulta ou idosa, quando
passa também a ser progenitora ou desempenha funções de responsabilidade, por
baixo de tudo isso permanece a identidade de filho. Todos somos filhos. E isto
recorda-nos sempre que a vida não no-la demos sozinhos, mas recebemo-la. O
grande dom da vida é o primeiro presente que recebemos».[209]
189. Por isso, «o quarto mandamento pede aos filhos
(…) que honrem o pai e a mãe (cf. Ex 20, 12). Este mandamento
vem logo após aqueles que dizem respeito ao próprio Deus. Com efeito, contém
algo de sagrado, algo de divino, algo que está na raiz de todos os outros tipos
de respeito entre os homens. E, na formulação bíblica do quarto mandamento,
acrescenta-se: “para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor,
teu Deus, te dá”. O vínculo virtuoso entre as gerações é garantia de futuro e
de uma história verdadeiramente humana. Uma sociedade de filhos que não honram
os pais é uma sociedade sem honra (...). É uma sociedade destinada a encher-se
de jovens áridos e ávidos».[210]
190. Mas há também a outra face da moeda: «O homem
deixará o pai e a mãe» (Gn 2, 24), diz a Palavra de Deus. Às vezes,
isto não é cumprido, nunca se chegando a assumir o matrimónio, porque falta
esta renúncia e esta dedicação. Os pais não devem ser abandonados nem
transcurados, mas, para unir-se em matrimónio, é preciso deixá-los, de modo que
o novo lar seja a morada, a protecção, a plataforma e o projecto, e seja
possível tornar-se verdadeiramente «uma só carne» (Gn 2, 24).
Sucede, em alguns casais, ocultar ao próprio cônjuge muitas coisas, que
entretanto se dizem aos pais, chegando ao ponto de se importar mais com as
opiniões destes do que com os sentimentos e as opiniões do cônjuge. Não é fácil
manter esta situação por muito tempo, e só provisoriamente poderia ter lugar,
isto é, enquanto se criam as condições para crescer na confiança e no diálogo.
O matrimónio desafia a encontrar uma nova maneira de ser filho.
Os idosos
191. «Não me rejeites no tempo da velhice; não me
abandones, quando já não tiver forças» (Sl 71/70, 9). É o brado do
idoso, que teme o esquecimento e o desprezo. Assim como Deus nos convida a ser
seus instrumentos para escutar a súplica dos pobres, assim também espera que
ouçamos o brado dos idosos.[211] Isto
interpela as famílias e as comunidades, porque «a Igreja não pode nem quer conformar-se
com uma mentalidade de impaciência, e muito menos de indiferença e desprezo, em
relação à velhice. Devemos despertar o sentido colectivo de gratidão, apreço,
hospitalidade, que faça o idoso sentir-se parte viva da sua comunidade. Os
idosos são homens e mulheres, pais e mães que, antes de nós, percorreram o
nosso próprio caminho, estiveram na nossa mesma casa, combateram a nossa mesma
batalha diária por uma vida digna».[212] Por
isso, «como gostaria duma Igreja que desafia a cultura do descarte com a
alegria transbordante dum novo abraço entre jovens e idosos!»[213]
192. São João Paulo II convidou-nos a prestar
atenção ao lugar do idoso na família, porque há culturas que, «especialmente
depois dum desenvolvimento industrial e urbanístico desordenado, forçaram, e
continuam a forçar, os idosos a situações inaceitáveis de marginalização».[214] Os
idosos ajudam a perceber «a continuidade das gerações», com «o carisma de
lançar uma ponte»[215] entre
elas. Muitas vezes são os avós que asseguram a transmissão dos grandes valores
aos seus netos, e «muitas pessoas podem constatar que devem a sua iniciação na vida
cristã precisamente aos avós».[216] As
suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a
reconhecer que a história não começa com elas, que são herdeiras dum longo
caminho e que é necessário respeitar o fundamento que as precede. Quem quebra
os laços com a história terá dificuldade em tecer relações estáveis e reconhecer
que não é o dono da realidade. Com efeito, «a atenção aos idosos distingue uma
civilização. Numa civilização, presta-se atenção ao idoso? Há lugar para o
idoso? Esta civilização irá em frente, se souber respeitar a sabedoria dos
idosos».[217]
193. A falta de memória histórica é um defeito
grave da nossa sociedade. É a mentalidade imatura do «já está ultrapassado».
Conhecer e ser capaz de tomar posição perante os acontecimentos passados é a
única possibilidade de construir um futuro que tenha sentido. Não se pode
educar sem memória: «Recordai os dias passados» (Heb 10, 32). As
histórias dos idosos fazem muito bem às crianças e aos jovens, porque os ligam
à história vivida tanto pela família como pela vizinhança e o país. Uma família
que não respeita nem cuida dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma
família desintegrada; mas uma família que recorda é uma família com futuro. Por
isso, «numa civilização em que não há espaço para os idosos ou onde eles são
descartados porque criam problemas, tal sociedade traz em si o vírus da morte»,[218] porque
«se separa das próprias raízes».[219] O
fenómeno contemporâneo de sentir-se órfão, em termos de descontinuidade,
desenraizamento e perda das certezas que dão forma à vida, desafia-nos a fazer
das nossas famílias um lugar onde as crianças possam lançar raízes no terreno
duma história colectiva.
Ser irmão
194. A relação entre os irmãos aprofunda-se com o
passar do tempo, e «o laço de fraternidade que se forma na família entre os
filhos, quando se verifica num clima de educação para a abertura aos outros, é
uma grande escola de liberdade e de paz. Em família, entre irmãos, aprendemos a
convivência humana (…). Talvez nem sempre estejamos conscientes disto, mas é
precisamente a família que introduz a fraternidade no mundo. A partir desta
primeira experiência de fraternidade, alimentada pelos afectos e pela educação
familiar, o estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a
sociedade inteira».[220]
195. Crescer entre irmãos proporciona a bela
experiência de cuidar uns dos outros, de ajudar e ser ajudado. Por isso, «a
fraternidade na família resplandece de modo especial quando vemos a solicitude,
a paciência e o carinho com que é circundado o irmãozinho ou a irmãzinha mais
frágil, doente ou deficiente».[221] Faz
falta reconhecer que «ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência
forte, inestimável, insubstituível»,[222] mas
é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se como irmãos. Esta
aprendizagem, por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola de sociabilidade.
Nalguns países, existe uma forte tendência para ter apenas um filho, pelo que a
experiência de ser irmão começa a ser rara. Nos casos em que não se pôde ter
mais de um filho, é preciso encontrar formas de a criança não crescer sozinha
ou isolada.
Um coração grande
196. Com efeito, além do círculo pequeno formado
pelos cônjuges e seus filhos, temos a família alargada, que não pode ser
ignorada. Com efeito, «o amor entre o homem e a mulher no matrimónio e, de
forma derivada e ampla, o amor entre os membros da mesma família – entre pais e
filhos, entre irmãos e irmãs, entre parentes e familiares – é animado e
impelido por um dinamismo interior e incessante, que leva a família a uma
comunhão sempre mais profunda e intensa, fundamento e alma da comunidade
conjugal e familiar».[223] Aí
se integram também os amigos e as famílias amigas, e mesmo as comunidades de
famílias que se apoiam mutuamente nas suas dificuldades, no seu compromisso
social e na fé.
197. Esta família alargada deveria acolher, com
tanto amor, as mães solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas
que devem continuar a educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que
requerem muito carinho e proximidade, os jovens que lutam contra uma
dependência, as pessoas solteiras, separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os
idosos e os doentes que não recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no
seio dela «mesmo os mais desastrados nos comportamentos da sua vida».[224] E
pode também ajudar a compensar as fragilidades dos pais, ou a descobrir e
denunciar a tempo possíveis situações de violência ou mesmo de abuso sofridas
pelas crianças, dando-lhes um amor sadio e um sustentáculo familiar, quando os
seus pais não o podem assegurar.
198. Por fim, não se pode esquecer que, nesta
família alargada, estão também o sogro, a sogra e todos os parentes do cônjuge.
Uma delicadeza própria do amor é evitar vê-los como concorrentes, como pessoas
perigosas, como invasores. A união conjugal exige que se respeite as suas
tradições e costumes, se procure compreender a sua linguagem, evitar
maledicências, cuidar deles e integrá-los dalguma forma no próprio coração,
embora se deva preservara legítima autonomia e a intimidade do casal. Estas
atitudes são também uma excelente maneira de exprimir a generosidade da
dedicação amorosa ao próprio cônjuge.
199. Os debates do caminho sinodal puseram a
descoberto a necessidade de desenvolver novos caminhos pastorais, que
procurarei agora resumir em geral. As diferentes comunidades é que deverão
elaborar propostas mais práticas e eficazes, que tenham em conta tanto a
doutrina da Igreja como as necessidades e desafios locais. Sem pretender
apresentar aqui uma pastoral da família, limitar-me-ei a coligir alguns dos
principais desafios pastorais.
Anunciar hoje o Evangelho da família
200. Os Padres sinodais insistiram no facto de que
as famílias cristãs são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos
principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo «o testemunho jubiloso
dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas».[225] Para
isso – sublinharam – é preciso fazer-lhes «experimentar que o Evangelho da
família é alegria que “enche o coração e a vida inteira”, porque, em Cristo,
somos “libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (Evangelii gaudium, 1). À luz da parábola do semeador
(cf. Mt 13, 3-9), a nossa tarefa consiste em cooperar na
sementeira: o resto é obra de Deus. E não se deve esquecer também que a Igreja,
que prega sobre a família, é sinal de contradição»,[226] mas
os esposos agradecem que os pastores lhes ofereçam motivações para uma aposta
corajosa num amor forte, sólido, duradouro, capaz de enfrentar todos os
imprevistos que lhes surjam. É com humilde compreensão que a Igreja quer chegar
às famílias, com o desejo de «acompanhar todas e cada uma delas a fim de que
descubram a saída melhor para superar as dificuldades que encontram no seu
caminho».[227] Não
basta inserir uma genérica preocupação pela família nos grandes projectos
pastorais; para que as famílias possam ser sujeitos cada vez mais activos da
pastoral familiar, requer-se «um esforço evangelizador e catequético dirigido à
família»,[228] que
a encaminhe nesta direcção.
201. «Por isso exige-se a toda a Igreja uma
conversão missionária: é preciso não se contentar com um anúncio puramente
teórico e desligado dos problemas reais das pessoas».[229] A
pastoral familiar «deve fazer experimentar que o Evangelho da família é
resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e
plena realização na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata
apenas de apresentar uma normativa, mas de propor valores, correspondendo à
necessidade deles que se constata hoje, mesmo nos países mais secularizados».[230] De
igual modo «sublinhou-se a necessidade duma evangelização que denuncie, com
desassombro, os condicionalismos culturais, sociais, políticos e económicos,
bem como o espaço excessivo dado à lógica do mercado, que impedem uma vida
familiar autêntica, gerando discriminação, pobreza, exclusão e violência. Para
isso, temos de entrar em diálogo e cooperação com as estruturas sociais, bem
como encorajar e apoiar os leigos que se comprometem, como cristãos, no âmbito
cultural e sociopolítico».[231]
202. «A principal contribuição para a pastoral
familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias, onde se
harmonizam os contributos das pequenas comunidades, movimentos e associações
eclesiais».[232] A
par duma pastoral especificamente voltada para as famílias, há necessidade duma
«formação mais adequada dos presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas,
catequistas e restantes agentes pastorais».[233] Nas
respostas às consultações promovidas em todo o mundo, ressaltou-se que os
ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar
dos complexos problemas atuais das famílias; para isso, pode ser útil também a
experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados.
203. Os seminaristas deveriam ter acesso a uma
formação interdisciplinar mais ampla sobre namoro e matrimónio, não se
limitando à doutrina. Além disso, a formação nem sempre lhes permite
desenvolver o seu mundo psicoafectivo. Alguns carregam, na sua vida, a
experiência da sua própria família ferida, com a ausência de pais e
instabilidade emocional. É preciso garantir um amadurecimento, durante a
formação, para que os futuros ministros possuam o equilíbrio psíquico que a sua
missão lhes exige. Os laços familiares são fundamentais para fortificar a
auto-estima sadia dos seminaristas. Por isso, é importante que as famílias
acompanhem todo o processo do Seminário e do sacerdócio, pois ajudam a
revigorá-lo de forma realista. Neste sentido, é salutar a combinação de tempos
de vida no Seminário com outros de vida em paróquias, que permitam tomar maior
contacto com a realidade concreta das famílias. De facto, ao longo da sua vida
pastoral, o sacerdote encontra-se sobretudo com famílias. «A presença dos
leigos e das famílias, particularmente a presença feminina, na formação
sacerdotal, favorece o apreço pela variedade e complementaridade das diferentes
vocações na Igreja».[234]
204. As respostas às consultações exprimem, com
insistência, também a necessidade de formar agentes leigos de pastoral
familiar, com a ajuda de psicopedagogos, médicos de família, médicos de
comunidade, assistentes sociais, advogados de menores e família, predispondo-os
para receber as contribuições da psicologia, sociologia, sexologia e até
aconselhamento. Os profissionais, particularmente aqueles que têm experiência
de acompanhamento, ajudam a encarnar as propostas pastorais nas situações reais
e nas preocupações concretas das famílias. «Os itinerários e cursos de formação
destinados especificamente aos agentes pastorais poderão torná-los idóneos a
inserir o próprio caminho de preparação para o matrimónio na dinâmica mais
ampla da vida eclesial».[235] Uma
boa preparação pastoral é importante, «sobretudo tendo em vista as particulares
situações de emergência decorrentes dos casos de violência doméstica e abuso
sexual».[236] Tudo
isto em nada diminui, antes integra, o valor fundamental da direcção espiritual,
dos recursos espirituais inestimáveis da Igreja e da Reconciliação sacramental.
Guiar os noivos no caminho de
preparação para o matrimónio
205. Os Padres sinodais afirmaram, de várias
maneiras, que é preciso ajudar os jovens a descobrir o valor e a riqueza do
matrimónio.[237] Devem
poder captar o fascínio duma união plena que eleva e aperfeiçoa a dimensão
social da vida, confere à sexualidade o seu sentido maior, ao mesmo tempo que
promove o bem dos filhos e lhes proporciona o melhor contexto para o seu
amadurecimento e educação.
206. «A complexa realidade social e os desafios,
que a família é chamada a enfrentar actualmente, exigem um empenhamento maior
de toda a comunidade cristã na preparação dos noivos para o matrimónio. É
necessário lembrara importância das virtudes. Dentre elas, resulta ser condição
preciosa para o crescimento genuíno do amor interpessoal a castidade. A
respeito desta necessidade, os Padres sinodais foram concordes em sublinhara
exigência dum maior envolvimento de toda a comunidade, privilegiando o
testemunho das próprias famílias, e a exigência ainda duma radicação da
preparação para o matrimónio no caminho da iniciação cristã, sublinhando o nexo
do matrimónio com o baptismo e os outros sacramentos. Da mesma forma,
evidenciou-se a necessidade de programas específicos de preparação próxima para
o matrimónio que sejam verdadeira experiência de participação na vida eclesial
e aprofundemos vários aspectos da vida familiar».[238]
207. Convido as comunidades cristãs a reconhecerem
que é um bem para elas mesmas acompanhar o caminho de amor dos noivos. Como
justamente disseram os bispos da Itália, aqueles que se casam são, para as
comunidades cristãs, «um recurso precioso, porque, esforçando-se sinceramente
por crescer no amor e no dom recíproco, podem contribuir para renovar o próprio
tecido de todo o corpo eclesial: a forma particular de amizade que vivem pode
tornar-se contagiosa, fazendo crescer na amizade e na fraternidade a comunidade
cristã de que fazem parte».[239] Há
várias maneiras legítimas de organizar a preparação próxima para o matrimónio e
cada Igreja local discernirá a que for melhor, procurando uma formação adequada
que, ao mesmo tempo, não afaste os jovens do sacramento. Não se trata de lhes
ministrar o Catecismo inteiro nem de os saturar com demasiados temas, sendo
válido também aqui que «não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas o
sentir e saborear interiormente as coisas».[240] Interessa
mais a qualidade do que a quantidade, devendo-se dar prioridade – juntamente
com um renovado anúncio do querigma – àqueles conteúdos que, comunicados de
forma atraente e cordial, os ajudem a comprometer-se num percurso da vida toda
«com ânimo grande e liberalidade».[241] Trata-se
duma espécie de «iniciação» ao sacramento do matrimónio, que lhes forneça os
elementos necessários para poderem recebê-lo com as melhores disposições e
iniciar com uma certa solidez a vida familiar.
208. Além disso, convém encontrar os modos –
através das famílias missionárias, das próprias famílias dos noivos e de vários
recursos pastorais – para oferecer uma preparação remota que faça amadurecer o
amor deles com um acompanhamento rico de proximidade e testemunho.
Habitualmente, são muito úteis os grupos de noivos e a oferta de palestras
opcionais sobre uma variedade de temas que realmente interessam aos jovens.
Entretanto são indispensáveis alguns momentos personalizados, dado que o
objectivo principal é ajudar cada um a aprender a amar esta pessoa concreta com
quem pretende partilhar a vida inteira. Aprender a amar alguém não é algo que
se improvisa, nem pode ser o objectivo dum breve curso antes da celebração do
matrimónio. Na realidade, cada pessoa prepara-se para o matrimónio, desde o seu
nascimento. Tudo o que a família lhe deu, deveria permitir-lhe aprender da
própria história e torná-la capaz dum compromisso pleno e definitivo.
Provavelmente os que chegam melhor preparados ao casamento são aqueles que
aprenderam dos seus próprios pais o que é um matrimónio cristão, onde se
escolheram um ao outro sem condições e continuam a renovar esta decisão. Neste
sentido todas as actividades pastorais, que tendem a ajudar os cônjuges a
crescer no amor e a viver o Evangelho na família, são uma ajuda inestimável a
fim de que os seus filhos se preparem para a sua futura vida matrimonial.
Também não devemos esquecer os valiosos recursos da pastoral popular. Só para
dar um exemplo simples, lembro o Dia de São Valentim, que, em alguns países, é
melhor aproveitado pelos comerciantes do que pela criatividade dos pastores.
209. A preparação dos que já formalizaram o
noivado, quando a comunidade paroquial consegue acompanhá-los com bom período
de antecipação, deve dar-lhes também a possibilidade de individuar incompatibilidades
e riscos. Assim é possível chegarem a dar-se conta de que não é razoável
apostar naquela relação, para não se expor a um previsível fracasso que terá
consequências muito dolorosas. O problema é que o deslumbramento inicial leva a
procurar esconder ou relativizar muitas coisas, evitam-se as divergências,
limitando-se assim a adiar as dificuldades para depois. Os noivos deveriam ser
incentivados e ajudados a poderem expressar o que cada um espera dum eventual
matrimónio, a sua maneira de entender o que é o amor e o compromisso, aquilo
que se deseja do outro, o tipo de vida em comum que se quer projectar. Estes
diálogos podem ajudar a ver que, na realidade, os pontos de contacto são
escassos e que a mera atracção mútua não será suficiente para sustentar a
união. Não há nada de mais volúvel, precário e imprevisível que o desejo, e
nunca se deve encorajar uma decisão de contrair matrimónio se não se
aprofundaram outras motivações que confiram a este pacto reais possibilidades
de estabilidade.
210. No caso de se reconhecer com clareza os pontos
fracos do outro, é preciso que exista uma efectiva confiança na possibilidade
de ajudá-lo a desenvolver o melhor da sua personalidade para contrabalançar o
peso das suas fragilidades, com um decidido interesse em promovê-lo como ser
humano. Isto implica aceitar com vontade firme a possibilidade de enfrentar
algumas renúncias, momentos difíceis e situações de conflito, e a sólida
decisão de preparar-se para isso. Deve ser possível detectar os sinais de
perigo que poderá apresentar a relação, para se encontrar, antes do matrimónio,
os meios que permitam enfrentá-los com bom êxito. Infelizmente, muitos chegam
às núpcias sem se conhecer. Limitaram-se a divertir-se juntos, a fazer
experiências juntos, mas não enfrentaram o desafio de se manifestar a si mesmos
e apreender quem é realmente o outro.
211. Tanto a preparação próxima como o
acompanhamento mais prolongado devem procurar que os noivos não considerem o
matrimónio como o fim do caminho, mas o assumam como uma vocação que os lança
para diante, com a decisão firme e realista de atravessarem juntos todas as
provações e momentos difíceis. Tanto a pastoral pré-matrimonial como a
matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se
ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os
momentos duros. Estas contribuições não são apenas convicções doutrinais, nem
se podem reduzir aos preciosos recursos espirituais que a Igreja sempre
oferece, mas devem ser também percursos práticos, conselhos bem encarnados,
estratégias tomadas da experiência, orientações psicológicas. Tudo isto cria
uma pedagogia do amor, que não pode ignorar a sensibilidade actual dos jovens,
para conseguir mobilizá-los interiormente. Ao mesmo tempo, na preparação dos
noivos, deve ser possível indicar-lhes lugares e pessoas, consultórios ou
famílias prontas a ajudar, aonde poderão dirigir-se em busca de ajuda se
surgirem dificuldades. Mas nunca se deve esquecer de lhes propor a
Reconciliação sacramental, que permite colocar os pecados e os erros da vida
passada e da própria relação sob o influxo do perdão misericordioso de Deus e
da sua força sanadora.
A preparação da celebração
212. A preparação próxima do matrimónio tende a
concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes
que consomem tanto os recursos económicos como as energias e a alegria. Os
noivos chegam desfalecidos e exaustos ao casamento, em vez de dedicarem o
melhor das suas forças a preparar-se como casal para o grande passo que,
juntos, vão dar. Esta mesma mentalidade subjaz também à decisão dalgumas uniões
de facto que nunca mais chegam ao matrimónio, porque pensam nas elevadas
despesas da festa, em vez de darem prioridade ao amor mútuo e à sua
formalização diante dos outros. Queridos noivos, tende a coragem de ser
diferentes, não vos deixeis devorar pela sociedade do consumo e da aparência. O
que importa é o amor que vos une, fortalecido e santificado pela graça. Vós
sois capazes de optar por uma festa austera e simples, para colocar o amor
acima de tudo. Os agentes pastorais e toda a comunidade podem ajudar para que
esta prioridade se torne a norma e não a excepção.
213. Na preparação mais imediata, é importante
esclarecer os noivos para viverem com grande profundidade a celebração
litúrgica, ajudando-os a compreender e viver o significado de cada gesto.
Lembremo-nos de que um compromisso tão grande como este expresso no
consentimento matrimonial e a união dos corpos que consuma o matrimónio, quando
se trata de dois baptizados, só podem ser interpretados como sinais do amor do
Filho de Deus feito carne e unido com a sua Igreja em aliança de amor. Nos
baptizados, as palavras e os gestos transformam-se numa linguagem que manifesta
a fé. O corpo, com os significados que Deus lhe quis infundir ao criá-lo,
«transforma-se na linguagem dos ministros do sacramento, conscientes de que, no
pacto conjugal, se manifesta e realiza o mistério».[242]
214. Às vezes, os noivos não percebem o peso
teológico e espiritual do consentimento, que ilumina o significado de todos os
gestos sucessivos. É necessário salientar que aquelas palavras não podem ser
reduzidas ao presente; implicam uma totalidade que inclui o futuro: «até que a
morte vos separe». O sentido do consentimento mostra que «liberdade e
fidelidade não se opõem uma à outra, aliás apoiam-se reciprocamente quer nas
relações interpessoais quer nas sociais. De facto, pensemos nos danos que
produzem, na civilização da comunicação global, o aumento de promessas não
mantidas (...). A honra à palavra dada, a fidelidade à promessa não se podem
comprar nem vender. Não podem ser impostas com a força, nem guardadas sem
sacrifício».[243]
215. Os bispos do Quénia fizeram notar que «os
futuros esposos, muito concentrados com o dia da boda, esquecem-se de que estão
a preparar-se para um compromisso que dura a vida inteira».[244] Temos
de ajudá-los a darem-se conta de que o sacramento não é apenas um momento que
depois passa a fazer parte do passado e das recordações, mas exerce a sua
influência sobre toda a vida matrimonial, de maneira permanente.[245] O
significado procriador da sexualidade, a linguagem do corpo e os gestos de amor
vividos na história dum casal de esposos transformam-se numa «continuidade
ininterrupta da linguagem litúrgica» e «a vida conjugal torna-se de algum modo
liturgia».[246]
216. Também se pode meditar com as leituras
bíblicas e enriquecer a compreensão do significado das alianças que trocam
entre si, ou doutros sinais que fazem parte do rito. Mas não seria bom chegarem
ao matrimónio sem ter rezado juntos, um pelo outro, pedindo ajuda a Deus para
serem fiéis e generosos, perguntando juntos a Deus que espera deles, e
inclusive consagrando o seu amor diante duma imagem de Maria. Quem os acompanha
na preparação do matrimónio deveria orientá-los para que saibam viver estes
momentos de oração, que lhes podem fazer muito bem. «A liturgia nupcial é um
evento único, que se vive no contexto familiar e social duma festa. Jesus começou
os seus milagres no banquete das bodas de Caná: o vinho bom do milagre do
Senhor, que alegra o nascimento duma nova família, é o vinho novo da Aliança de
Cristo com os homens e mulheres de cada tempo. (...) Frequentemente, o
celebrante tem a oportunidade de se dirigir a uma assembleia formada por
pessoas que participam pouco na vida eclesial ou pertencem a outra confissão
cristã ou comunidade religiosa. Trata-se, pois, duma preciosa ocasião para
anunciar o Evangelho de Cristo».[247]
Acompanhamento nos primeiros anos da
vida matrimonial
217. Temos de reconhecer como um grande valor que
se compreenda que o matrimónio é uma questão de amor: só se podem casar aqueles
que se escolhem livremente e se amam. Apesar disso, se o amor se reduzir a mera
atracção ou a uma vaga afectividade, isto faz com que os cônjuges sofram duma
extraordinária fragilidade quando a afectividade entra em crise ou a atracção
física diminui. Uma vez que estas confusões são frequentes, torna-se
indispensável o acompanhamento dos esposos nos primeiros anos de vida
matrimonial, para enriquecer e aprofundar a decisão consciente e livre de se
pertencerem e amarem até ao fim. Muitas vezes o tempo de noivado não é
suficiente, a decisão de casar-se apressa-se por várias razões e, como se não
bastasse, atrasou a maturação dos jovens. Assim os recém-casados têm de
completar aquele percurso que deveria ter sido feito durante o noivado.
218. Por outro lado, quero insistir que um desafio
da pastoral familiar é ajudar a descobrir que o matrimónio não se pode entender
como algo acabado. A união é real, é irrevogável e foi confirmada e consagrada
pelo sacramento do matrimónio; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se
protagonistas, senhores da sua própria história e criadores dum projecto que
deve ser levado para a frente conjuntamente. O olhar volta-se para o futuro,
que é preciso construir dia-a-dia com a graça de Deus e, por isso mesmo, não se
pretende do cônjuge que seja perfeito. É preciso pôr de lado as ilusões e
aceitá-lo como é: inacabado, chamado a crescer, em caminho. Quando o olhar
sobre o cônjuge é constantemente crítico, isto indica que o matrimónio não foi
assumido também como um projecto a construir juntos, com paciência,
compreensão, tolerância e generosidade. Isto faz com que o amor seja
substituído pouco a pouco por um olhar inquisidor e implacável, pelo controle
dos méritos e direitos de cada um, pelas reclamações, a competição e a
autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes de se apoiarem um ao outro para o
amadurecimento de ambos e para o crescimento da união. Aos novos cônjuges, é
necessário apresentar isto com clareza realista desde o início, de modo que
tomem consciência de que estão apenas a começar. O «sim» que deram um ao outro
é o início dum itinerário, cujo objectivo se propõe superar as circunstâncias
que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A bênção recebida é uma graça
e um impulso para este caminho sempre aberto. Habitualmente ajuda sentar-se a
dialogar para elaborar o seu projecto concreto com os seus objectivos, meios,
detalhes.
219. Lembro-me dum refrão que dizia que a água
estagnada corrompe-se, estraga-se. O mesmo acontece com a vida do amor nos
primeiros anos do matrimónio quando fica estagnada, cessa de mover-se, perde
aquela inquietude sadia que a faz avançar. A dança conduzida com aquele amor
jovem, a dança com aqueles olhos iluminados pela esperança, não deve parar. No
noivado e nos primeiros anos de matrimónio, é a esperança que tem em si a força
do fermento, que faz olhar para além das contradições, conflitos,
contingências, que sempre faz ver mais além; é ela que põe em movimento a ânsia
de se manter num caminho de crescimento. A mesma esperança convida-nos a viver
em cheio o presente, colocando o coração na vida familiar, porque a melhor
forma de preparar e consolidar o futuro é viver bem o presente.
220. O caminho implica passar por diferentes etapas,
que convidam a doar-se com generosidade: do impacto inicial caracterizado por
uma atracção decididamente sensível, passa-se à necessidade do outro sentido
como parte da vida própria. Daqui passa-se ao gosto da pertença mútua, seguido
pela compreensão da vida inteira como um projecto de ambos, pela capacidade de
colocar a felicidade do outro acima das necessidades próprias, e pela alegria
de ver o próprio matrimónio como um bem para a sociedade. O amadurecimento do
amor implica também aprender a «negociar». Não se trata duma atitude
interesseira nem dum jogo de tipo comercial, mas, em última análise, dum
exercício do amor recíproco, já que esta negociação é um entrelaçado de
recíprocas ofertas e renúncias para o bem da família. Em cada nova etapa da vida
matrimonial, é preciso sentar-se e negociar novamente os acordos, de modo que
não haja vencedores nem vencidos, mas ganhem ambos. No lar, as decisões não se
tomam unilateralmente, e ambos compartilham a responsabilidade pela família;
mas cada lar é único e cada síntese conjugal é diferente.
221. Uma das causas que leva a rupturas
matrimoniais é ter expectativas demasiado altas sobre a vida conjugal. Quando
se descobre a realidade mais limitada e problemática do que se sonhara, a
solução não é pensar imediata e irresponsavelmente na separação, mas assumir o
matrimónio como um caminho de amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um
instrumento de Deus para fazer crescer o outro. É possível a mudança, o
crescimento, o desenvolvimento das potencialidades boas que cada um traz dentro
de si. Cada matrimónio é uma «história de salvação», o que supõe partir duma
fragilidade que, graças ao dom de Deus e a uma resposta criativa e generosa,
pouco a pouco vai dando lugar a uma realidade cada vez mais sólida e preciosa.
Talvez a maior missão dum homem e duma mulher no amor seja esta: a de se
tornarem, um ao outro, mais homem e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro
a moldar-se na sua própria identidade. Por isso o amor é artesanal. Quando se
lê a passagem da Bíblia sobre a criação do homem e da mulher, primeiro vê-se
Deus que plasma o homem (cf. Gn 2, 7), depois dá-Se conta de
que falta alguma coisa essencial e plasma a mulher, e então vê a surpresa do
homem: «Ah! Agora sim! Esta sim!» E, em seguida, quase nos parece ouvir aquele
estupendo diálogo no qual o homem e a mulher fazem a mútua descoberta. Com
efeito, mesmo nos momentos difíceis, o outro volta a surpreender e abrem-se
novas portas para se reencontrar, como se fosse a primeira vez; e, em cada nova
etapa, tornam a «plasmar-se» um ao outro. O amor faz com que um espere pelo
outro, exercitando aquela paciência própria de artesão, que herdou de Deus.
222. O acompanhamento deve encorajar os esposos a
serem generosos na comunicação da vida. «De acordo com o carácter pessoal e
humanamente completo do amor conjugal, o justo caminho para o planeamento
familiar pressupõe um diálogo consensual entre os esposos, o respeito dos
tempos e a consideração da dignidade de ambos os membros do casal. Neste
sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae (cf. nn. 10-14) e a Exortação
apostólica Familiaris consortio (cf. nn. 14; 28-35) para se
reavivar a disponibilidade a procriar, contrastando uma mentalidade frequentemente
hostil à vida. (...) A opção da paternidade responsável pressupõe a formação da
consciência que é “o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se
encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et spes, 16). Quanto mais procurarem os
esposos ouvir, na sua consciência, a Deus e os seus mandamentos (cf. Rm 2,
15) e se fizerem acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será
intimamente livre de um arbítrio subjectivo e da acomodação às modas de
comportamento no seu ambiente».[248] Continua
a ser válido o que ficou dito, com clareza, no Concílio Vaticano II: os
cônjuges, «de comum acordo e com esforço comum, formarão rectamente a própria
consciência, tendo em conta o seu bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que
prevêem virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação
e tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade
temporal e da própria Igreja. São os próprios esposos que, em última instância,
devem diante de Deus tomar esta decisão».[249] Por
outro lado, «deve-se promover o uso dos métodos baseados nos “ritmos naturais
da fecundidade” (Humanae vitae, 11). Ponha-se em evidência também que
“estes métodos respeitam o corpo dos esposos, estimulam a ternura entre eles e
favorecem a educação duma liberdade autêntica” (Catecismo da Igreja Católica, 2370), insistindo sempre que os
filhos são um dom maravilhoso de Deus, uma alegria para os pais e para a
Igreja. Através deles, o Senhor renova o mundo».[250]
Alguns recursos
223. Os Padres sinodais afirmaram que «os primeiros
anos de matrimónio são um período vital e delicado, durante o qual os cônjuges
crescem na consciência dos desafios e do significado do matrimónio. Daí a
necessidade dum acompanhamento pastoral que continue depois da celebração do
sacramento (cf. Familiaris consortio, parte III). Nesta pastoral, tem
grande importância a presença de casais de esposos com experiência. A paróquia
é considerada como o lugar onde casais especializados podem colocar à
disposição dos casais mais jovens a sua ajuda, com o eventual apoio de
associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. Deve-se encorajar os
esposos para uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom dos filhos. É
preciso sublinhar a importância da espiritualidade familiar, da oração e da
participação na Eucaristia dominical, e animar os cônjuges a reunirem-se
regularmente para promoverem o crescimento da vida espiritual e a solidariedade
nas exigências concretas da vida. Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias
celebradas para as famílias, sobretudo no aniversário de matrimónio, foram
citadas como vitais para favorecer a evangelização através da família».[251]
224. Este caminho é uma questão de tempo. O amor
precisa de tempo disponível e gratuito, colocando outras coisas em segundo
lugar. Faz falta tempo para dialogar, abraçar-se sem pressa, partilhar
projectos, escutar-se, olhar-se nos olhos, apreciar-se, fortalecer a relação.
Umas vezes, o problema é o ritmo frenético da sociedade, ou os horários
impostos pelos compromissos laborais. Outras vezes, o problema é que o tempo
transcorrido em conjunto não tem qualidade; limitam-se a partilhar um espaço
físico, mas sem prestar atenção um ao outro. Os agentes pastorais e os grupos
de famílias deveriam ajudar os casais jovens ou frágeis a aprenderem a
encontrar-se nestes momentos, a parar um diante do outro, e inclusive a
partilhar momentos de silêncio que os obriguem a sentir a presença do cônjuge.
225. Os esposos que têm uma boa experiência de
«treino» nesta linha, podem oferecer os instrumentos práticos que lhes foram
úteis: a programação dos momentos para estar juntos sem nada exigir, os tempos
de recreação com os filhos, as várias maneiras de celebrar coisas importantes,
os espaços de espiritualidade partilhada. Mas podem também ensinar recursos que
ajudam a encher de conteúdo e sentido tais momentos, para se aprender a
comunicar melhor. Isto é da máxima importância quando se apagou a novidade do
noivado. Com efeito, quando não se sabe que fazer com o tempo partilhado, um ou
outro dos cônjuges acabará por se refugiar na tecnologia, inventará outros
compromissos, buscará outros braços, ou escapará duma intimidade incómoda.
226. Aos casais jovens, deve-se animar também a
criar os seus próprios hábitos, que proporcionem uma salutar sensação de
estabilidade e protecção e que se constroem com uma série de rituais diários
compartilhados. É bom dar-se sempre um beijo pela manhã, benzer-se todas as
noites, esperar pelo outro e recebê-lo à chegada, ter alguma saída juntos,
compartilhar as tarefas domésticas. Ao mesmo tempo, porém, é bom vencer a
rotina com a festa, não perder a capacidade de celebrar em família, alegrar-se
e festejar as experiências belas. Precisam de compartilhar a surpresa pelos
dons de Deus e alimentar, juntos, o entusiasmo pela vida. Quando se sabe
celebrar, esta capacidade renova a energia do amor, liberta-o da monotonia e
enche de cor e esperança os hábitos diários.
227. Nós, pastores, devemos animar as famílias a
crescerem na fé. Para isso, é bom incentivar a confissão frequente, a direcção
espiritual, a participação em retiros. Mas há que convidar também a criar
espaços semanais de oração familiar, porque «a família que reza unida permanece
unida». Entretanto, quando visitamos os lares, devemos convidar todos os
membros da família para um momento de oração, a fim de rezar uns pelos outros e
entregar a família nas mãos do Senhor. Ao mesmo tempo, convém incentivar cada
um dos cônjuges a reservar momentos de oração a sós diante de Deus, porque cada
qual tem as suas cruzes secretas. Por que não contar a Deus o que turba o
coração ou pedir-Lhe a força para curar as próprias feridas e pedir as luzes
necessárias para poder cumprir o próprio compromisso? Os Padres sinodais
salientaram também que «a Palavra de Deus é fonte de vida e espiritualidade
para a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-se moldar interiormente
e formar os membros da igreja doméstica, através da leitura orante e eclesial
da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus é não só uma boa nova para a vida
privada das pessoas, mas também um critério de juízo e uma luz para o
discernimento dos vários desafios que têm de enfrentar os cônjuges e as famílias».[252]
228. Pode acontecer que um dos cônjuges não seja
baptizado ou não queira viver os compromissos da fé. Neste caso, o desejo que o
outro tem de viver e crescer como cristão faz com que a indiferença do cônjuge
seja vivida com amargura. Apesar disso, é possível encontrar alguns valores
comuns que se podem partilhar e cultivar com entusiasmo. Seja como for, amar o
cônjuge não crente, fazê-lo feliz, aliviar os seus sofrimentos e partilhar a
vida com ele é um verdadeiro caminho de santificação. Por outro lado, o amor é
um dom de Deus e, onde se derrama, faz sentir a sua força transformadora, por
vezes de maneira misteriosa, a ponto que «o marido não crente é santificado
pela mulher, e a mulher não crente é santificada pelo marido» (1 Cor 7,
14).
229. As paróquias, os movimentos, as escolas e
outras instituições da Igreja podem desenvolver várias mediações para apoiar e
reavivar as famílias. Por exemplo, através de recursos como reuniões de casais
vizinhos ou amigos, breves retiros para casais, conferências de especialistas
sobre problemáticas muito concretas da vida familiar, centros de aconselhamento
conjugal, agentes missionários preparados para falar com os casais acerca das
suas dificuldades e aspirações, consultas sobre diferentes situações familiares
(dependências, infidelidade, violência familiar), espaços de espiritualidade,
escolas de formação para pais com filhos problemáticos, assembleias familiares.
A secretaria paroquial deveria ter possibilidades de receber com cordialidade e
ocupar-se das urgências familiares, ou encaminhá-las facilmente para quem possa
dar ajuda. Há também um apoio pastoral que se verifica nos grupos de casais,
sejam eles de serviço ou de missão, de oração, de formação ou de mútua ajuda.
Estes grupos proporcionam a ocasião de dar, de viver a abertura da família aos
outros, de partilhar a fé, mas ao mesmo tempo são um meio para fortalecer os
cônjuges e fazê-los crescer.
230. É verdade que muitos casais de esposos
desaparecem da comunidade cristã depois do matrimónio, mas com frequência
desperdiçamos algumas ocasiões em que eles voltam a estar presentes e nas quais
poderíamos tornar a propor-lhes, de forma atraente, o ideal do matrimónio
cristão e aproximá-los a espaços de acompanhamento. Refiro-me, por exemplo, ao
baptismo dum filho, à Primeira Comunhão, ou quando participam num funeral ou no
casamento dum parente ou amigo. Quase todos os casais voltam a aparecer nestas
ocasiões, que se poderiam aproveitar melhor. Outro caminho de abordagem é a
bênção das casas ou a visita duma imagem da Virgem, que dão oportunidade para
desenvolver um diálogo pastoral sobre a situação da família. Pode ser útil
também confiar a casais mais maduros a tarefa de acompanhar casais mais
recentes da sua própria vizinhança, a fim de os visitar, acompanhar nos seus
inícios e propor-lhes um percurso de crescimento. Com o ritmo da vida actual, a
maioria dos casais não estará disposta a reuniões frequentes, mas não podemos
reduzir-nos a uma pastoral de pequenas elites. Hoje, a pastoral familiar deve
ser fundamentalmente missionária, em saída, por aproximação, em vez
de se reduzir a ser uma fábrica de cursos a que poucos assistem.
Iluminar crises, angústias e
dificuldades
231. Deixo aqui uma palavra àqueles que, no amor,
já envelheceram o vinho novo do noivado. Quando o vinho envelhece com esta
experiência do caminho, então aparece, floresce em toda a sua plenitude a
fidelidade dos momentos insignificantes da vida. É a fidelidade da espera e da
paciência. Esta fidelidade, cheia de sacrifícios e alegrias, de certo modo vai
florescendo na idade em que tudo fica «sazonado» e os olhos brilham com a contemplação
dos filhos de seus filhos. Foi assim desde o início, mas agora tornou-se
consciente, assente, amadurecido na surpresa quotidiana da redescoberta dia
após dia, ano após ano. Como ensinava São João da Cruz, «os velhos amantes são
os já treinados e testados». Eles «já não têm aqueles fervores sensíveis nem
aquelas ebulições e chamas externas de ardor, mas saboreiam a suavidade do
vinho de amor bem sedimentado na sua substância (...) assente dentro da alma».[253] Isto
supõe que foram capazes de superar, juntos, as crises e os momentos de
angústia, sem fugir aos desafios nem esconder as dificuldades.
O desafio das crises
232. A história duma família está marcada por
crises de todo o género, que são parte também da sua dramática beleza. É
preciso ajudar a descobrir que uma crise superada não leva a uma relação menos
intensa, mas a melhorar, sedimentar e maturar o vinho da união. Não se vive
juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira
nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica
uma aprendizagem, que permite incrementar a intensidade da vida comum ou, pelo
menos, encontrar um novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não
se resignar de modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável
deterioração, a uma mediocridade que se tem de suportar. Pelo contrário, quando
se assume o matrimónio como uma tarefa que implica também superar obstáculos,
cada crise é sentida como uma ocasião para chegar a beber, juntos, o vinho
melhor. É bom acompanhar os cônjuges, para que sejam capazes de aceitar as
crises que lhes sobrevêm, aceitar o desafio e atribuir-lhes um lugar na vida
familiar. Os casais experientes e formados devem estar dispostos a acompanhar
outros nesta descoberta, para que as crises não os assustem nem os levem a
tomar decisões precipitadas. Cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso
saber escutar, afinando os ouvidos do coração.
233. Perante o desafio duma crise, a reacção
imediata é resistir, pôr-se à defesa por sentir que escapa ao próprio controle,
por mostrar a insuficiência da própria maneira de viver, e isto incomoda. Então
usa-se o método de negar os problemas, escondê-los, relativizar a sua
importância, apostar apenas em que o tempo passe. Mas isto adia a solução e
leva a gastar muitas energias num ocultamento inútil que complicará ainda mais
as coisas. Os vínculos vão-se deteriorando e consolida-se um isolamento que
danifica a intimidade. Numa crise não assumida, o que mais se prejudica é a
comunicação. Assim, pouco a pouco, aquela que era «a pessoa que amo» passa a
ser «quem me acompanha sempre na vida», a seguir apenas «o pai ou a mãe dos
meus filhos», e por fim um estranho.
234. Para se enfrentar uma crise, é necessário
estar presente. É difícil, porque às vezes as pessoas isolam-se para não
mostrar o que sentem, trancam-se num silêncio mesquinho e enganador. Nestes
momentos, é necessário criar espaços para comunicar de coração a coração. O
problema é que se torna ainda mais difícil comunicar num momento de crise, se
nunca se aprendeu a fazê-lo. É uma verdadeira arte que se aprende em tempos
calmos, para se pôr em prática nos tempos borrascosos. É preciso ajudar a
descobrir as causas mais recônditas nos corações dos esposos e enfrentá-las
como um parto que passará e deixará um novo tesouro. Mas, nas respostas às
consultações realizadas, assinalava-se que, em situações difíceis ou críticas,
a maioria não recorre ao acompanhamento pastoral, porque não o sente
compreensivo, próximo, realista, encarnado. Por isso, procuremos agora
debruçar-nos sobre as crises conjugais com um olhar que não ignore a sua carga
de sofrimento e angústia.
235. Há crises comuns que costumam verificar-se em
todos os matrimónios, como a crise ao início quando é preciso aprender a
conciliar as diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise da chegada do
filho, com os seus novos desafios emotivos; a crise de educar uma criança, que
altera os hábitos do casal; a crise da adolescência do filho, que exige muitas
energias, desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre si; a crise do
«ninho vazio», que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no outro; a crise
causada pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais presença,
solicitude e decisões difíceis. São situações exigentes, que provocam temores,
sentimentos de culpa, depressões ou cansaços que podem afectar gravemente a
união.
236. A estas crises, vêm juntar-se as crises
pessoais com incidência no casal, relacionadas com dificuldades económicas,
laborais, afectivas, sociais, espirituais. E acrescentam-se circunstâncias
inesperadas, que podem alterar a vida familiar e exigir um caminho de perdão e
reconciliação. No próprio momento em que procura dar o passo do perdão, cada um
deve questionar-se, com serena humildade, se não criou as condições para expor
o outro a cometer certos erros. Algumas famílias sucumbem, quando os cônjuges
se culpam mutuamente, mas «a experiência mostra que, com uma ajuda adequada e
com a acção de reconciliação da graça, uma grande percentagem de crises
matrimoniais é superada de forma satisfatória. Saber perdoar e sentir-se
perdoado é uma experiência fundamental na vida familiar».[254] «A
fadigosa arte da reconciliação, que requer o apoio da graça, precisa da
generosa colaboração de parentes e amigos, e, eventualmente, até duma ajuda
externa e profissional».[255]
237. Tornou-se frequente que, quando um cônjuge
sente que não recebe o que deseja, ou não se realiza o que sonhava, isso lhe
pareça ser suficiente para pôr termo ao matrimónio. Mas, assim, não haverá
matrimónio que dure. Às vezes, para decidir que tudo acabou, basta uma
desilusão, a ausência num momento em que se precisava do outro, um orgulho
ferido ou um temor indefinido. Há situações próprias da inevitável fragilidade
humana, a que se atribui um peso emotivo demasiado grande. Por exemplo, a
sensação de não ser completamente correspondido, os ciúmes, as diferenças que
podem surgir entre os dois, a atracção suscitada por outras pessoas, os novos
interesses que tendem a apoderar-se do coração, as mudanças físicas do cônjuge
e tantas outras coisas que, mais do que atentados contra o amor, são
oportunidades que convidam a recriá-lo uma vez mais.
238. Nestas circunstâncias, alguns têm a maturidade
necessária para voltar a escolher o outro como companheiro de estrada, para
além dos limites da relação, e aceitam com realismo que não se possam
satisfazer todos os sonhos acalentados. Evitam considerar-se os únicos
mártires, apreciam as pequenas ou limitadas possibilidades que lhes oferece a
vida em família e apostam em fortalecer o vínculo numa construção que exigirá
tempo e esforço. No fundo, reconhecem que cada crise é como um novo «sim» que
torna possível o amor renascer reforçado, transfigurado, amadurecido,
iluminado. A partir duma crise, tem-se a coragem de buscar as raízes profundas
do que está a suceder, de voltar a negociar os acordos fundamentais, de
encontrar um novo equilíbrio e de percorrer juntos uma nova etapa. Com esta
atitude de constante abertura, podem-se enfrentar muitas situações difíceis. Em
todo o caso, reconhecendo que a reconciliação é possível, hoje descobrimos que
«se revela particularmente urgente um ministério dedicado àqueles cuja relação
matrimonial se rompeu».[256]
Velhas feridas
239. É compreensível que, nas famílias, haja muitas
dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a sua maneira de
relacionar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua vida. A própria
infância e a própria adolescência mal vividas são terreno fértil para crises
pessoais que acabam por afectar o matrimónio. Se todos fossem pessoas que
amadureceram normalmente, as crises seriam menos frequentes e menos dolorosas.
A verdade, porém, é que às vezes as pessoas precisam de realizar aos quarenta
anos um amadurecimento atrasado que deveria ter sido alcançado no fim da
adolescência. Às vezes ama-se com um amor egocêntrico próprio da criança,
fixado numa etapa onde a realidade é distorcida e se vive o capricho de que
tudo deva girar à volta do próprio eu. É um amor insaciável, que grita e chora
quando não obtém aquilo que deseja. Outras vezes ama-se com um amor fixado na
fase da adolescência, caracterizado pelo confronto, a crítica ácida, o hábito
de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde os outros devem
preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.
240. Muitos terminam a sua infância sem nunca se
terem sentido amados incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de
confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que
nunca foi curada, reaparece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer
um percurso de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os
cônjuges não funciona bem, antes de tomar decisões importantes, convém
assegurar-se de que cada um tenha feito este caminho de cura da própria
história. Isto exige que se reconheça a necessidade de ser curado, que se peça
com insistência a graça de perdoar e perdoar-se, que se aceite ajuda, se
procurem motivações positivas e se tente sempre de novo. Cada um deve ser muito
sincero consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas
imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que toda a culpa seja do
outro, nunca é possível superar uma crise esperando que apenas o outro mude. É
preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia
pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do conflito.
Acompanhar depois das rupturas e dos
divórcios
241. Nalguns casos, a consideração da própria
dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite firme às pretensões
excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma falta de
respeito que se tornou crónica. É preciso reconhecer que «há casos em que a
separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária,
quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das
feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e
a exploração, pela alienação e a indiferença».[257] Mas
«deve ser considerado um remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs
todas as tentativas razoáveis».[258]
242. Os Padres disseram que «é indispensável um
discernimento particular para acompanhar pastoralmente os separados, os
divorciados, os abandonados. Tem-se de acolher e valorizar sobretudo a angústia
daqueles que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou
então foram obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência.
Não é fácil o perdão pela injustiça sofrida, mas constitui um caminho que a
graça torna possível. Daí a necessidade duma pastoral da reconciliação e da
mediação, inclusive através de centros de escuta especializados que se devem
estabelecer nas dioceses».[259]Ao
mesmo tempo, «as pessoas divorciadas que não voltaram a casar (que são muitas
vezes testemunhas da fidelidade matrimonial) devem ser encorajadas a encontrar
na Eucaristia o alimento que as sustente no seu estado. A comunidade local e os
pastores devem acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando há
filhos ou é grave a sua situação de pobreza».[260] Um
falimento matrimonial torna-se muito mais traumático e doloroso quando há
pobreza, porque se têm muito menos recursos para reordenar a existência. Uma
pessoa pobre, que perde o ambiente protector da família, fica duplamente
exposta ao abandono e a todo o tipo de riscos para a sua integridade.
243. Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa
nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que «não
estão excomungadas» nem são tratadas como tais, porque sempre integram a
comunhão eclesial.[261] Estas
situações «exigem um atento discernimento e um acompanhamento com grande
respeito, evitando qualquer linguagem e atitude que as faça sentir
discriminadas e promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar
delas não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu
testemunho sobre a indissolubilidade do matrimónio; antes, ela exprime
precisamente neste cuidado a sua caridade».[262]
244. Além disso, um grande número de Padres
«sublinhou a necessidade de tornar mais acessíveis, ágeis e possivelmente
gratuitos de todo os procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade».[263] A
lentidão dos processos irrita e cansa as pessoas. Os meus dois documentos recentes
sobre tal matéria[264] levaram
a uma simplificação dos procedimentos para uma eventual declaração de nulidade
matrimonial. Através deles, quis também «evidenciar que o próprio bispo na sua
Igreja, da qual está constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio
dos fiéis a ele confiados».[265] Por
isso, «a aplicação destes documentos é uma grande responsabilidade para os
Ordinários diocesanos, chamados eles próprios a julgar algumas causas e a
garantir, de todos os modos possíveis, um acesso mais fácil dos fiéis à
justiça. Isto implica a preparação de pessoal suficiente, composto por clérigos
e leigos, que se dedique de modo prioritário a este serviço eclesial. Por conseguinte,
será necessário colocar à disposição das pessoas separadas ou dos casais em
crise um serviço de informação, aconselhamento e mediação, ligado à pastoral
familiar, que possa também acolher as pessoas tendo em vista a investigação
preliminar do processo matrimonial (cf.Mitis Iudex, arts. 2-3)».[266]
245. Os Padres sinodais puseram em evidência também
«as consequências da separação ou do divórcio sobre os filhos, em todo o caso
vítimas inocentes da situação».[267] Acima
de todas as considerações que se queiram fazer, eles são a primeira
preocupação, que não deve ser ofuscada por nenhum outro interesse ou objectivo.
Peço aos pais separados: «Nunca, nunca e nunca tomeis o filho como refém!
Separastes-vos devido a muitas dificuldades e motivos, a vida deu-vos esta
provação, mas os filhos não devem carregar o fardo desta separação; que eles
não sejam usados como reféns contra o outro cônjuge, mas cresçam ouvindo a mãe
falar bem do pai, embora já não estejam juntos, e o pai falar bem da mãe».[268] É
irresponsável arruinar a imagem do pai ou da mãe com o objectivo de monopolizar
o afecto do filho, para se vingar ou defender, porque isso afectará a vida
interior daquela criança e provocará feridas difíceis de curar.
246. A Igreja, embora compreenda as situações
conflituosas que devem atravessar os cônjuges, não pode cessar de ser a voz dos
mais frágeis: os filhos, que sofrem muitas vezes em silêncio. Hoje, «não
obstante a nossa sensibilidade aparentemente evoluída e todas as nossas
análises psicológicas refinadas, pergunto-me se não nos entorpecemos também
relativamente às feridas da alma das crianças. (...) Sentimos nós o peso da
montanha que esmaga a alma duma criança, nas famílias onde se maltrata e magoa,
até quebrar o vínculo da fidelidade conjugal?»[269] Tais
experiências molestas não ajudam estas crianças a amadurecer para serem capazes
de compromissos definitivos. Por isso, as comunidades cristãs não devem deixar
sozinhos os pais divorciados que vivem numa nova união. Pelo contrário, devem
integrá-los e acompanhá-los na sua função educativa. Aliás, «como poderíamos
recomendar a estes pais que façam todo o possível por educar os seus filhos na
vida cristã, dando-lhes o exemplo duma fé convicta e praticada, se os
mantivéssemos à distância da vida da comunidade, como se estivessem
excomungados? Devemos proceder de modo que não se acrescentem outros pesos àqueles
que os filhos, nestas situações, já têm que suportar».[270]Ajudar
a curar as feridas dos pais e sustentá-los espiritualmente é bom também para os
filhos, que precisam do rosto familiar da Igreja que os ampare nesta
experiência traumática. O divórcio é um mal, e é muito preocupante o aumento do
número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais
importante relativamente às famílias é reforçar o amor e ajudar a curar as
feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo.
Algumas situações complexas
247. «As questões relacionadas com os matrimónios
mistos requerem uma atenção específica. Os matrimónios entre católicos e outros
baptizados “apresentam, na sua fisionomia particular, numerosos elementos que
convém valorizar e desenvolver quer pelo seu valor intrínseco quer pela ajuda
que podem dar ao movimento ecuménico”. Com tal finalidade, “procure-se (…) uma
colaboração cordial entre o ministro católico e o não católico, desde o momento
da preparação para o matrimónio e para as núpcias” (Familiaris consortio, 78). Quanto à participação
eucarística, recorda-se que “a decisão de admitir ou não a parte não católica
do matrimónio à comunhão eucarística deve ser tomada de acordo com as normas
gerais em vigor na matéria, tanto para os cristãos orientais como para os
outros cristãos, e tendo em conta esta situação particular, isto é, que recebem
o sacramento do matrimónio cristão dois cristãos baptizados. Embora os esposos
de um matrimónio misto tenham em comum os sacramentos do baptismo e do
matrimónio, a partilha da Eucaristia pode apenas ser excepcional e, em todo o
caso, devem-se observar as disposições indicadas” (Pont. Conselho para a
Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a Aplicação dos
Princípios e das Normas sobre o Ecumenismo, 25 de Março de 1993, 159-160)».[271]
248. «Os matrimónios com disparidade de culto
constituem um lugar privilegiado de diálogo inter-religioso (...). Comportam
algumas dificuldades especiais quer em relação à identidade cristã da família
quer quanto à educação religiosa dos filhos. (...) O número das famílias
compostas por uniões conjugais com disparidade de culto, em aumento nos
territórios de missão e também nos países de longa tradição cristã, requer
urgentemente uma atenção pastoral diferenciada segundo os distintos contextos
sociais e culturais. Nalguns países, onde não há liberdade de religião, o
cônjuge cristão é obrigado a mudar de religião para se poder casar, e não pode
celebrar o matrimónio canónico com disparidade de culto nem baptizar os filhos.
Devemos, pois, reafirmar a necessidade de que a liberdade religiosa seja
respeitada em favor de todos».[272] «É
necessário prestar uma atenção particular às pessoas que se unem em tais
matrimónios, e não só no período anterior ao casamento. Enfrentam desafios
peculiares os casais e as famílias, nos quais um dos cônjuges é católico e o
outro não-crente. Em tais casos, é necessário testemunhar a capacidade que tem
o Evangelho de mergulhar nestas situações para tornar possível a educação dos
filhos na fé cristã».[273]
249. «Apresentam dificuldades particulares as
situações que dizem respeito ao acesso ao baptismo de pessoas que estão numa
condição matrimonial complexa. Trata-se de pessoas que contraíram uma união
matrimonial estável, num tempo em que pelo menos uma delas ainda não conhecia a
fé cristã. Os bispos são chamados a exercitar, nestes casos, um discernimento
pastoral cônsono ao bem espiritual delas».[274]
250. A Igreja conforma o seu comportamento ao do
Senhor Jesus que, num amor sem fronteiras, Se ofereceu por todas as pessoas sem
exceção.[275] Com
os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem a experiência de
ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem
para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar
que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser
respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar
«qualquer sinal de discriminação injusta»[276] e
particularmente toda a forma de agressão e violência. Às famílias, por sua vez,
deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a
tendência homossexual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e
realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida.[277]
251. No decurso dos debates sobre a dignidade e a
missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de
equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe
fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas,
entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a
família. É «inaceitável que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e
que os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países
pobres à introdução de leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo
sexo».[278]
252. As famílias monoparentais têm frequentemente
origem a partir de «mães ou pais biológicos que nunca quiseram integrar-se na
vida familiar, situações de violência em que um dos progenitores teve de fugir
com seus filhos, morte de um dos pais, abandono da família por um dos
progenitores e outras situações. Seja qual for a causa, o progenitor que vive
com a criança deve encontrar apoio e conforto nas outras famílias que formam a
comunidade cristã, bem como nos organismos pastorais paroquiais. Além disso,
estas famílias são muitas vezes afligidas pela gravidade dos problemas
económicos, pela incerteza dum trabalho precário, pela dificuldade de manter os
filhos, pela falta duma casa».[279]
Quando a morte crava o seu aguilhão
253. Às vezes, a vida familiar vê-se desafiada pela
morte de um ente querido. Não podemos deixar de oferecer a luz da fé para
acompanhar as famílias que sofrem em tais momentos.[280] Abandonar
uma família atribulada por uma morte seria uma falta de misericórdia, seria
perder uma oportunidade pastoral, e tal atitude pode fechar-nos as portas para
qualquer eventual acção evangelizadora.
254. Compreendo a angústia de quem perdeu uma
pessoa muito amada, um cônjuge com quem se partilhou tantas coisas. O próprio
Jesus Se comoveu e chorou no velório dum amigo (cf. Jo 11,
33.35). E como não compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito,
«é como se o tempo parasse: abre-se um abismo que engole o passado e também o
futuro. (...) E às vezes chega-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas –
compreendo-as – se chateiam com Deus».[281] «A
viuvez é uma experiência particularmente difícil (...). Alguns, quando têm de
viver esta experiência, mostram que sabem fazer convergir as suas energias para
uma dedicação ainda maior aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de
amor uma nova missão educativa. (...) Aqueles que já não podem contar com a
presença de familiares a quem se dedicar e de quem receber carinho e
proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-los com particular atenção e
disponibilidade, sobretudo se vivem em condições de indigência».[282]
255. Em geral, o luto pelos falecidos pode durar
bastante tempo e, quando um pastor quer acompanhar este percurso, deve
adaptar-se às necessidades de cada uma das suas fases. Todo o percurso é
atravessado por interrogativos sobre as causas da morte, o que poderia ter sido
feito, o que uma pessoa vive nos momentos anteriores à morte... Com um caminho
sincero e paciente de oração e libertação interior, volta a paz. No luto, há
momentos em que é preciso ajudar a descobrir que, embora tenhamos perdido um
ente querido, existe ainda uma missão a cumprir e não nos faz bem querer
prolongar a tristeza, como se isto fosse uma homenagem. A pessoa amada não
precisa da nossa tristeza, nem retém lisonjeiro que arruinemos a nossa vida. E
também não é a melhor expressão de amor lembrá-la e nomeá-la a cada momento,
porque significa estar preso a um passado que já não existe, em vez de amar a
pessoa real que agora se encontra no Além. A sua presença física já não é
possível; é verdade que a morte é algo de poderoso, mas «forte como a morte é o
amor» (Ct 8, 6). O amor possui uma intuição que lhe permite escutar
sem sons e ver no invisível. Isto não é imaginar o ente querido como era, mas
poder aceitá-lo transformado, como é agora. Jesus ressuscitado, quando a sua
amiga Maria Madalena quis abraçá-Lo intensamente, pediu-lhe que não O tocasse
(cf.Jo 20, 17) para a levar a um encontro diferente.
256. Consola-nos saber que não se verifica a
destruição total dos que morrem, e a fé assegura-nos que o Ressuscitado nunca
nos abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte «envenene a nossa vida,
torne vãos os nossos afectos e nos faça cair no vazio mais escuro».[283] A
Bíblia fala de um Deus que nos criou por amor, e fez-nos duma maneira tal que a
nossa vida não termina com a morte (cf. Sab 3, 2-3). São Paulo
fala-nos dum encontro com Cristo imediatamente depois da morte: «tenho o desejo
de partir e estar com Cristo» (Flp 1, 23). Com Ele, espera-nos
depois da morte aquilo que Deus preparou para aqueles que O amam (cf. 1Cor 2,
9). De forma muito bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: «Se
a certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade.
Para os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma». Com
efeito, «os nossos entes queridos não desapareceram nas trevas do nada: a
esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e vigorosas de Deus».[284]
257. Uma maneira de comunicarmos com os seres
queridos que morreram é rezar por eles.[285] Diz
a Bíblia que «rezar pelos mortos» é «santo e piedoso» (2Mac 12,
44.45). Rezar por eles «pode não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a
sua intercessão em nosso favor».[286] O
Apocalipse apresenta os mártires a interceder pelos que sofrem injustiça na
terra (cf. 6, 9-11), solidários com este mundo em caminho. Alguns Santos, antes
de morrer, consolavam os seus entes queridos, prometendo-lhes que estariam
perto ajudando-os. Santa Teresa de Lisieux sentia vontade de continuar, do Céu,
a fazer bem.[287] E
São Domingos afirmava que «seria mais útil, depois de morto (...), mais
poderoso para obter graças».[288] São
laços de amor,[289]porque
«de modo nenhum se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com
os irmãos que adormeceram na paz de Cristo; mas (...) é reforçada pela
comunicação dos bens espirituais».[290]
258. Se aceitarmos a morte, podemos preparar-nos
para ela. O caminho é crescer no amor para com aqueles que caminham connosco,
até ao dia em que «não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21,
4). Deste modo preparar-nos-emos também pera reencontrar os nossos entes
queridos que morreram. Assim como Jesus entregou o filho que tinha morrido à
sua mãe (cf. Lc 7, 15), de forma semelhante procederá
connosco. Não gastemos energias, detendo-nos anos e anos no passado. Quanto
melhor vivermos nesta terra, tanto maior felicidade poderemos partilhar com os
nossos entes queridos no céu. Quanto mais conseguirmos amadurecer e crescer,
tanto mais poderemos levar-lhes coisas belas para o banquete celeste.
259. Os pais incidem sempre, para bem ou para mal,
no desenvolvimento moral dos seus filhos. Consequentemente, o melhor é
aceitarem esta responsabilidade inevitável e realizarem-na de modo consciente,
entusiasta, razoável e apropriado. Uma vez que esta função educativa das
famílias é tão importante e se tornou muito complexa, quero deter-me de modo
especial neste ponto.
Onde estão os filhos?
260. A família não pode renunciar a ser lugar de
apoio, acompanhamento, guia, embora tenha de reinventar os seus métodos e encontrar
novos recursos. Precisa de considerar a que realidade quer expor os seus
filhos. Para isso não deve deixar de se interrogar sobre quem se ocupa de lhes
oferecer diversão e entretenimento, quem entra nas suas casas através dos
écrans, a quem os entrega para que os guie nos seus tempos livres. Só os
momentos que passamos com eles, falando com simplicidade e carinho das coisas
importantes, e as possibilidades sadias que criamos para ocuparem o seu tempo
permitirão evitar uma nociva invasão. Sempre faz falta vigilância; o abandono
nunca é sadio. Os pais devem orientar e alertar as crianças e os adolescentes
para saberem enfrentar situações onde possa haver risco, por exemplo, de
agressões, abuso ou consumo de droga.
261. A obsessão, porém, não é educativa; e também
não é possível ter o controle de todas as situações onde um filho poderá chegar
a encontrar-se. Vale aqui o princípio de que «o tempo é superior ao espaço»,[291] isto
é, trata-se mais de gerar processos que de dominar espaços. Se um progenitor
está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os seus
movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o
educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os desafios. O que
interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de
amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento
integral, de cultivo da autêntica autonomia. Só assim este filho terá em si
mesmo os elementos de que precisa para saber defender-se e agir com
inteligência e cautela em circunstâncias difíceis. Assim, a grande questão não
é onde está fisicamente o filho, com quem está neste momento, mas onde se
encontra em sentido existencial, onde está posicionado do ponto de vista das
suas convicções, dos seus objectivos, dos seus desejos, do seu projecto de
vida. Por isso, eis as perguntas que faço aos pais: «Procuramos compreender
“onde” os filhos verdadeiramente estão no seu caminho? Sabemos onde está
realmente a sua alma? E, sobretudo, queremos sabê-lo?»[292]
262. Se a maturidade fosse apenas o desenvolvimento
de algo já contido no código genético, quase nada poderíamos fazer. Mas não é!
A prudência, o recto juízo e a sensatez não dependem de factores puramente
quantitativos de crescimento, mas de toda uma cadeia de elementos que se
sintetizam no íntimo da pessoa; mais exactamente, no centro da sua liberdade. É
inevitável que cada filho nos surpreenda com os projectos que brotam desta
liberdade, que rompa os nossos esquemas; e é bom que isto aconteça. A educação
envolve a tarefa de promover liberdades responsáveis, que, nas encruzilhadas,
saibam optar com sensatez e inteligência; pessoas que compreendam sem reservas
que a sua vida e a vida da sua comunidade estão nas suas mãos e que esta
liberdade é um dom imenso.
A formação ética dos filhos
263. Os pais necessitam também da escola para
assegurar uma instrução de base aos seus filhos, mas a formação moral deles
nunca a podem delegar totalmente. O desenvolvimento afectivo e ético duma
pessoa requer uma experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos
de confiança. Isto constitui uma responsabilidade educativa: com o carinho e o
testemunho, gerar confiança nos filhos, inspirar-lhes um respeito amoroso.
Quando um filho deixa de sentir que é precioso para seus pais, embora
imperfeito, ou deixa de notar que nutrem uma sincera preocupação por ele, isto
cria feridas profundas que causam muitas dificuldades no seu amadurecimento.
Esta ausência, este abandono afectivo provoca um sofrimento mais profundo do
que a eventual correcção recebida por uma má acção.
264. A tarefa dos pais inclui uma educação da
vontade e um desenvolvimento de hábitos bons e tendências afectivas para o bem.
Isto implica que se apresentem como desejáveis os comportamentos a aprender e
as tendências a fazer maturar. Mas trata-se sempre de um processo que vai da
imperfeição para uma plenitude maior. O desejo de se adaptar à sociedade ou o
hábito de renunciar a uma satisfação imediata para se adequar a uma norma e
garantir uma boa convivência já é, em si mesmo, um valor inicial que cria
disposições para se elevar depois rumo a valores mais altos. A formação moral
deveria realizar-se sempre com métodos activos e com um diálogo educativo que
integre a sensibilidade e a linguagem própria dos filhos. Além disso, esta
formação deve ser realizada de forma indutiva, de modo que o filho possa chegar
a descobrir por si mesmo a importância de determinados valores, princípios e
normas, em vez de lhos impor como verdades indiscutíveis.
265. Para agir bem, não basta «julgar de modo
adequado» ou saber com clareza aquilo que se deve fazer, embora isso seja
prioritário. Com efeito, muitas vezes somos incoerentes com as nossas próprias
convicções, mesmo quando são sólidas. Há ocasiões em que, por mais que a
consciência nos dite determinado juízo moral, têm mais poder outras coisas que
nos atraem; isto acontece, se não conseguirmos que o bem individuado pela mente
se radique em nós como uma profunda inclinação afectiva, como um gosto pelo bem
que pese mais do que outros atractivos e nos faça perceber que aquilo que
individuamos como bem é tal também «para nós» aqui e agora. Uma formação ética
válida implica mostrar à pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir bem.
Muitas vezes, hoje, é ineficaz pedir algo que exija esforço e renúncias, sem
mostrar claramente o bem que se poderia alcançar com isso.
266. É necessário maturar hábitos. Os próprios
hábitos adquiridos em criança têm uma função positiva, ajudando a traduzir em
comportamentos externos sadios e estáveis os grandes valores interiorizados.
Uma pessoa pode possuir sentimentos sociáveis e uma boa disposição para com os
outros, mas se não foi habituada durante muito tempo, por insistência dos
adultos, a dizer «por favor», «com licença», «obrigado», a tal boa disposição
interior não se traduzirá facilmente nestas expressões. O fortalecimento da
vontade e a repetição de determinadas acções constroem a conduta moral; mas,
sem a repetição consciente, livre e elogiada de determinados comportamentos
bons, nunca se chega a educar tal conduta. As motivações ou a atracção que
sentimos por um determinado valor, não se tornam uma virtude sem estes actos
adequadamente motivados.
267 A liberdade é algo de grandioso, mas podemos
perdê-la. A educação moral é cultivar a liberdade através de propostas,
motivações, aplicações práticas, estímulos, prémios, exemplos, modelos,
símbolos, reflexões, exortações, revisões do modo de agir e diálogos que ajudem
as pessoas a desenvolver aqueles princípios interiores estáveis que movem a
praticar espontaneamente o bem. A virtude é uma convicção que se transformou
num princípio interior e estável do agir. Assim, a vida virtuosa constrói a
liberdade, fortifica-a e educa-a, evitando que a pessoa se torne escrava de
inclinações compulsivas desumanizadoras e anti-sociais. Com efeito, a própria
dignidade humana exige que cada um «proceda segundo a própria consciência e por
livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro».[293]
O valor da sanção como estímulo
268. De igual modo, é indispensável sensibilizar a
criança e o adolescente para se darem conta de que as más acções têm
consequências. É preciso despertar a capacidade de colocar-se no lugar do outro
e sentir pesar pelo seu sofrimento originado pelo mal que lhe fez. Algumas
sanções – aos comportamentos anti-sociais agressivos – podem parcialmente
cumprir esta finalidade. É importante orientar a criança, com firmeza, para que
peça perdão e repare o mal causado aos outros. Quando o percurso educativo
mostra os seus frutos num amadurecimento da liberdade pessoal, a dado momento o
próprio filho começará a reconhecer, com gratidão, que foi bom para ele crescer
numa família e também suportar as exigências impostas por todo o processo
formativo.
269. A correcção é um estímulo quando, ao mesmo
tempo, se apreciam e reconhecem os esforços e quando o filho descobre que os
seus pais conservam viva uma paciente confiança. Uma criança corrigida com amor
sente-se tida em consideração, percebe que é alguém, dá-se conta de que seus
pais reconhecem as suas potencialidades. Isto não exige que os pais sejam
irrepreensíveis, mas que saibam reconhecer, com humildade, os seus limites e
mostrem o seu esforço pessoal por ser melhores. Mas um testemunho de que os
filhos precisam da parte dos pais, é que estes não se deixem levar pela ira. O
filho, que comete uma má acção, deve ser corrigido, mas nunca como um inimigo
ou como alguém sobre quem se descarrega a própria agressividade. Além disso, um
adulto deve reconhecer que algumas más acções têm a ver com as fragilidades e
os limites próprios da idade. Por isso, seria nociva uma atitude constantemente
punitiva, porque não ajudaria a notar a diferente gravidade das acções e
provocaria desânimo e exasperação: «Vós, pais, não exaspereis os vossos filhos»
(Ef 6, 4; cf. Col 3, 21).
270. Condição fundamental é que a disciplina não se
transforme numa mutilação do desejo, mas se torne um estímulo para ir sempre
mais além. Como integrar disciplina e dinamismo interior? Como fazer para que a
disciplina seja limite construtivo do caminho que uma criança deve empreender e
não um muro que a aniquile ou uma dimensão da educação que a iniba? É preciso
saber encontrar um equilíbrio entre dois extremos igualmente nocivos: um seria
pretender construir um mundo à medida dos desejos do filho, que cresceria
sentindo-se sujeito de direitos mas não de responsabilidades; o outro extremo
seria levá-lo a viver sem consciência da sua dignidade, da sua identidade
singular e dos seus direitos, torturado pelos deveres e submetido à realização
dos desejos alheios.
Realismo paciente
271. A educação moral implica pedir a uma criança
ou a um jovem apenas aquelas coisas que não representem, para eles, um
sacrifício desproporcionado, exigir-lhes apenas aquela dose de esforço que não
provoque ressentimento ou acções puramente forçadas. O percurso normal é propor
pequenos passos que possam ser compreendidos, aceites e apreciados, e impliquem
uma renúncia proporcionada. Caso contrário, pedindo demasiado, nada se obtém. A
pessoa, logo que puder livrar-se da autoridade, provavelmente deixará de
praticar o bem.
272. Por vezes, a formação ética provoca desprezo
devido a experiências de abandono, desilusão, carência afectiva, ou a uma má
imagem dos pais. Projectam-se sobre os valores éticos as imagens distorcidas
das figuras do pai e da mãe ou as fraquezas dos adultos. Por isso, é preciso
ajudar os adolescentes a porem em prática a analogia: os valores são cumpridos
perfeitamente por algumas pessoas muito exemplares, mas também se realizam de
forma imperfeita e em diferentes graus. E uma vez que as resistências dos
jovens estão muito ligadas a experiências negativas, é preciso ao mesmo tempo
ajudá-los a percorrer um itinerário de cura deste mundo interior ferido, para
poderem ter acesso à compreensão e à reconciliação com as pessoas e com a
sociedade.
273. Quando se propõe os valores, é preciso fazê-lo
pouco a pouco, avançar de maneira diferente segundo a idade e as possibilidades
concretas das pessoas, sem pretender aplicar metodologias rígidas e imutáveis.
A psicologia e as ciências da educação, com suas valiosas contribuições,
mostram que é necessário um processo gradual para se conseguir mudanças de
comportamento e também que a liberdade precisa de ser orientada e estimulada,
porque, abandonando-a a si mesma, não se garante a sua maturação. A liberdade
efectiva, real, é limitada e condicionada. Não é uma pura capacidade de
escolher o bem, com total espontaneidade. Nem sempre se faz uma distinção
adequada entre acto «voluntário» e acto «livre». Uma pessoa pode querer algo de
mal com uma grande força de vontade, mas por causa duma paixão irresistível ou
duma educação deficiente. Neste caso, a sua decisão é fortemente voluntária,
não contradiz a inclinação da sua vontade, mas não é livre, porque lhe resulta
quase impossível não escolher aquele mal. É o que acontece com um dependente
compulsivo da droga: quando a quer, fá-lo com todas as suas forças, mas está
tão condicionado que, na hora, não é capaz de tomar outra decisão. Portanto, a
sua decisão é voluntária, mas não livre. Não tem sentido «deixá-lo escolher
livremente», porque, de facto, não pode escolher, e expô-lo à droga só aumenta
a dependência. Precisa da ajuda dos outros e de um percurso educativo.
A vida familiar como contexto educativo
274. A família é a primeira escola dos valores
humanos, onde se aprende o bom uso da liberdade. Há inclinações maturadas na
infância, que impregnam o íntimo duma pessoa e permanecem toda a vida como uma
inclinação favorável a um valor ou como uma rejeição espontânea de certos
comportamentos. Muitas pessoas actuam a vida inteira duma determinada forma,
porque consideram válida tal forma de agir, que assimilaram desde a infância,
como que por osmose: «Fui ensinado assim»; «isto é o que me inculcaram». No
âmbito familiar, pode-se aprender também a discernir, criticamente, as
mensagens dos vários meios de comunicação. Muitas vezes, infelizmente, alguns
programas televisivos ou algumas formas de publicidade incidem negativamente e
enfraquecem valores recebidos na vida familiar.
275. Na época actual, em que reina a ansiedade e a
pressa tecnológica, uma tarefa importantíssima das famílias é educar para a
capacidade de esperar. Não se trata de proibir as crianças de jogarem com os
dispositivos electrónicos, mas de encontrar a forma de gerar nelas a capacidade
de diferenciarem as diversas lógicas e não aplicarem a velocidade digital a
todas as áreas da vida. O adiamento não é negar o desejo, mas retardar a sua
satisfação. Quando as crianças ou os adolescentes não são educados para aceitar
que algumas coisas devem esperar, tornam-se prepotentes, submetem tudo à
satisfação das suas necessidades imediatas e crescem com o vício do «tudo e
súbito». Este é um grande engano que não favorece a liberdade; antes,
intoxica-a. Ao contrário, quando se educa para aprender a adiar algumas coisas
e esperar o momento oportuno, ensina-se o que significa ser senhor de si mesmo,
autónomo face aos seus próprios impulsos. Assim, quando a criança experimenta
que pode cuidar de si mesma, enriquece a própria auto-estima. Ao mesmo tempo,
isto ensina-lhe a respeitar a liberdade dos outros. Naturalmente isto não
significa pretender das crianças que actuem como adultos, mas também não se
deve subestimar a sua capacidade de crescer na maturação duma liberdade
responsável. Numa família sã, esta aprendizagem realiza-se de forma normal
através das exigências da convivência.
276. A família é o âmbito da socialização primária,
porque é o primeiro lugar onde se aprende a relacionar-se com o outro, a
escutar, partilhar, suportar, respeitar, ajudar, conviver. A tarefa educativa
deve levar a sentir o mundo e a sociedade como «ambiente familiar»: é uma
educação para saber «habitar» mais além dos limites da própria casa. No
contexto familiar, ensina-se a recuperar a proximidade, o cuidado, a saudação.
É lá que se rompe o primeiro círculo do egoísmo mortífero, fazendo-nos
reconhecer que vivemos junto de outros, com outros, que são dignos da nossa
atenção, da nossa gentileza, do nosso afecto. Não há vínculo social, sem esta
primeira dimensão quotidiana, quase microscópica: conviver na proximidade,
cruzando-nos nos vários momentos do dia, preocupando-nos com aquilo que
interessa a todos, socorrendo-nos mutuamente nas pequenas coisas do dia-a-dia.
A família tem de inventar, todos os dias, novas formas de promover o
reconhecimento mútuo.
277. No ambiente familiar, é possível também
repensar os hábitos de consumo, cuidando juntos da casa comum: «A família é a
protagonista de uma ecologia integral, porque constitui o sujeito social
primário, que contém no seu interior os dois princípios-base da civilização
humana sobre a terra: o princípio da comunhão e o princípio da fecundidade».[294] De
igual modo, podem ser muito educativos os momentos difíceis e duros da vida
familiar. É o que acontece, por exemplo, quando chega uma doença, porque,
«diante da doença, até em família surgem dificuldades, por causa da debilidade
humana. Mas, em geral, o tempo da enfermidade faz aumentar a força dos vínculos
familiares. (...) Uma educação que negligencie a sensibilidade pela doença
humana, torna árido o coração. E deixa os jovens “anestesiados” em relação ao
sofrimento do próximo, incapazes de se confrontar com o sofrimento e de viver a
experiência do limite».[295]
278. O encontro educativo entre pais e filhos pode
ser facilitado ou prejudicado pelas tecnologias de comunicação e distracção,
cada vez mais sofisticadas. Bem utilizadas, podem ser úteis para pôr em
contacto os membros da família, que vivem longe. Os contactos podem ser
frequentes e ajudar a resolver dificuldades.[296] Mas
deve ficar claro que não substituem nem preenchem a necessidade do diálogo mais
pessoal e profundo que requer o contacto físico ou, pelo menos, a voz da outra
pessoa. Sabemos que, às vezes, estes meios afastam em vez de aproximar, como
quando, na hora da refeição, cada um está concentrado no seu telemóvel ou
quando um dos cônjuges adormece à espera do outro que passa horas entretido com
algum dispositivo electrónico. Na família, também isto deve ser motivo de
diálogo e de acordos que permitam dar prioridade ao encontro dos seus membros
sem cair em proibições insensatas. Em todo o caso, não se podem ignorar os
riscos das novas formas de comunicação para as crianças e os adolescentes,
chegando às vezes a torná-los apáticos, desligados do mundo real. Este «autismo
tecnológico» expõe-nos mais facilmente às manipulações daqueles que procuram
entrar na sua intimidade com interesses egoístas.
279. Mas também não é bom que os pais se tornem
seres omnipotentes para seus filhos, de modo que estes só poderiam confiar
neles, porque assim impedem um processo adequado de socialização e
amadurecimento afectivo. Para tornar eficaz o prolongamento da paternidade e da
maternidade para uma realidade mais ampla, «as comunidades cristãs são chamadas
a dar o seu apoio à missão educativa das famílias»,[297] particularmente
através da catequese de iniciação. Para favorecer uma educação integral,
precisamos de «reavivar a aliança entre a família e a comunidade cristã».[298] O
Sínodo quis destacar a importância das escolas católicas, que «realizam uma
função vital de ajuda aos pais no seu dever de educar os filhos. (...) As
escolas católicas deveriam ser incentivadas na sua missão de ajudar os alunos a
crescer como adultos maduros que podem ver o mundo através do olhar de amor de
Jesus e compreender a vida como uma chamada para servir a Deus».[299] Para
isso «deve-se afirmar resolutamente a liberdade da Igreja ensinar a própria
doutrina e o direito à objecção de consciência por parte dos educadores».[300]
Sim à educação sexual
280. O Concílio Vaticano II apresentava a
necessidade de «uma educação sexual positiva e prudente» oferecida às crianças
e adolescentes «à medida que vão crescendo» e «tendo em conta os progressos da
psicologia, pedagogia e didáctica».[301]Deveríamos
perguntar-nos se as nossas instituições educativas assumiram este desafio. É
difícil pensar na educação sexual num tempo em que se tende a banalizar e
empobrecer a sexualidade. Só se poderia entender no contexto duma educação para
o amor, para a doação mútua; assim, a linguagem da sexualidade não acabaria
tristemente empobrecida, mas esclarecida. É possível cultivar o impulso sexual
num percurso de conhecimento de si mesmo e no desenvolvimento duma capacidade
de autodomínio, que podem ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de
alegria e encontro amoroso.
281. A educação sexual oferece informação, mas sem
esquecer que as crianças e os jovens ainda não alcançaram plena maturidade. A
informação deve chegar no momento apropriado e de forma adequada à fase que
vivem. Não é útil saturá-los de dados, sem o desenvolvimento do sentido crítico
perante uma invasão de propostas, perante a pornografia descontrolada e a
sobrecarga de estímulos que podem mutilar a sexualidade. Os jovens devem poder
dar-se conta de que são bombardeados por mensagens que não procuram o seu bem e
o seu amadurecimento. Faz falta ajudá-los a identificar e procurar as
influências positivas, ao mesmo tempo que se afastam de tudo o que desfigura a
sua capacidade de amar. De igual modo, devemos aceitar que «a necessidade duma
linguagem nova e mais adequada se apresenta especialmente no momento de
introduzir as crianças e os adolescentes no tema da sexualidade».[302]
282. Tem um valor imenso uma educação sexual que
cuide um são pudor, embora hoje alguns considerem que é questão doutros tempos.
É uma defesa natural da pessoa que resguarda a sua interioridade e evita ser
transformada em mero objecto. Sem o pudor, podemos reduzir o afecto e a
sexualidade a obsessões que nos concentram apenas nos órgãos genitais, em
morbosidades que deformam a nossa capacidade de amar e em várias formas de
violência sexual que nos levam a ser tratados de forma desumana ou a prejudicar
os outros.
283. Frequentemente a educação sexual concentra-se
no convite a «proteger-se», procurando um «sexo seguro». Estas expressões transmitem
uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da
sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de que é preciso
proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade narcisista, em vez do
acolhimento. É irresponsável qualquer convite aos adolescentes para que
brinquem com os seus corpos e desejos, como se tivessem a maturidade, os
valores, o compromisso mútuo e os objectivos próprios do matrimónio. Assim, são
levianamente encorajados a utilizar a outra pessoa como objecto de experiências
para compensar carências e grandes limites. É importante, pelo contrário,
ensinar um percurso pelas diversas expressões do amor, o cuidado mútuo, a
ternura respeitosa, a comunicação rica de sentido. Com efeito, tudo isto
prepara para uma doação íntegra e generosa de si mesmo que se expressará,
depois dum compromisso público, na entrega dos corpos. Assim a união sexual no
matrimónio aparecerá como sinal dum compromisso totalizante, enriquecido por
todo o caminho anterior.
284. É preciso não enganar os jovens, levando-os a
confundir os planos: a atracção «cria, por um momento, a ilusão da “união”,
mas, sem amor, tal união deixa os desconhecidos tão separados como antes».[303] A
linguagem do corpo requer uma aprendizagem paciente que permita interpretar e
educar os próprios desejos em ordem a uma entrega de verdade. Quando se pretende
entregar tudo duma vez, é possível que não se entregue nada. Uma coisa é
compreender as fragilidades da idade ou as suas confusões, outra é encorajar os
adolescentes a prolongarem a imaturidade da sua forma de amar. Mas, quem fala
hoje destas coisas? Quem é capaz de tomar os jovens a sério? Quem os ajuda a
preparar-se seriamente para um amor grande e generoso? Não se toma a sério a
educação sexual.
285. A educação sexual deveria incluir também o
respeito e a valorização da diferença, que mostra a cada um a possibilidade de
superar o confinamento nos próprios limites para se abrir à aceitação do outro.
Para além de compreensíveis dificuldades que cada um possa viver, é preciso
ajudar a aceitar o seu corpo como foi criado, porque «uma lógica de domínio
sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio
sobre a criação. (...) Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua
feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro
com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom
específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se
mutuamente».[304] Só
perdendo o medo à diferença é que uma pessoa pode chegar a libertar-se da
imanência do próprio ser e do êxtase por si mesmo. A educação sexual deve
ajudar a aceitar o próprio corpo, de modo que a pessoa não pretenda «cancelar a
diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela».[305]
286. Também não se pode ignorar que, na
configuração do próprio modo de ser – feminino ou masculino –, não confluem
apenas factores biológicos ou genéticos, mas uma multiplicidade de elementos
que têm a ver com o temperamento, a história familiar, a cultura, as
experiências vividas, a formação recebida, as influências de amigos, familiares
e pessoas admiradas, e outras circunstâncias concretas que exigem um esforço de
adaptação. É verdade que não podemos separar o que é masculino e feminino da
obra criada por Deus, que é anterior a todas as nossas decisões e experiências
e na qual existem elementos biológicos que é impossível ignorar. Mas também é
verdade que o masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso
é possível, por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se
de maneira flexível à condição laboral da esposa; o facto de assumir tarefas
domésticas ou alguns aspectos da criação dos filhos não o torna menos masculino
nem significa um falimento, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar
as crianças a aceitar como normais estes «intercâmbios» sadios que não tiram
dignidade alguma à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino
ou do feminino, e não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade
encarnada nas condições reais do matrimónio. Tal rigidez, por seu lado, pode
impedir o desenvolvimento das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto
de considerar pouco masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino
desempenhar alguma tarefa de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns
lugares, certas ideias inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade
e a mutilar o autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das
suas potencialidades.
Transmitir a fé
287. A educação dos filhos deve estar marcada por
um percurso de transmissão da fé, que se vê dificultado pelo estilo de vida
actual, pelos horários de trabalho, pela complexidade do mundo actual, onde
muitos têm um ritmo frenético para poder sobreviver.[306] Apesar
disso, a família deve continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as razões
e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo. Isto começa no baptismo, onde –
como dizia Santo Agostinho – as mães que levam os seus filhos «cooperam no
parto santo».[307] Depois
tem início o percurso de crescimento desta vida nova. A fé é dom de Deus,
recebido no baptismo, e não o resultado duma acção humana; mas os pais são
instrumentos de Deus para a sua maturação e desenvolvimento. Por isso, «é
bonito quando as mães ensinam os filhos pequenos a enviar um beijo a Jesus ou a
Nossa Senhora. Quanta ternura há nisto! Naquele momento, o coração das crianças
transforma-se em lugar de oração».[308] A
transmissão da fé pressupõe que os pais vivam a experiência real de confiar em
Deus, de O procurar, de precisar d’Ele, porque só assim «cada geração contará à
seguinte o louvor das obras [de Deus] e todos proclamarão as [Suas] proezas» (Sl 145/144,
4) e «o pai dará a conhecer aos seus filhos a [Sua] fidelidade» (Is 38,
19). Isto requer que imploremos a acção de Deus nos corações, aonde não podemos
chegar. O grão de mostarda, semente tão pequenina, transforma-se num grande
arbusto (cf. Mt 13, 31-32), e, deste modo, reconhecemos a
desproporção entre a acção e o seu efeito. Sabemos, assim, que não somos
proprietários do dom, mas seus solícitos administradores. Entretanto o nosso
esforço criativo é uma oferta que nos permite colaborar com a iniciativa
divina. Por isso, «tenha-se o cuidado de valorizar os casais, as mães e os
pais, como sujeitos activos da catequese (...). De grande ajuda é a catequese
familiar, enquanto método eficaz para formar os pais jovens e torná-los
conscientes da sua missão como evangelizadores da sua própria família».[309]
288. A educação na fé sabe adaptar-se a cada filho,
porque os recursos aprendidos ou as receitas às vezes não funcionam. As
crianças precisam de símbolos, gestos, narrações. Os adolescentes habitualmente
entram em crise com a autoridade e com as normas, pelo que é conveniente
estimular as suas experiências pessoais de fé e oferecer-lhes testemunhos
luminosos que se imponham simplesmente pela sua beleza. Os pais, que querem
acompanhar a fé dos seus filhos, estão atentos às suas mudanças, porque sabem
que a experiência espiritual não se impõe, mas propõe-se à sua liberdade. É
fundamental que os filhos vejam de maneira concreta que, para os seus pais, a
oração é realmente importante. Por isso, os momentos de oração em família e as
expressões da piedade popular podem ter mais força evangelizadora do que todas
as catequeses e todos os discursos. Quero exprimir a minha gratidão de forma
especial a todas as mães que rezam incessantemente, como fazia Santa Mónica,
pelos filhos que se afastaram de Cristo.
289. O exercício de transmitir aos filhos a fé, no
sentido de facilitar a sua expressão e crescimento, permite que a família se
torne evangelizadora e, espontaneamente, comece a transmiti-la a todos os que
se aproximam dela e mesmo fora do próprio ambiente familiar. Os filhos que
crescem em famílias missionárias, frequentemente tornam-se missionários, se os
pais sabem viver esta tarefa duma maneira tal que os outros os sintam vizinhos
e amigos, de tal modo que os filhos cresçam neste estilo de relação com o
mundo, sem renunciar à sua fé nem às suas convicções. Lembremo-nos que o
próprio Jesus comia e bebia com os pecadores (cf. Mc 2,
16; Mt 11, 19), podia deter-se a conversar com a Samaritana
(cf. Jo 4, 7-26) e receber de noite Nicodemos (cf. Jo 3,
1-21), deixava ungir os seus pés por uma mulher prostituta (cf. Lc 7,
36-50) e não hesitava em tocar os doentes (cf. Mc 1, 40-45; 7,
33). E o mesmo faziam os seus apóstolos, que não eram pessoas desprezadoras dos
outros, fechadas em pequenos grupos de eleitos, isoladas da vida do seu povo.
Enquanto as autoridades os perseguiam, eles gozavam da simpatia de todo o povo
(cf. At 2, 47; 4, 21.33; 5, 13).
290. «A família torna-se sujeito da acção pastoral,
através do anúncio explícito do Evangelho e do legado de múltiplas formas de
testemunho, nomeadamente a solidariedade com os pobres, a abertura à
diversidade das pessoas, a salvaguarda da criação, a solidariedade moral e
material para com as outras famílias, especialmente para com as mais
necessitadas, o empenho na promoção do bem comum, inclusive através da
transformação das estruturas sociais injustas, a partir do território onde vive
a família, praticando as obras corporais e espirituais de misericórdia».[310] Isto
deve ser feito no contexto da convicção mais preciosa dos cristãos: o amor do
Pai que nos sustenta e faz crescer, manifestado no dom total de Jesus Cristo,
vivo no meio de nós, que nos torna capazes de enfrentar, unidos, todas as
tempestades e todas as etapas da vida. E, no coração de cada família, deve
ressoar também o querigma, a tempo e fora de tempo, para iluminar o caminho.
Todos deveríamos poder dizer, a partir da vivência nas nossas famílias: «Nós
conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1Jo 4, 16).
Só a partir desta experiência é que a pastoral familiar poderá conseguir que as
famílias sejam simultaneamente igrejas domésticas e fermento evangelizador na
sociedade.
291. Os Padres sinodais afirmaram que, embora a
Igreja reconheça que toda a ruptura do vínculo matrimonial «é contra a vontade
de Deus, está consciente também da fragilidade de muitos dos seus filhos».[311] Iluminada
pelo olhar de Cristo, a Igreja «dirige-se com amor àqueles que participam na
sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também actua nas
suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro
e estar ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham».[312] Aliás
esta atitude vê-se corroborada no contexto de um Ano Jubilar dedicado à
misericórdia. Embora não cesse jamais de propor a perfeição e convidar a uma
resposta mais plena a Deus, «a Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude,
os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e extraviado, dando-lhes
de novo confiança e esperança, como a luz do farol dum porto ou duma tocha
acesa no meio do povo para iluminar aqueles que perderam a rota ou estão no
meio da tempestade».[313] Não
esqueçamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital
de campanha.
292. O matrimónio cristão, reflexo da união entre
Cristo e a sua Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma
mulher, que se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se
pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo
sacramento que lhes confere a graça para se constituírem como igreja doméstica
e serem fermento de vida nova para a sociedade. Algumas formas de união
contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de
forma parcial e analógica. Os Padres sinodais afirmaram que a Igreja não deixa
de valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não correspondem
ou já não correspondem à sua doutrina sobre o matrimónio.[314]
A gradualidade na pastoral
293. Os Padres consideraram também a situação
particular de um matrimónio apenas civil ou mesmo, ressalvadas as distâncias,
da mera convivência: «quando a união atinge uma notável estabilidade através
dum vínculo público e se caracteriza por um afecto profundo, responsabilidade
para com a prole, capacidade de superar as provas, pode ser vista como uma
ocasião a acompanhar na sua evolução para o sacramento do matrimónio».[315] Além
disso, é preocupante que hoje muitos jovens não tenham confiança no matrimónio
e convivam adiando indefinidamente o compromisso conjugal, enquanto outros põem
termo ao compromisso assumido e imediatamente instauram um novo. Aqueles «que
fazem parte da Igreja, precisam duma atenção pastoral misericordiosa e
encorajadora».[316] Com
efeito, aos pastores compete não só a promoção do matrimónio cristão, mas
também «o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram
de viver esta realidade», para «entrar em diálogo pastoral com elas a fim de
evidenciar os elementos da sua vida que possam levar a uma maior abertura ao
Evangelho do matrimónio na sua plenitude».[317] No
discernimento pastoral, convém «identificar elementos que possam favorecer a
evangelização e o crescimento humano e espiritual».[318]
294. «Muitas vezes a escolha do matrimónio civil
ou, em diversos casos, da simples convivência não é motivada por preconceitos
ou relutância face à união sacramental, mas por situações culturais ou
contingentes».[319] Nestas
situações, poderão ser valorizados aqueles sinais de amor que refletem de algum
modo o amor de Deus.[320] Sabemos
que «está em contínuo crescimento o número daqueles que, depois de terem vivido
juntos longo tempo, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. Muitas vezes,
escolhe-se a simples convivência por causa da mentalidade geral contrária às
instituições e aos compromissos definitivos, mas também porque se espera
adquirir maior segurança existencial (emprego e salário fixo). Noutros países,
por último, as uniões de facto são muito numerosas, não só pela rejeição dos
valores da família e do matrimónio, mas sobretudo pelo facto de a cerimónia do
casamento ser sentida como um luxo, pelas condições sociais, de modo que a
miséria material impele a viver uniões de facto».[321] Mas
«é preciso enfrentar todas estas situações de forma construtiva, procurando
transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude do matrimónio e da
família à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com paciência
e delicadeza».[322] Foi
o que Jesus fez com a Samaritana (cf. Jo 4, 1-26): dirigiu uma
palavra ao seu desejo de amor verdadeiro, para a libertar de tudo o que
obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria plena do Evangelho.
295. Nesta linha, São João Paulo II propunha a
chamada «lei da gradualidade», ciente de que o ser humano «conhece, ama e
cumpre o bem moral segundo diversas etapas de crescimento».[323] Não
é uma «gradualidade da lei», mas uma gradualidade no exercício prudencial dos
atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar
plenamente as exigências objectivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de
Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem excepção, que se pode viver
com a força da graça, embora cada ser humano «avance gradualmente com a
progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo
e absoluto em toda a vida pessoal e social».[324]
296. O Sínodo referiu-se a diferentes situações de
fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que
pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no
caminho: «Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e
reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante,
é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho
da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de
Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a
caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita».[326] Por
isso, «temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das
diversas situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem
e sofrem por causa da sua condição».[327]
297. Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar
cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial,
para que se sinta objecto duma misericórdia «imerecida, incondicional e gratuita».
Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do
Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a
todos seja qual for a situação em que se encontrem. Obviamente, se alguém
ostenta um pecado objectivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer
impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese
ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa da comunidade (cf. Mt 18,
17). Precisa de voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão.
Mas, mesmo para esta pessoa, pode haver alguma maneira de participar na vida da
comunidade, quer em tarefas sociais, quer em reuniões de oração, quer na forma
que lhe possa sugerir a sua própria iniciativa discernida juntamente com o
pastor. Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas «irregulares», os
Padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu sustento: «Na abordagem
pastoral das pessoas que contraíram matrimónio civil, que são divorciadas
novamente casadas, ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes
a pedagogia divina da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude
do desígnio que Deus tem para elas»,[328] sempre
possível com a força do Espírito Santo.
298. Os divorciados que vivem numa nova união, por
exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser
catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço
para um adequado discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa é uma segunda
união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada,
dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua
situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que
se cairia em novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações em que
«o homem e a mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos
filhos – não se podem separar».[329] Há
também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro
matrimónio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que «contraíram
uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão
subjectivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio,
irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido».[330] Coisa
diferente, porém, é uma nova união que vem dum divórcio recente, com todas as
consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias
inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus
compromissos familiares. Deve ficar claro que este não é o ideal que o
Evangelho propõe para o matrimónio e a família. Os Padres sinodais afirmaram
que o discernimento dos pastores sempre se deve fazer «distinguindo
adequadamente»,[331] com
um olhar que discirna bem as situações.[332] Sabemos
que não existem «receitas simples».[333]
299. Acolho as considerações de muitos Padres
sinodais que quiseram afirmar que «os baptizados que se divorciaram e voltaram
a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as
diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica da
integração é a chave do seu acompanhamento pastoral, para saberem que não só
pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma
experiência feliz e fecunda. São baptizados, são irmãos e irmãs, o Espírito
Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação
pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso,
discernir quais das diferentes formas de exclusão actualmente praticadas em
âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não
só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros
vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida
afectuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta
integração é necessária também para o cuidado e a educação cristã dos seus
filhos, que devem ser considerados o elemento mais importante».[334]
300. Se se tiver em conta a variedade inumerável de
situações concretas, como as que mencionamos antes, é compreensível que se não
devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo
canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a
um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que
deveria reconhecer: uma vez que «o grau de responsabilidade não é igual em
todos os casos»,[335] as
consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os
mesmos.[336] Os
sacerdotes têm o dever de «acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do
discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo. Neste
processo, será útil fazer um exame de consciência, através de momentos de
reflexão e arrependimento. Os divorciados novamente casados deveriam
questionar-se como se comportaram com os seus filhos, quando a união conjugal
entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do
cônjuge abandonado; que consequências têm a nova relação sobre o resto da
família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se
devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão sincera pode reforçar a
confiança na misericórdia de Deus que não é negada a ninguém».[337] Trata-se
dum itinerário de acompanhamento e discernimento que «orienta estes fiéis na
tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o
sacerdote, no foro interno, concorre para a formação dum juízo correto sobre
aquilo que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da
Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na
própria lei não há gradualidade (cf.Familiaris consortio, 34), este discernimento não poderá
jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas
pela Igreja. Para que isto aconteça, devem garantir-se as necessárias condições
de humildade, privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da
vontade de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma».[338] Estas
atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas,
como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente «excepções», ou
de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores.
Quando uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus
desejos acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe
reconhecer a seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que
um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla.
As circunstâncias atenuantes no
discernimento pastoral
301. Para se entender adequadamente por que é
possível e necessário um discernimento especial nalgumas situações chamadas
«irregulares», há uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se
pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma
sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por
isso, já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada
«irregular» vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante.
Os limites não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma
pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em
compreender «os valores inerentes à norma»[339] ou
pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira
diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram
os Padres sinodais, «pode haver factores que limitam a capacidade de decisão».[340] E
São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é
incapaz de exercitar bem alguma das virtudes,[341] pelo
que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta com clareza
a existência de alguma delas, porque a prática exterior dessa virtude está
dificultada: «Diz-se que alguns Santos não têm certas virtudes, enquanto
experimentam dificuldade em pô-las em acto, embora tenham os hábitos de todas
as virtudes».[342]
302. A propósito destes condicionamentos, o Catecismo da Igreja Católica exprime-se de maneira categórica:
«A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até
anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as
afeições desordenadas e outros factores psíquicos ou sociais».[343] E,
noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a
responsabilidade moral, nomeadamente «a imaturidade afectiva, a força de
hábitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos ou
sociais».[344] Por
esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo
sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida.[345] No
contexto destas convicções, considero muito apropriado aquilo que muitos Padres
sinodais quiseram sustentar: «Em determinadas circunstâncias, as pessoas
encontram grandes dificuldades para agir de maneira diferente. (...) O
discernimento pastoral, embora tendo em conta a consciência rectamente formada
das pessoas, deve ocupar-se destas situações. As próprias consequências dos
actos praticados não são necessariamente as mesmas em todos os casos».[346]
303. A partir do reconhecimento do peso dos
condicionamentos concretos, podemos acrescentar que a consciência das pessoas
deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não
realizam objetivamente a nossa conceção do matrimónio. É claro que devemos
incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida, formada e acompanhada
pelo discernimento responsável e sério do pastor, e propor uma confiança cada
vez maior na graça. Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma
situação não corresponde objectivamente à proposta geral do Evangelho, mas
reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a
resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança
moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da
complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal
objectivo. Em todo o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e
deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões
que permitam realizar o ideal de forma mais completa.
As normas e o discernimento
304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o
agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não
basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência
concreta dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo
que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento
pastoral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia
à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No
âmbito da acção, a verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as
aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a
rectidão é idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida por
todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a
indeterminação».[347] É
verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem
transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as
situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por
esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação
particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma
casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem
preservar com particular cuidado.[348]
305. Por isso, um pastor não pode sentir-se
satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares»,
como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos
corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos
da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com
superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas».[349] Na
mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica Internacional: «A
lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras
que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de
inspiração objectiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de
decisão».[350] Por
causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma
pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjectivamente não
seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa
amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso
a ajuda da Igreja.[351] O
discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de
resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja
branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e
desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de
que «um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais
agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus
dias sem enfrentar sérias dificuldades».[352] A
pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar
esta realidade.
306. Em toda e qualquer circunstância, perante quem
tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a
percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos
cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal 5, 14). Não
esqueçamos a promessa feita na Sagrada Escritura: «Acima de tudo, mantende
entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a multidão de pecados» (1
Ped 4, 8); «redime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades,
pela piedade para com os infelizes» (Dn 4, 24); «a água apaga o
fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (Sir 3, 30). O mesmo
ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a
buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos
porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim, quando se nos
proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela
como se fosse uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para
extinguir o incêndio».[353]
A lógica da misericórdia pastoral
307. Para evitar qualquer interpretação
tendenciosa, lembro que, de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o
ideal pleno do matrimónio, o projecto de Deus em toda a sua grandeza: «É
preciso encorajar os jovens baptizados para não hesitarem perante a riqueza que
o sacramento do matrimónio oferece aos seus projectos de amor, com a força do
apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de participar plenamente
na vida da Igreja».[354] A
tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de
propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também uma
falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações
excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor
menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma
pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e
assim evitar as rupturas.
308. Todavia, da nossa consciência do peso das
circunstâncias atenuantes – psicológicas, históricas e mesmo biológicas –
conclui-se que, «sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso
acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento
das pessoas, que se vão construindo dia após dia», dando lugar à «misericórdia
do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível».[355] Compreendo
aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão
alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem
que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que
expressa claramente a sua doutrina objectiva, «não renuncia ao bem possível,
ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada».[356] Os
pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da
Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas
frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio
Evangelho exige que não julguemos nem condenemos (cf. Mt 7,
1; Lc 6, 37). Jesus «espera que renunciemos a procurar aqueles
abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do
drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida
concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida
complica-se sempre maravilhosamente».[357]
309. É providencial que estas reflexões sejam
desenvolvidas no contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia, porque,
também perante as mais diversas situações que afectam a família, «a Igreja tem
a missão de anunciara misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que
por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de
Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos
sem excluir ninguém».[358] Ela
bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta como Pastor de cem ovelhas, não de
noventa e nove; e quer tê-las todas. A partir desta consciência, tornar-se-á
possível que «a todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da
misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós».[359]
310. Não podemos esquecer que «a misericórdia não é
apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus
verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque,
primeiro, foi usada misericórdia para connosco».[360] Não
é uma proposta romântica nem uma resposta débil ao amor de Deus, que sempre
quer promover as pessoas, porque «a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a
misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura
com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo,
nada pode ser desprovido de misericórdia».[361] É
verdade que, às vezes, «agimos como controladores da graça e não como
facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há
lugar para todos com a sua vida fadigosa».[362]
311. O ensino da teologia moral não deveria deixar
de assumir estas considerações, porque, embora seja verdade que é preciso ter
cuidado com a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve
pôr um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores mais altos e
centrais do Evangelho,[363] particularmente
o primado da caridade como resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus. Às
vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus.[364] Pomos
tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real
significado, e esta é a pior maneira de aguar o Evangelho. É verdade, por
exemplo, que a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de
tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a
manifestação mais luminosa da verdade de Deus. Por isso, convém sempre
considerar «inadequada qualquer concepção teológica que, em última instância,
ponha em dúvida a própria omnipotência de Deus e, especialmente, a sua
misericórdia».[365]
312. Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos
impedem de desenvolver uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos
temas mais delicados, situando-nos, antes, no contexto dum discernimento
pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender,
perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta é a lógica que deve
prevalecer na Igreja, para «fazer a experiência de abrir o coração àqueles que
vivem nas mais variadas periferias existenciais».[366] Convido
os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximar-se com confiança para
falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem
sempre encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas
seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a
acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido
os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar
no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para
ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja.
313. O amor assume matizes diferentes, segundo o
estado de vida a que cada um foi chamado. Várias décadas atrás, o Concílio
Vaticano II, a propósito do apostolado dos leigos, punha em realce a
espiritualidade que brota da vida familiar. Dizia que a espiritualidade dos
leigos «deverá assumir características especiais» próprias, nomeadamente a
partir do «estado do matrimónio e da família»,[367] e
que os cuidados familiares não devem ser alheios ao seu estilo de vida
espiritual.[368] Por
isso, vale a pena deter-nos brevemente a descrever algumas características
fundamentais desta espiritualidade específica que se desenrola no dinamismo das
relações da vida familiar.
Espiritualidade da comunhão
sobrenatural
314. Sempre falamos da inabitação de Deus no
coração da pessoa que vive na sua graça. Hoje podemos dizer também que a
Trindade está presente no templo da comunhão matrimonial. Assim como habita nos
louvores do seu povo (cf. Sl 22/21, 4), assim também vive
intimamente no amor conjugal que Lhe dá glória.
315. A presença do Senhor habita na família real e
concreta, com todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários.
Quando se vive em família, é difícil fingir e mentir, não podemos mostrar uma
máscara. Se o amor anima esta autenticidade, o Senhor reina nela com a sua
alegria e a sua paz. A espiritualidade do amor familiar é feita de milhares de
gestos reais e concretos. Deus tem a sua própria habitação nesta variedade de
dons e encontros que fazem maturar a comunhão. Esta dedicação une «o humano e o
divino»,[369] porque
está cheia do amor de Deus. Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma
espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino.
316. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro
caminho de santificação na vida ordinária e de crescimento místico, um meio
para a união íntima com Deus. Com efeito, as exigências fraternas e
comunitárias da vida em família são uma ocasião para abrir cada vez mais o
coração, e isto torna possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor.
Lê-se, na Palavra de Deus, que «quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas» (1
Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou
a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). O meu antecessor, Bento XVI, disse
que «o fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus»[370] e
que, fundamentalmente, o amor é a única luz que «ilumina incessantemente um
mundo às escuras».[371] Somente
«se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição
em nós» (1 Jo 4, 12). Dado que «a pessoa humana tem uma inata e
estrutural dimensão social»[372] e
«a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a
família»,[373] a
espiritualidade encarna-se na comunhão familiar. Por isso, aqueles que têm
desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do
crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve
para os levar às alturas da união mística.
Unidos em oração à luz da Páscoa
317. Se a família consegue concentrar-se em Cristo,
Ele unifica e ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são
vividos em comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar
os piores momentos. Nos dias amargos da família, há uma união com Jesus
abandonado, que pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam pouco a pouco,
«com a graça do Espírito Santo, a sua santidade através da vida matrimonial,
participando também no mistério da cruz de Cristo, que transforma as
dificuldades e os sofrimentos em oferta de amor».[374] Por
outro lado, os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a
sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua
Ressurreição. Os cônjuges moldam, com vários gestos quotidianos, este «espaço
teologal, onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado».[375]
318. A oração em família é um meio privilegiado
para exprimir e reforçar esta fé pascal.[376] Podem-se
encontrar alguns minutos cada dia para estar unidos na presença do Senhor vivo,
dizer-Lhe as coisas que os preocupam, rezar pelas necessidades familiares, orar
por alguém que está a atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar,
dar-Lhe graças pela vida e as coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com
o seu manto de Mãe. Com palavras simples, este momento de oração pode fazer
muito bem à família. As várias expressões da piedade popular são um tesouro de
espiritualidade para muitas famílias. O caminho comunitário de oração atinge o
seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no
contexto do descanso dominical. Jesus bate à porta da família, para partilhar
com ela a Ceia Eucarística (cf. Ap 3, 20). Aqui, os esposos
podem voltar incessantemente a selar a aliança pascal que os uniu e reflecte a
Aliança que Deus selou com a humanidade na Cruz.[377]A
Eucaristia é o sacramento da Nova Aliança, em que se actualiza a acção
redentora de Cristo (cf. Lc 22, 20). Constatamos, assim, os
laços íntimos que existem entre a vida conjugal e a Eucaristia.[378] O
alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver cada dia a aliança
matrimonial como «igreja doméstica».[379]
Espiritualidade do amor exclusivo e
libertador
319. No matrimónio, vive-se também o sentido de
pertencer completamente a uma única pessoa. Os esposos assumem o desafio e o
anseio de envelhecer e gastar-se juntos, e assim reflectem a fidelidade de
Deus. Esta firme decisão, que marca um estilo de vida, é uma «exigência
interior do pacto de amor conjugal»,[380] porque,
«quem não se decide a amar para sempre, é difícil que possa amar deveras um só
dia».[381] Mas
isto não teria significado espiritual, se fosse apenas uma lei vivida com
resignação. É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê (cf. Mt 5,
28). Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova diante de Deus esta
decisão de fidelidade, suceda o que suceder ao longo do dia. E cada um, quando
vai dormir, espera levantar-se para continuar esta aventura, confiando na ajuda
do Senhor. Assim, cada cônjuge é para o outro sinal e instrumento da
proximidade do Senhor, que não nos deixa sozinhos: «Eu estarei sempre convosco,
até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20).
320. Há um ponto em que o amor do casal alcança a
máxima libertação e se torna um espaço de sã autonomia: quando cada um descobre
que o outro não é seu, mas tem um proprietário muito mais importante, o seu
único Senhor. Ninguém pode pretender possuir a intimidade mais pessoal e
secreta da pessoa amada, e só Ele pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo
tempo, o princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda
que o outro satisfaça completamente as suas exigências. É preciso que o caminho
espiritual de cada um – como justamente indicava Dietrich Bonhoeffer – o ajude
a «desiludir-se» do outro,[382] a
deixar de esperar dessa pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de Deus.
Isto exige um despojamento interior. O espaço exclusivo, que cada um dos
cônjuges reserva para a sua relação pessoal com Deus, não só permite curar as
feridas da convivência, mas possibilita também encontrar no amor de Deus o
sentido da própria existência. Temos necessidade de invocar cada dia a acção do
Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude, da
consolação e do estímulo
321. «Os esposos cristãos são cooperadores da graça
e testemunhas da fé um para com o outro, para com os filhos e demais
familiares».[383] Deus
convida-os a gerar e a cuidar. Por isso mesmo, a família «foi desde sempre o
“hospital” mais próximo».[384] Prestemo-nos
cuidados, apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como
parte da nossa espiritualidade familiar. A vida em casal é uma participação na
obra fecunda de Deus, e cada um é para o outro uma permanente provocação do
Espírito. O amor de Deus exprime-se «através das palavras vivas e concretas com
que o homem e a mulher se declaram o seu amor conjugal».[385] Assim,
os dois são entre si reflexos do amor divino, que conforta com a palavra, o
olhar, a ajuda, a carícia, o abraço. Por isso, «querer formar uma família é ter
a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a
coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de
construir um mundo onde ninguém se sinta só».[386]
322. Toda a vida da família é um «pastoreio»
misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha e escreve na vida do outro: «A
nossa carta sois vós, uma carta escrita nos nossos corações (...) não com
tinta, mas com o Espírito do Deus vivo» (2 Cor 3, 2-3). Cada um é
um «pescador de homens» (Lc 5, 10) que, em nome de Jesus, lança as
redes (cf. Lc 5, 5) para os outros, ou um lavrador que
trabalha nesta terra fresca que são os seus entes queridos, incentivando o
melhor deles. A fecundidade matrimonial implica promover, porque «amar uma
pessoa é esperar dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao mesmo tempo,
proporcionar-lhe de alguma forma os meios para satisfazer tal expectativa».[387] Isto
é um culto a Deus, pois foi Ele que semeou muitas coisas boas nos outros, com a
esperança de que as façamos crescer.
323. É uma experiência espiritual profunda
contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele.
Isto exige uma disponibilidade gratuita que permita apreciar a sua dignidade. É
possível estar plenamente presente diante do outro, se uma pessoa se entrega
gratuitamente, esquecendo tudo o que existe em redor. Assim a pessoa amada
merece toda a atenção. Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava
para falar com Ele, fixava nele o seu olhar, olhava com amor (cf. Mc10,
21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois as suas palavras e
gestos eram expressão desta pergunta: «Que queres que te faça?» (Mc 10,
51). Vive-se isto na vida quotidiana da família. Nela, recordamos que a pessoa
que vive connosco merece tudo, pois tem uma dignidade infinita por ser objecto
do amor imenso do Pai. Assim floresce a ternura, capaz de «suscitar no outro a
alegria de sentir-se amado. Exprime-se, de modo particular, no debruçar-se com
delicada atenção sobre os limites do outro, especialmente quando aparecem de
forma evidente».[388]
324. Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar
não só acolhe a vida gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si
para derramar o seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar a sua
felicidade. Esta abertura exprime-se particularmente na hospitalidade,[389] que
a Palavra de Deus encoraja de forma sugestiva: «Não vos esqueçais da
hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos» (Heb 13,
2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos
pobres e abandonados, é «símbolo, testemunho, participação da maternidade da
Igreja».[390] Na
realidade, o amor social, reflexo da Trindade, é o que unifica o sentido
espiritual da família e a sua missão fora de si mesma, porque torna presente o
querigma com todas as suas exigências comunitárias. A família vive a sua
espiritualidade própria, sendo ao mesmo tempo uma igreja doméstica e uma célula
viva para transformar o mundo.[391]
***
325. As palavras do Mestre (cf. Mt 22,
30) e as de São Paulo (cf. 1 Cor 7, 29-31) sobre o matrimónio
estão inseridas – não por acaso – na dimensão última e definitiva da nossa
existência, que precisamos de recuperar. Assim, os esposos poderão reconhecer o
sentido do caminho que estão a percorrer. Com efeito, como recordamos várias
vezes nesta Exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada
duma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua
capacidade de amar. Há um apelo constante que provém da comunhão plena da
Trindade, da união estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade
tão bela que é a família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe
entre os Santos do céu. Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançámos
permite-nos também relativizar o percurso histórico que estamos a fazer como
família, para deixar de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma
pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino
definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em
condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão
para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve
viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar!
Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos
nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e
comunhão que nos foi prometida.
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.
Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Ámen.
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Ámen.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no
Jubileu Extraordinário da Misericórdia, a 19 de Março – solenidade de São José
– do ano 2016, quarto do meu Pontificado.
Franciscus
[1]III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Relatio Synodi (18 de Outubro de 2014), 2.
[3]Francisco, Discurso no encerramento da XIV
Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):L’Osservatore
Romano(ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9; cf. Pont. Comissão
Bíblica, Fé e cultura à luz da Bíblia. Actas da Sessão Plenária de 1979
da Pontifícia Comissão Bíblica (Turim 1981); Conc. Ecum. Vat. II,
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 44; João Paulo II, Carta enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990),
52: AAS 83 (1991), 300; Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
69.117: AAS 105 (2013), 1049.1068-1069.
[4]Francisco, Discurso no Encontro com as Famílias, em Santiago de Cuba (22 de Setembro
de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
24/IX/2015), 14.
[6] Homilia na Eucaristia celebrada em Puebla de
los Ángeles (28 de Janeiro
de 1979), 2: AAS 71 (1979), 184.
[14]Francisco, Discurso ao Congresso dos Estados
Unidos da América (24 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 01/X/2015), 9.
[17]III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Mensagem (18
de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 23/X/2014), 7.
[25]Pont. Conselho para a Família, Carta dos direitos da família (22
de Outubro de 1983), introdução.
[31] Relatio Finalis 2015, 23; cf. Mensagem para o Dia Mundial do
Emigrante e do Refugiado em 17 de Janeiro de 2016 (12 de Setembro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 18-19.
[37]Francisco, Discurso no encerramento da XIV
Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
[39]Conferência Episcopal Mexicana, Que en Cristo Nuestra Paz México
tenga vida digna (15 de Fevereiro de 2009), 67.
[42]Francisco, Catequese (22 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 23/IV/2015), 16.
[43]Idem, Catequese (29 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 30/IV/2015), 16.
[49]Conferência Episcopal da Colômbia, A tiempos difíciles,
colombianos nuevos (13 de Fevereiro de 2003), 3.
[68]Francisco, Catequese (6 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano(ed.
semanal portuguesa de 7/V/2015), 20.
[69]Leão Magno, Epistula Rustico narbonensi episcopo, inquis.
IV: PL 54, 1205A; cf. Incmaro de Reims, Epist. 22: PL 126,
142.
[70]Cf. Pio XII, Carta enc. Mystici Corporis Christi (29 de Junho de 1943): AAS 35
(1943), 202: « Matrimonio enim quo coniuges sibi invicem sunt ministri
gratiae…».
[71]Cf . Código de Direito Canónico, cc. 1116; 1161-1165; Código dos Cânones das Igrejas Orientais, 832; 848-852.
[77]Francisco, Homilia na Santa Missa de encerramento
do VIII Encontro Mundial das Famílias em Filadélfia (27 de Setembro de 2015): L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 08/X/2015), 4.
[81]Cf . Código de Direito Canónico, c. 1055-§ 1: « ad bonum
coniugum atque ad prolis generationem et educationem ordinatum».
[88]Congr. para a Doutrina da Fé, Instr. sobre o respeito da vida humana
nascente e a dignidade da procriação Donum vitae (22 de Fevereiro de 1987), II, 8: AAS 80
(1988), 97.
[97]Pont. Conselho para a Família, Sexualidade humana: verdade e
significado (8 de Dezembro de 1995), 23.
[98]Francisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.
[99]Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
38: AAS 74 (1982), 129.
[100]Cf. Francisco, Discurso à Assembleia diocesana de Roma (14 de Junho de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 18/VI/2015), 6.
[109]Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.
[112]Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.
[113]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
21: AAS 74 (1982), 106.
[115]São Tomás de Aquino entende o amor como « vis unitiva»
( Summa theologiae, I, q. 20, art. 1, ad 3), retomando uma
expressão de Dionísio Pseudo-Areopagita ( De divinis monibus, IV,
12: PG 3, 709).
[118]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
13: AAS 74 (1982), 94.
[119]Francisco, Catequese (2 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 03/IV/2014), 12.
[122]Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, III, 123; cf.
Aristóteles, Ética a Nicómaco, 8, 12 (ed. Bywater, Oxford 1984,
174).
[124]«De sacramento matrimonii», I, 2 in: Idem, Disputationes de
controversiis christianae fidei, III, 5, 3 (ed. Giuliano, Nápoles 1858,
778).
[132]Francisco, Discurso às famílias do mundo inteiro
por ocasião da sua peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105
(2013), 980.
[133]Idem, Angelus (29 de Dezembro de 2013): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014), 12.
[134]Idem, Discurso às famílias do mundo inteiro
por ocasião da sua peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105
(2013), 978.
[137]Conferência Episcopal do Chile, La vida y la familia: regalos de
Dios para cada uno de nosotros (21 de Julho de 2014).
[145]Cf. ibid., II-II, q. 153, art. 2, ad 2: « Abundantia
delectationis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato, non
contrariatur medio virtutis».
[146]João Paulo II, Catequese (22 de Outubro de 1980), 5: Insegnamenti 3/2
(1980), 951; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
26/X/1980), 12.
[148]Idem, Catequese (24 de Setembro de 1980), 4: Insegnamenti 3/2
(1980), 719; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
28/IX/1980), 12.
[149] Catequese (12 de Novembro de 1980), 2: Insegnamenti 3/2
(1980), 1133; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
16/XI/1980), 12.
[153] Catequese (16 de Janeiro de 1980), 1: Insegnamenti 3/1
(1980), 151; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
20/I/1980), 12.
[158] Catequese (18 de Junho de 1980), 5: Insegnamenti 3/1
(1980), 1778; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
29/VI/1980), 18.
[160]Cf. Idem, Catequese (30 de Julho de 1980), 1: Insegnamenti 3/2
(1980), 311; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
03/VIII/1980), 12.
[161]Idem, Catequese (8 de Abril de 1981), 3: Insegnamenti 4/1
(1981), 904; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
12/IV/1981), 12.
[162] Catequese (11 de Agosto de 1982), 4: Insegnamenti 5/3
(1982), 205-206; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 15/VIII/1982), 8.
[166] Catequese (14 de Abril de 1982), 1: Insegnamenti 5/1
(1982), 1176; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
18/IV/1982), 12.
[168]João Paulo II, Catequese (7 de Abril de 1982), 2: Insegnamenti 5/1
(1982), 1127; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
11/IV/1982), 12.
[169]Idem, Catequese (14 de Abril de 1982), 3: Insegnamenti 5/1
(1982), 1177; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
18/IV/1982), 12.
[173]Pont. Conselho para a Família, Família, matrimónio e «uniões de facto» (26 de Julho de 2000), 40.
[174]João Paulo II, Catequese (31 de Outubro de 1984),
6: Insegnamenti 7/2 (1984), 1072; L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 04/XI/1984), 12.
[176]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
14: AAS 74 (1982), 96.
[177]Francisco, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
[179]Idem, Catequese (8 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 09/IV/2015), 16.
[181]«Todos tenham bem presente que a vida humana e a missão de a transmitir
não se limitam a este mundo, nem podem ser medidas ou compreendidas unicamente
em função dele, mas que estão sempre relacionadas com o eterno destino do
homem» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 51).
[182] Carta à Secretária-Geral da Conferência Internacional da ONU
sobre População e Desenvolvimento (18 de Março de 1994):Insegnamenti17/1
(1994), 750-751; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 02/IV/1994), 4.
[183]João Paulo II, Catequese (12 de Março de 1980), 3: Insegnamenti3/1
(1980), 543; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
16/III/1980), 12.
[185]Francisco, Discurso no encontro com as famílias , em Manila (16 de Janeiro de 2015): AAS 107
(2015), 176.
[186]Idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
[187]Idem, Catequese (14 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 15/X/2015), 12.
[188]Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, Carta pastoral Don’t
Mess with Marriage (24 de Novembro de 2015), 11.
[190]João Paulo II, Catequese (12 de Março de 1980), 2: Insegnamenti3/1
(1980), 542; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
16/III/1980), 12.
[191]Cf. Idem, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de 1988),
30-31: AAS 80 (1988), 1726-1729.
[192]Francisco, Catequese (7 de Janeiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 8/I/2015), 12.
[194]Idem, Catequese (28 de Janeiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 29/I/2015), 16.
[197]Francisco, Catequese (4 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 5/II/2015), 16.
[200]V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento
de Aparecida (29 de Junho de 2007), 457.
[203]Francisco, Discurso no encontro com as famílias , em Manila (16 de Janeiro de 2015): AAS 107
(2015), 178.
[205]Cf. Francisco, Catequese (16 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 17/IX/2015), 20.
[206]Idem, Catequese (7 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 08/X/2015), 24.
[209]Francisco, Catequese (18 de Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 19/III/2015), 20.
[210]Idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
[212]Francisco, Catequese (4 de Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 05/III/2015), 16.
[213]Idem, Catequese (11 de Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 12/III/2015), 16.
[215]Idem, Discurso aos participantes no «Fórum
Internacional sobre o Envelhecimento Activo» (5 de Setembro de 1980), 5:Insegnamenti3/2
(1980), 539; L’Osservatore Romano(ed. semanal portuguesa de
21/IX/1980), 14.
[217]Francisco, Catequese (4 de Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 05/III/2015), 16.
[219]Idem, Discurso no Encontro com os Idosos (28 de Setembro de 2014): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 02/X/2014), 8.
[220]Idem, Catequese (18 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 19/II/2015), 20.
[223]JoãoPaulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
18: AAS 74 (1982), 101.
[224]Francisco, Catequese (7 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 08/X/2015), 24.
[239]Conferência Episcopal Italiana. Comissão episcopal para a família e a
vida, Orientamenti pastorali sulla preparazione al matrimonio e alla
famiglia (22 de Outubro de 2012), 1.
[242]João Paulo II, Catequese (27 de Junho de 1984),
4: Insegnamenti 7/1 (1984), 1941; L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 01/VII/1984), 12.
[243]Francisco, Catequese (21 de Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 22/X/2015), 16.
[246]João Paulo II, Catequese (4 de Julho de 1984),
3.6: Insegnamenti 7/2 (1984), 9.10; L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 08/VII/1984), 12.
[257]Francisco, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 25/VI/2015), 20.
[258]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
83: AAS 74 (1982), 184.
[261]Cf. Francisco, Catequese (5 de Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 06-13/VIII/2015), 16.
[264]Cf. Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de Agosto de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. diária italiana de 09/IX/2015), 3-4; Motu proprio Mitis et Misericors Iesus (15 de Agosto de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. diária italiana de 09/IX/2015), 5-6.
[265]Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de Agosto de 2015),
preâmbulo, III: L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de
09/IX/2015), 3.
[268]Francisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.
[269]Idem, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 25/VI/2015), 20.
[270]Idem, Catequese (5 de Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 06-13/VIII/2015), 16.
[278] Relatio Finalis 2015, 76; cf. Congr. para a Doutrina da
Fé, Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre
pessoas homossexuais (3 de Junho de 2003), 4.
[281]Francisco, Catequese (17 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 18/VI/2015), 16.
[283]Francisco, Catequese (17 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 18/VI/2015), 16.
[287]Cf.«Últimos colóquios: “Caderno Amarelo” da Madre Inês» (17 de Julho de
1897): Opere complete (Cidade do Vaticano 1997), 1028. Nesta
linha, é significativo o testemunho das carmelitas de que Santa Teresa prometera
que a sua partida deste mundo havia de ser «como uma chuva de rosas» ( Ibid.,
9 de Junho de 1897: o. c., 991).
[288]Jordão de Saxónia, Libellus de principiis Ordinis predicatorum,
93: Monumenta Historica Sancti Patris Nostri Dominici, XVI (Roma
1935), 69.
[292]Idem, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.
[294]Francisco, Catequese (30 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 01/X/2015), 24.
[295]Idem, Catequese (10 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 11/VI/2015), 16.
[297]Francisco, Catequese (20 de Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 21/V/2015), 20.
[298]Idem, Catequese (9 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 10/IX/2015), 16.
[305]Idem, Catequese (15 de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 16/IV/2015), 20.
[308]Francisco, Catequese (26 de Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 27/VIII/2015), 12.
[325]Cf. Francisco, Catequese (24 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 25/VI/2015), 12.
[326]Idem, Homilia na Eucaristia celebrada com os
novos Cardeais (15 de Fevereiro de 2015): AAS 107 (2015), 257.
[329]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
84: AAS 74 (1982), 186. Nestas situações, muitos, conhecendo e
aceitando a possibilidade de conviver «como irmão e irmã» que a Igreja lhes
oferece, assinalam que, se faltam algumas expressões de intimidade, «não raro
se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole» (Conc. Ecum. Vat.
II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,51).
[330]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
84: AAS 74 (1982), 186.
[333]Bento XVI, Discurso no VII Encontro Mundial das
Famílias, em Milão (2 de Junho de 2012), resposta 5 : Insegnamenti, 8/1
(2012), 691; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
09/VI/2012), 11.
[336]E também não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina
sacramental, dado que o discernimento pode reconhecer que, numa situação
particular, não há culpa grave. Neste caso, aplica-se o que afirmei noutro
documento: cf. Exort. ap.Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
44.47: AAS 105 (2013), 1038-1040.
[339]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
33: AAS 74 (1982), 121.
[344]N. 2352; cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a eutanásia Iura et
bona (5 de Maio de
1980), II: AAS 72 (1980), 546. João Paulo II, ao criticar
algumas leituras da categoria «opção fundamental», reconhecia que «podem, sem
dúvida, verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o ponto de vista
psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do pecador» [Exort.
ap. Reconciliatio et paenitentia (2 de Dezembro de 1984), 17: AAS 77
(1985), 223].
[345]Cf. Pont. Conselho para os Textos Legislativos, Decl. sobre A admissibilidade à Sagrada Comunhão
dos divorciados que voltaram a casar (24 de Junho de 2000), 2.
[348]Referindo-se ao conhecimento geral da norma e ao conhecimento particular
do discernimento prático, São Tomás chega a dizer que, «se existir apenas um
dos dois conhecimentos, é preferível que este seja o conhecimento da realidade
particular porque está mais próximo do agir» [ Sententia libri
Ethicorum, VI, 6 (ed. Leonina, t. 47, 354)].
[349]Francisco, Discurso no encerramento da XIV
Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
[351]Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso,
«aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de
tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor» [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013),
44: AAS 105 (2013), 1038]. E de igual modo assinalo que a
Eucaristia «não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um
alimento para os fracos» [ Ibid., 47: o. c., 1039].
[353] De catechizandis rudibus, I, 14, 22: PL 40,
327; cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 193:AAS 105
(2013), 1101.
[364]Talvez por escrúpulo, oculto por detrás dum grande desejo de fidelidade
à verdade, alguns sacerdotes exigem aos penitentes um propósito de emenda claro
sem sombra alguma, fazendo com que a misericórdia se esfume debaixo da busca
duma justiça supostamente pura. Por isso vale a pena recordar o ensinamento de
São João Paulo II quando afirmou que a previsibilidade duma nova queda «não
prejudica a autenticidade do propósito» [ Carta ao Card. William W.
Baum por ocasião do curso sobre o foro interno, organizado pela Penitenciaria
Apostólica(22 de Março de 1996), 5: Insegnamenti, 19/1 (1996),
589; L’Osservatore Romano(ed. semanal portuguesa de 30/III/1996),
3].
[365]Comissão Teológica Internacional, A esperança de salvação para as
crianças que morrem sem baptismo (19 de Abril de 2007), 2.
[372]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988), 40: AAS 81
(1989), 468.
[375]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Marco de 1996), 42: AAS 88
(1996), 416.
[377]Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
57: AAS 74 (1982), 150.
[378]Não esqueçamos que a Aliança de Deus com o seu povo se exprime como um
desposório (cf. Ez 16, 8.60; Is 62, 5; Os 2,
21-22), e a nova Aliança é apresentada também como um matrimónio (cf. Ap 19,
7; 21, 2; Ef 5, 25).
[380]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
11: AAS 74 (1982), 93.
[381]Idem, Homilia na Eucaristia celebrada para as famílias, em
Córdova/Argentina (8 de Abril de 1987), 4: Insegnamenti 10/1
(1987), 1161-1162; L´Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 08/V/1987), 6.
[384]Francisco, Catequese (10 de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 11/VI/2015), 16.
[385]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
12: AAS 74 (1982), 93.
[386]Francisco, Discurso na Festa das Famílias e
Vigília de Oração, em Filadélfia (26 de Setembro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 08/X/2015), 2.
[389]Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de 1981),
44: AAS 74 (1982), 136.
[391]Sobre os aspectos sociais da família, cf. Pont. Conselho «Justiça e
Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 248-254.
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Witamy u Mamy!!!