1. «LAUDATO SI’, mi’ Signore –
Louvado sejas, meu Senhor», cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso
cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã,
com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus
braços: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos
sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e
verduras».[1]
2. Esta irmã clama contra o
mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que
Deus nela colocou. Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e
dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano
ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na
água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e
maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as
dores do parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn
2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar
permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos.
Nada deste mundo nos é
indiferente
3. Mais de cinquenta anos
atrás, quando o mundo estava oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo
Papa João XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a
guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem
in terris a todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de
boa vontade. Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero
dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii
gaudium, escrevi aos membros da Igreja, a fim de os mobilizar para um processo
de reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo especialmente
entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum.
4. Oito anos depois da Pacem
in terris, em 1971, o Beato Papa Paulo VI referiu-se à problemática ecológica,
apresentando-a como uma crise que é «consequência dramática» da actividade
descontrolada do ser humano: «Por motivo de uma exploração inconsiderada da
natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser,
também ele, vítima dessa degradação».[2] E, dirigindo-se à FAO, falou da
possibilidade duma «catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da
civilização industrial», sublinhando a «necessidade urgente duma mudança
radical no comportamento da humanidade», porque «os progressos científicos mais
extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento
económico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e
moral, voltam-se necessariamente contra o homem».[3]
5. São João Paulo II
debruçou-se, com interesse sempre maior, sobre este tema. Na sua primeira
encíclica, advertiu que o ser humano parece «não dar-se conta de outros
significados do seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente
para os fins de um uso ou consumo imediatos».[4] Mais tarde, convidou a uma
conversão ecológica global.[5] Entretanto fazia notar o pouco empenho que se
põe em «salvaguardar as condições morais de uma autêntica ecologia humana».[6]
A destruição do ambiente humano é um facto muito grave, porque, por um lado,
Deus confiou o mundo ao ser humano e, por outro, a própria vida humana é um dom
que deve ser protegido de várias formas de degradação. Toda a pretensão de
cuidar e melhorar o mundo requer mudanças profundas «nos estilos de vida, nos
modelos de produção e de consumo, nas estruturas consolidadas de poder, que
hoje regem as sociedades».[7] O progresso humano autêntico possui um carácter
moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção
também ao mundo natural e «ter em conta a natureza de cada ser e as ligações
mútuas entre todos, num sistema ordenado».[8] Assim, a capacidade do ser humano
transformar a realidade deve desenvolver-se com base na doação originária das
coisas por parte de Deus.[9]
6. O meu predecessor, Bento
XVI, renovou o convite a «eliminar as causas estruturais das disfunções da
economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de
garantir o respeito do meio ambiente».[10] Lembrou que o mundo não pode ser
analisado concentrando-se apenas sobre um dos seus aspectos, porque «o livro da
natureza é uno e indivisível», incluindo, entre outras coisas, o ambiente, a
vida, a sexualidade, a família, as relações sociais. É que «a degradação da
natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência
humana».[11] O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está
cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável; o próprio
ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas se ficam
a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis
a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se
que «o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não
se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza».[12] Com
paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta
comprometida «onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é
simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o
desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima
de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos».[13]
Unidos por uma preocupação
comum
7. Estas contribuições dos
Papas recolhem a reflexão de inúmeros cientistas, filósofos, teólogos e
organizações sociais que enriqueceram o pensamento da Igreja sobre estas
questões. Mas não podemos ignorar que, também fora da Igreja Católica, noutras
Igrejas e Comunidades cristãs – bem como noutras religiões – se tem
desenvolvido uma profunda preocupação e uma reflexão valiosa sobre estes temas
que a todos nos estão a peito. Apenas para dar um exemplo particularmente
significativo, quero retomar brevemente parte da contribuição do amado Patriarca
Ecuménico Bartolomeu, com quem partilhamos a esperança da plena comunhão
eclesial.
8. O Patriarca Bartolomeu
tem-se referido particularmente à necessidade de cada um se arrepender do
próprio modo de maltratar o planeta, porque «todos, na medida em que causamos
pequenos danos ecológicos», somos chamados a reconhecer «a nossa contribuição –
pequena ou grande – para a desfiguração e destruição do ambiente».[14] Sobre
este ponto, ele pronunciou-se repetidamente, de maneira firme e encorajadora,
convidando-nos a reconhecer os pecados contra a criação: «Quando os seres
humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos
comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática,
desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas
húmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar... tudo isso
é pecado».[15] Porque «um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos
e um pecado contra Deus».[16]
9. Ao mesmo tempo Bartolomeu
chamou a atenção para as raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais,
que nos convidam a encontrar soluções não só na técnica mas também numa mudança
do ser humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas.
Propôs-nos passar do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do
desperdício à capacidade de partilha, numa ascese que «significa aprender a
dar, e não simplesmente renunciar. É um modo de amar, de passar pouco a pouco
do que eu quero àquilo de que o mundo de Deus precisa. É libertação do medo, da
avidez, da dependência».[17] Além disso nós, cristãos, somos chamados a
«aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus
e com o próximo numa escala global. É nossa humilde convicção que o divino e o
humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus,
mesmo no último grão de poeira do nosso planeta».[18]
São Francisco de Assis
10. Não quero prosseguir esta
encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e
inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco
é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia
integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os
que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não
são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos
mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação
generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com
simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a
natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a
preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na
sociedade e a paz interior.
11. O seu testemunho
mostra-nos também que uma ecologia integral requer abertura para categorias que
transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e nos põem em
contacto com a essência do ser humano. Tal como acontece a uma pessoa quando se
enamora por outra, a reacção de Francisco, sempre que olhava o sol, a lua ou os
minúsculos animais, era cantar, envolvendo no seu louvor todas as outras
criaturas. Entrava em comunicação com toda a criação, chegando mesmo a pregar
às flores «convidando-as a louvar o Senhor, como se gozassem do dom da
razão».[19] A sua reacção ultrapassava de longe uma mera avaliação intelectual
ou um cálculo económico, porque, para ele, qualquer criatura era uma irmã,
unida a ele por laços de carinho. Por isso, sentia-se chamado a cuidar de tudo
o que existe. São Boaventura, seu discípulo, contava que ele, «enchendo-se da
maior ternura ao considerar a origem comum de todas as coisas, dava a todas as
criaturas – por mais desprezíveis que parecessem – o doce nome de irmãos e
irmãs».[20] Esta convicção não pode ser desvalorizada como romantismo
irracional, pois influi nas opções que determinam o nosso comportamento. Se nos
aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração
e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na
nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do
consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um
limite aos seus interesses imediatos. Pelo contrário, se nos sentirmos
intimamente unidos a tudo o que existe, então brotarão de modo espontâneo a
sobriedade e a solicitude. A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram
simplesmente um ascetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a
fazer da realidade um mero objecto de uso e domínio.
12. Por outro lado, São
Francisco, fiel à Sagrada Escritura, propõe-nos reconhecer a natureza como um
livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade:
«Na grandeza e na beleza das criaturas, contempla-se, por analogia, o seu
Criador» (Sab 13, 5) e «o que é invisível n’Ele – o seu eterno poder e
divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas
suas obras» (Rm 1, 20). Por isso, Francisco pedia que, no convento, se deixasse
sempre uma parte do horto por cultivar para aí crescerem as ervas silvestres, a
fim de que, quem as admirasse, pudesse elevar o seu pensamento a Deus, autor de
tanta beleza.[21] O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um
mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor.
O meu apelo
13. O urgente desafio de
proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana
na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as
coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de
amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a
capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum. Desejo agradecer,
encorajar e manifestar apreço a quantos, nos mais variados sectores da
actividade humana, estão a trabalhar para garantir a protecção da casa que
partilhamos. Uma especial gratidão é devida àqueles que lutam, com vigor, por
resolver as dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais
pobres do mundo. Os jovens exigem de nós uma mudança; interrogam-se como se
pode pretender construir um futuro melhor, sem pensar na crise do meio ambiente
e nos sofrimentos dos excluídos.
14. Lanço um convite urgente a
renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta.
Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que
vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós.
O movimento ecológico mundial já percorreu um longo e rico caminho, tendo
gerado numerosas agregações de cidadãos que ajudaram na consciencialização.
Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise
ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos,
mas também pelo desinteresse dos outros. As atitudes que dificultam os caminhos
de solução, mesmo entre os crentes, vão da negação do problema à indiferença, à
resignação acomodada ou à confiança cega nas soluções técnicas. Precisamos de
nova solidariedade universal. Como disseram os bispos da África do Sul, «são
necessários os talentos e o envolvimento de todos para reparar o dano causado
pelos humanos sobre a criação de Deus».[22] Todos podemos colaborar, como
instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da sua cultura,
experiência, iniciativas e capacidades.
15. Espero que esta carta
encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer
a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente. Em primeiro
lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da actual crise ecológica,
com o objectivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica
actualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base
concreta ao percurso ético e espiritual seguido. A partir desta panorâmica,
retomarei algumas argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim
de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente. Depois
procurarei chegar às raízes da situação actual, de modo a individuar não apenas
os seus sintomas, mas também as causas mais profundas. Poderemos assim propor
uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o
ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia. À
luz desta reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes
linhas de diálogo e de acção que envolvem seja cada um de nós seja a política
internacional. Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem
necessidade de motivações e dum caminho educativo, proporei algumas linhas de
maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã.
16. Embora cada capítulo tenha
a sua temática própria e uma metodologia específica, o sucessivo retoma por sua
vez, a partir duma nova perspectiva, questões importantes abordadas nos capítulos
anteriores. Isto diz respeito especialmente a alguns eixos que atravessam a
encíclica inteira. Por exemplo: a relação íntima entre os pobres e a
fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado
no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da
tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o
progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a
necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da
política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta dum novo
estilo de vida. Estes temas nunca se dão por encerrados nem se abandonam, mas
são constantemente retomados e enriquecidos.
CAPÍTULO I - O QUE ESTÁ A
ACONTECER À NOSSA CASA
17. As reflexões teológicas ou
filosóficas sobre a situação da humanidade e do mundo podem soar como uma
mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir dum
confronto com o contexto actual no que este tem de inédito para a história da
humanidade. Por isso, antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e
exigências face ao mundo de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos
brevemente a considerar o que está a acontecer à nossa casa comum.
18. A contínua aceleração das
mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos
de vida e trabalho, que alguns, em espanhol, designam por «rapidación». Embora
a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje
lhe impõem as acções humanas contrasta com a lentidão natural da evolução
biológica. A isto vem juntar-se o problema de que os objectivos desta mudança
rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para
um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável,
mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da
qualidade de vida de grande parte da humanidade.
19. Depois dum tempo de
confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da
sociedade está a entrar numa etapa de maior consciencialização. Nota-se uma
crescente sensibilidade relativamente ao meio ambiente e ao cuidado da
natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está a acontecer
ao nosso planeta. Façamos uma resenha, certamente incompleta, das questões que
hoje nos causam inquietação e já não se podem esconder debaixo do tapete. O
objectivo não é recolher informações ou satisfazer a nossa curiosidade, mas
tomar dolorosa consciência, ousar transformar em sofrimento pessoal aquilo que
acontece ao mundo e, assim, reconhecer a contribuição que cada um lhe pode dar.
1. Poluição e mudanças
climáticas
Poluição, resíduos e cultura
do descarte
20. Existem formas de poluição
que afectam diariamente as pessoas. A exposição aos poluentes atmosféricos
produz uma vasta gama de efeitos sobre a saúde, particularmente dos mais
pobres, e provocam milhões de mortes prematuras. Adoecem, por exemplo, por
causa da inalação de elevadas quantidades de fumo produzido pelos combustíveis
utilizados para cozinhar ou aquecer-se. A isto vem juntar-se a poluição que
afecta a todos, causada pelo transporte, pelos fumos da indústria, pelas
descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água,
pelos fertilizantes, insecticidas, fungicidas, pesticidas e agro-tóxicos em
geral. Na realidade a tecnologia, que, ligada à finança, pretende ser a única
solução dos problemas, é incapaz de ver o mistério das múltiplas relações que
existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando
outros.
21. Devemos considerar também
a poluição produzida pelos resíduos, incluindo os perigosos presentes em
variados ambientes. Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de
resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais,
detritos de demolições, resíduos clínicos, electrónicos e industriais, resíduos
altamente tóxicos e radioactivos. A terra, nossa casa, parece transformar-se
cada vez mais num imenso depósito de lixo. Em muitos lugares do planeta, os
idosos recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora vêem submersas
de lixo. Tanto os resíduos industriais como os produtos químicos utilizados nas
cidades e nos campos podem produzir um efeito de bioacumulação nos organismos
dos moradores nas áreas limítrofes, que se verifica mesmo quando é baixo o
nível de presença dum elemento tóxico num lugar. Muitas vezes só se adoptam
medidas quando já se produziram efeitos irreversíveis na saúde das pessoas.
22. Estes problemas estão
intimamente ligados à cultura do descarte, que afecta tanto os seres humanos
excluídos como as coisas que se convertem rapidamente em lixo. Note-se, por
exemplo, como a maior parte do papel produzido se desperdiça sem ser reciclado.
Custa-nos a reconhecer que o funcionamento dos ecossistemas naturais é
exemplar: as plantas sintetizam substâncias nutritivas que alimentam os
herbívoros; estes, por sua vez, alimentam os carnívoros que fornecem
significativas quantidades de resíduos orgânicos, que dão origem a uma nova
geração de vegetais. Ao contrário, o sistema industrial, no final do ciclo de
produção e consumo, não desenvolveu a capacidade de absorver e reutilizar
resíduos e escórias. Ainda não se conseguiu adoptar um modelo circular de
produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que
exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não-renováveis, moderando o
seu consumo, maximizando a eficiência no seu aproveitamento, reutilizando e
reciclando-os. A resolução desta questão seria uma maneira de contrastar a
cultura do descarte que acaba por danificar o planeta inteiro, mas nota-se que
os progressos neste sentido são ainda muito escassos.
O clima como bem comum
23. O clima é um bem comum, um
bem de todos e para todos. A nível global, é um sistema complexo, que tem a ver
com muitas condições essenciais para a vida humana. Há um consenso científico
muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do
sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por
uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda
com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa
atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenómeno particular. A
humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos
de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo
menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam. É verdade que há outros
factores (tais como o vulcanismo, as variações da órbita e do eixo terrestre, o
ciclo solar), mas numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do
aquecimento global das últimas décadas é devida à alta concentração de gases
com efeito de estufa (anidrido carbónico, metano, óxido de azoto, e outros)
emitidos sobretudo por causa da actividade humana. A sua concentração na
atmosfera impede que o calor dos raios solares reflectidos pela terra se dilua
no espaço. Isto é particularmente agravado pelo modelo de desenvolvimento
baseado no uso intensivo de combustíveis fósseis, que está no centro do sistema
energético mundial. E incidiu também a prática crescente de mudar a utilização
do solo, principalmente o desflorestamento para finalidade agrícola.
24. Por sua vez, o aquecimento
influi sobre o ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a
situação e que incidirá sobre a disponibilidade de recursos essenciais como a
água potável, a energia e a produção agrícola das áreas mais quentes e
provocará a extinção de parte da biodiversidade do planeta. O derretimento das
calotas polares e dos glaciares a grande altitude ameaça com uma libertação, de
alto risco, de gás metano, e a decomposição da matéria orgânica congelada
poderia acentuar ainda mais a emissão de anidrido carbónico. Entretanto a perda
das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança
climática. A poluição produzida pelo anidrido carbónico aumenta a acidez dos oceanos
e compromete a cadeia alimentar marinha. Se a tendência actual se mantiver,
este século poderá ser testemunha de mudanças climáticas inauditas e duma
destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para
todos nós. Por exemplo, a subida do nível do mar pode criar situações de
extrema gravidade, se se considera que um quarto da população mundial vive à
beira-mar ou muito perto dele, e a maior parte das megacidades estão situadas
em áreas costeiras.
25. As mudanças climáticas são
um problema global com graves implicações ambientais, sociais, económicas,
distributivas e políticas, constituindo actualmente um dos principais desafios
para a humanidade. Provavelmente os impactos mais sérios recairão, nas próximas
décadas, sobre os países em vias de desenvolvimento. Muitos pobres vivem em
lugares particularmente afectados por fenómenos relacionados com o aquecimento,
e os seus meios de subsistência dependem fortemente das reservas naturais e dos
chamados serviços do ecossistema como a agricultura, a pesca e os recursos
florestais. Não possuem outras disponibilidades económicas nem outros recursos
que lhes permitam adaptar-se aos impactos climáticos ou enfrentar situações
catastróficas, e gozam de reduzido acesso a serviços sociais e de protecção.
Por exemplo, as mudanças climáticas dão origem a migrações de animais e
vegetais que nem sempre conseguem adaptar-se; e isto, por sua vez, afecta os
recursos produtivos dos mais pobres, que são forçados também a emigrar com
grande incerteza quanto ao futuro da sua vida e dos seus filhos. É trágico o
aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental,
que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais,
carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa.
Infelizmente, verifica-se uma indiferença geral perante estas tragédias, que
estão acontecendo agora mesmo em diferentes partes do mundo. A falta de
reacções diante destes dramas dos nossos irmãos e irmãs é um sinal da perda do
sentido de responsabilidade pelos nossos semelhantes, sobre o qual se funda
toda a sociedade civil.
26. Muitos daqueles que detêm
mais recursos e poder económico ou político parecem concentrar-se sobretudo em
mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir
alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam
que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos
actuais de produção e consumo. Por isso, tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento
de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido
carbónico e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por
exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia
renovável. No mundo, é exíguo o nível de acesso a energias limpas e renováveis.
Mas ainda é necessário desenvolver adequadas tecnologias de acumulação.
Entretanto, nalguns países, registaram-se avanços que começam a ser
significativos, embora estejam longe de atingir uma proporção importante. Houve
também alguns investimentos em modalidades de produção e transporte que
consomem menos energia exigindo menor quantidade de matérias-primas, bem como
em modalidades de construção ou restruturação de edifícios para se melhorar a
sua eficiência energética. Mas estas práticas promissoras estão longe de se
tornar omnipresentes.
2. A questão da água
27. Outros indicadores da
situação actual têm a ver com o esgotamento dos recursos naturais. É bem
conhecida a impossibilidade de sustentar o nível actual de consumo dos países
mais desenvolvidos e dos sectores mais ricos da sociedade, onde o hábito de
desperdiçar e jogar fora atinge níveis inauditos. Já se ultrapassaram certos
limites máximos de exploração do planeta, sem termos resolvido o problema da
pobreza.
28. A água potável e limpa
constitui uma questão de primordial importância, porque é indispensável para a
vida humana e para sustentar os ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes
de água doce fornecem os sectores sanitários, agro-pecuários e industriais. A
disponibilidade de água manteve-se relativamente constante durante muito tempo,
mas agora, em muitos lugares, a procura excede a oferta sustentável, com graves
consequências a curto e longo prazo. Grandes cidades, que dependem de
importantes reservas hídricas, sofrem períodos de carência do recurso, que, nos
momentos críticos, nem sempre se administra com uma gestão adequada e com
imparcialidade. A pobreza da água pública verifica-se especialmente na África,
onde grandes sectores da população não têm acesso a água potável segura, ou
sofrem secas que tornam difícil a produção de alimento. Nalguns países, há
regiões com abundância de água, enquanto outras sofrem de grave escassez.
29. Um problema
particularmente sério é o da qualidade da água disponível para os pobres, que
diariamente ceifa muitas vidas. Entre os pobres, são frequentes as doenças
relacionadas com a água, incluindo as causadas por microorganismos e
substâncias químicas. A diarreia e a cólera, devidas a serviços de higiene e
reservas de água inadequados, constituem um factor significativo de sofrimento
e mortalidade infantil. Em muitos lugares, os lençóis freáticos estão ameaçados
pela poluição produzida por algumas actividades extractivas, agrícolas e industriais,
sobretudo em países desprovidos de regulamentação e controles suficientes. Não
pensamos apenas nas descargas provenientes das fábricas; os detergentes e
produtos químicos que a população utiliza em muitas partes do mundo continuam a
ser derramados em rios, lagos e mares.
30. Enquanto a qualidade da
água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para
se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis
do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano
essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das
pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.
Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à
água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua
dignidade inalienável. Esta dívida é parcialmente saldada com maiores
contribuições económicas para prover de água limpa e saneamento as populações
mais pobres. Entretanto nota-se um desperdício de água não só nos países
desenvolvidos, mas também naqueles em vias de desenvolvimento que possuem
grandes reservas. Isto mostra que o problema da água é, em parte, uma questão
educativa e cultural, porque não há consciência da gravidade destes
comportamentos num contexto de grande desigualdade.
31. Uma maior escassez de água
provocará o aumento do custo dos alimentos e de vários produtos que dependem do
seu uso. Alguns estudos assinalaram o risco de sofrer uma aguda escassez de
água dentro de poucas décadas, se não forem tomadas medidas urgentes. Os
impactos ambientais poderiam afectar milhares de milhões de pessoas, sendo
previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme
numa das principais fontes de conflitos deste século.[23]
3. Perda de biodiversidade
32. Os recursos da terra estão
a ser depredados também por causa de formas imediatistas de entender a economia
e a actividade comercial e produtiva. A perda de florestas e bosques implica
simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro,
recursos extremamente importantes não só para a alimentação mas também para a
cura de doenças e vários serviços. As diferentes espécies contêm genes que
podem ser recursos-chave para resolver, no futuro, alguma necessidade humana ou
regular algum problema ambiental.
33. Entretanto não basta
pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais «recursos» exploráveis,
esquecendo que possuem um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem milhares
de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos
filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas
extingue-se por razões que têm a ver com alguma actividade humana. Por nossa
causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência,
nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer.
34. Possivelmente perturba-nos
saber da extinção dum mamífero ou duma ave, pela sua maior visibilidade; mas,
para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos, as
algas, os vermes, os pequenos insectos, os répteis e a variedade inumerável de
microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam
despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o
equilíbrio dum lugar. É verdade que o ser humano deve intervir quando um
geosistema cai em estado crítico, mas hoje o nível de intervenção humana numa
realidade tão complexa como a natureza é tal, que os desastres constantes
causados pelo ser humano provocam uma nova intervenção dele de modo que a
actividade humana torna-se omnipresente, com todos os riscos que isto implica.
Normalmente cria-se um círculo vicioso, no qual a intervenção humana, para
resolver uma dificuldade, muitas vezes ainda agrava mais a situação. Por
exemplo, muitos pássaros e insectos, que desaparecem por causa dos agro-tóxicos
criados pela tecnologia, são úteis para a própria agricultura, e o seu
desaparecimento deverá ser compensado por outra intervenção tecnológica que
possivelmente trará novos efeitos nocivos. São louváveis e, às vezes,
admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos
problemas criados pelo ser humano. Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de
que este nível de intervenção humana, muitas vezes ao serviço da finança e do
consumismo, faz com que esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e
bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o
desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem
limites. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza
insuprível e irrecuperável por outra criada por nós.
35. Quando se analisa o
impacto ambiental de qualquer iniciativa económica, costuma-se olhar para os
seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo
cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou
de grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca relevância. As estradas, os
novos cultivos, as reservas, as barragens e outras construções vão tomando
posse dos habitats e, por vezes, fragmentam-nos de tal maneira que as
populações de animais já não podem migrar nem mover-se livremente, pelo que
algumas espécies correm o risco de extinção. Existem alternativas que, pelo
menos, mitigam o impacto destas obras, como a criação de corredores biológicos,
mas são poucos os países em que se adverte este cuidado e prevenção. Quando se
explora comercialmente algumas espécies, nem sempre se estuda a sua modalidade
de crescimento para evitar a sua diminuição excessiva e consequente
desequilíbrio do ecossistema.
36. O cuidado dos ecossistemas
requer uma perspectiva que se estenda para além do imediato, porque, quando se
busca apenas um ganho económico rápido e fácil, já ninguém se importa realmente
com a sua preservação. Mas o custo dos danos provocados pela negligência
egoísta é muitíssimo maior do que o benefício económico que se possa obter. No
caso da perda ou dano grave dalgumas espécies, fala-se de valores que excedem
todo e qualquer cálculo. Por isso, podemos ser testemunhas mudas de gravíssimas
desigualdades, quando se pretende obter benefícios significativos, fazendo
pagar ao resto da humanidade, presente e futura, os altíssimos custos da
degradação ambiental.
37. Alguns países fizeram
progressos na conservação eficaz de certos lugares e áreas – na terra e nos
oceanos –, proibindo aí toda a intervenção humana que possa modificar a sua
fisionomia ou alterar a sua constituição original. No cuidado da
biodiversidade, os especialistas insistem na necessidade de prestar uma
especial atenção às áreas mais ricas em variedade de espécies, em espécies
endémicas, raras ou com menor grau de efectiva protecção. Há lugares que
requerem um cuidado particular pela sua enorme importância para o ecossistema
mundial, ou que constituem significativas reservas de água assegurando assim
outras formas de vida.
38. Mencionemos, por exemplo,
os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazónia e a bacia
fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância
destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se
pode ignorar. Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma
biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer
completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para
desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas
transformam-se em áridos desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares,
impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os
enormes interesses económicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles,
podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há «propostas de
internacionalização da Amazónia que só servem aos interesses económicos das
corporações internacionais».[24] É louvável a tarefa de organismos internacionais
e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de
forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para que
cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio
ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios
interesses locais ou internacionais.
39. Habitualmente também não
se faz objecto de adequada análise a substituição da flora silvestre por áreas
florestais com árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode afectar
gravemente uma biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se
implantam. Também as zonas húmidas, que são transformadas em terrenos
agrícolas, perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante,
nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento dos ecossistemas constituídos por
manguezais.
40. Os oceanos contêm não só a
maior parte da água do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos
seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos para nós e ameaçados por diversas
causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre grande
parte da população mundial, é afectada pela extracção descontrolada dos
recursos ictíicos, que provoca drásticas diminuições dalgumas espécies. E no
entanto continuam a desenvolver-se modalidades selectivas de pesca, que
descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente ameaçados estão
organismos marinhos que não temos em consideração, como certas formas de
plâncton que constituem um componente muito importante da cadeia alimentar
marinha e de que dependem, em última instância, espécies que se utilizam para a
alimentação humana.
41. Passando aos mares
tropicais e subtropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às
grandes florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de
espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras.
Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontram-se num
estado contínuo de declínio: «Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em
cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»[25] Este fenómeno
deve-se, em grande parte, à poluição que chega ao mar resultante do
desflorestamento, das monoculturas agrícolas, das descargas industriais e de
métodos de pesca destrutivos, nomeadamente os que utilizam cianeto e dinamite.
É agravado pelo aumento da temperatura dos oceanos. Tudo isso nos ajuda a
compreender como qualquer acção sobre a natureza pode ter consequências que não
advertimos à primeira vista e como certas formas de exploração de recursos se
obtêm à custa duma degradação que acaba por chegar até ao fundo dos oceanos.
42. É preciso investir muito
mais na pesquisa para se entender melhor o comportamento dos ecossistemas e
analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer
modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão
interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma,
e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. Cada território detém
uma parte de responsabilidade no cuidado desta família, pelo que deve fazer um
inventário cuidadoso das espécies que alberga a fim de desenvolver programas e
estratégias de protecção, cuidando com particular solicitude das espécies em
vias de extinção.
4 Deterioração da qualidade de
vida humana e degradação social
43. Tendo em conta que o ser
humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz
e, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar
os efeitos da degradação ambiental, do modelo actual de desenvolvimento e da
cultura do descarte sobre a vida das pessoas.
44. Nota-se hoje, por exemplo,
o crescimento desmedido e descontrolado de muitas cidades que se tornaram pouco
saudáveis para viver, devido não só à poluição proveniente de emissões tóxicas
mas também ao caos urbano, aos problemas de transporte e à poluição visiva e
acústica. Muitas cidades são grandes estruturas que não funcionam, gastando
energia e água em excesso. Há bairros que, embora construídos recentemente,
apresentam-se congestionados e desordenados, sem espaços verdes suficientes.
Não é conveniente para os habitantes deste planeta viver cada vez mais
submersos de cimento, asfalto, vidro e metais, privados do contacto físico com
a natureza.
45. Nalguns lugares, rurais e
urbanos, a privatização dos espaços tornou difícil o acesso dos cidadãos a
áreas de especial beleza; noutros, criaram-se áreas residenciais «ecológicas»
postas à disposição só de poucos, procurando-se evitar que outros entrem a
perturbar uma tranquilidade artificial. Muitas vezes encontra-se uma cidade
bela e cheia de espaços verdes e bem cuidados nalgumas áreas «seguras», mas não
em áreas menos visíveis, onde vivem os descartados da sociedade.
46. Entre os componentes
sociais da mudança global, incluem-se os efeitos laborais dalgumas inovações
tecnológicas, a exclusão social, a desigualdade no fornecimento e consumo da
energia e doutros serviços, a fragmentação social, o aumento da violência e o
aparecimento de novas formas de agressividade social, o narcotráfico e o
consumo crescente de drogas entre os mais jovens, a perda de identidade. São
alguns sinais, entre outros, que mostram como o crescimento nos últimos dois
séculos não significou, em todos os seus aspectos, um verdadeiro progresso
integral e uma melhoria da qualidade de vida. Alguns destes sinais são ao mesmo
tempo sintomas duma verdadeira degradação social, duma silenciosa ruptura dos
vínculos de integração e comunhão social.
47. A isto vêm juntar-se as dinâmicas
dos mass-media e do mundo digital, que, quando se tornam omnipresentes, não
favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em
profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do
passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído
dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se
traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não numa
deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da
reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire
com uma mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam
por saturar e confundir. Ao mesmo tempo tendem a substituir as relações reais
com os outros, com todos os desafios que implicam, por um tipo de comunicação
mediada pela internet. Isto permite seleccionar ou eliminar a nosso arbítrio as
relações e, deste modo, frequentemente gera-se um novo tipo de emoções
artificiais, que têm a ver mais com dispositivos e monitores do que com as
pessoas e a natureza. Os meios actuais permitem-nos comunicar e partilhar
conhecimentos e afectos. Mas, às vezes, também nos impedem de tomar contacto
directo com a angústia, a trepidação, a alegria do outro e com a complexidade
da sua experiência pessoal. Por isso, não deveria surpreender-nos o facto de, a
par da oferta sufocante destes produtos, ir crescendo uma profunda e
melancólica insatisfação nas relações interpessoais ou um nocivo isolamento.
5. Desigualdade planetária
48. O ambiente humano e o
ambiente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar adequadamente
a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a
degradação humana e social. De facto, a deterioração do meio ambiente e a da
sociedade afectam de modo especial os mais frágeis do planeta: «Tanto a
experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram
que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as
pessoas mais pobres».[26] Por exemplo, o esgotamento das reservas ictíicas
prejudica especialmente as pessoas que vivem da pesca artesanal e não possuem
qualquer maneira de a substituir, a poluição da água afecta particularmente os
mais pobres que não têm possibilidades de comprar água engarrafada, e a
elevação do nível do mar afecta principalmente as populações costeiras mais
pobres que não têm para onde se transferir. O impacto dos desequilíbrios
actuais manifesta-se também na morte prematura de muitos pobres, nos conflitos
gerados pela falta de recursos e em muitos outros problemas que não têm espaço
suficiente nas agendas mundiais.[27]
49. Gostaria de assinalar que
muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afectam
particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de
milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e económicos
internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se coloquem
como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou
perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com
efeito, na hora da implementação concreta, permanecem frequentemente no último
lugar. Isto deve-se, em parte, ao facto de que muitos profissionais, formadores
de opinião, meios de comunicação e centros de poder estão localizados longe
deles, em áreas urbanas isoladas, sem ter contacto directo com os seus
problemas. Vivem e reflectem a partir da comodidade dum desenvolvimento e duma
qualidade de vida que não está ao alcance da maioria da população mundial. Esta
falta de contacto físico e de encontro, às vezes favorecida pela fragmentação
das nossas cidades, ajuda a cauterizar a consciência e a ignorar parte da
realidade em análises tendenciosas. Isto, às vezes, coexiste com um discurso
«verde». Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira
abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a
justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra
como o clamor dos pobres.
50. Em vez de resolver os
problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor
uma redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países
em vias de desenvolvimento, que condicionam as ajudas económicas a determinadas
políticas de «saúde reprodutiva». Mas, «se é verdade que a desigual
distribuição da população e dos recursos disponíveis cria obstáculos ao
desenvolvimento e ao uso sustentável do ambiente, deve-se reconhecer que o
crescimento demográfico é plenamente compatível com um desenvolvimento integral
e solidário».[28] Culpar o incremento demográfico em vez do consumismo
exacerbado e selectivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas.
Pretende-se, assim, legitimar o modelo distributivo actual, no qual uma minoria
se julga com o direito de consumir numa proporção que seria impossível
generalizar, porque o planeta não poderia sequer conter os resíduos de tal
consumo. Além disso, sabemos que se desperdiça aproximadamente um terço dos
alimentos produzidos, e «a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da
mesa do pobre».[29] Em todo o caso, é verdade que devemos prestar atenção ao
desequilíbrio na distribuição da população pelo território, tanto a nível
nacional como a nível mundial, porque o aumento do consumo levaria a situações
regionais complexas pelas combinações de problemas ligados à poluição
ambiental, ao transporte, ao tratamento de resíduos, à perda de recursos, à
qualidade de vida.
51. A desigualdade não afecta
apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das
relações internacionais. Com efeito, há uma verdadeira «dívida ecológica»,
particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com
consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos
naturais efectuado historicamente por alguns países. As exportações de algumas
matérias-primas para satisfazer os mercados no Norte industrializado produziram
danos locais, como, por exemplo, a contaminação com mercúrio na extracção
minerária do ouro ou com o dióxido de enxofre na do cobre. De modo especial é
preciso calcular o espaço ambiental de todo o planeta usado para depositar
resíduos gasosos que se foram acumulando ao longo de dois séculos e criaram uma
situação que agora afecta todos os países do mundo. O aquecimento causado pelo
enorme consumo de alguns países ricos tem repercussões nos lugares mais pobres
da terra, especialmente na África, onde o aumento da temperatura, juntamente
com a seca, tem efeitos desastrosos no rendimento das cultivações. A isto
acrescentam-se os danos causados pela exportação de resíduos sólidos e líquidos
tóxicos para os países em vias de desenvolvimento e pela actividade poluente de
empresas que fazem nos países menos desenvolvidos aquilo que não podem fazer
nos países que lhes dão o capital: «Constatamos frequentemente que as empresas
que assim procedem são multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é
permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente,
quando cessam as suas actividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e
ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento dalgumas reservas
naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local,
crateras, colinas devastadas, rios poluídos e qualquer obra social que já não
se pode sustentar».[30]
52. A dívida externa dos
países pobres transformou-se num instrumento de controle, mas não se dá o mesmo
com a dívida ecológica. De várias maneiras os povos em vias de desenvolvimento,
onde se encontram as reservas mais importantes da biosfera, continuam a
alimentar o progresso dos países mais ricos à custa do seu presente e do seu
futuro. A terra dos pobres do Sul é rica e pouco contaminada, mas o acesso à
propriedade de bens e recursos para satisfazerem as suas carências vitais
é-lhes vedado por um sistema de relações comerciais e de propriedade
estruturalmente perverso. É necessário que os países desenvolvidos contribuam
para resolver esta dívida, limitando significativamente o consumo de energia
não renovável e fornecendo recursos aos países mais necessitados para promover
políticas e programas de desenvolvimento sustentável. As regiões e os países
mais pobres têm menos possibilidade de adoptar novos modelos de redução do
impacto ambiental, porque não têm a preparação para desenvolver os processos
necessários nem podem cobrir os seus custos. Por isso, deve-se manter
claramente a consciência de que a mudança climática tem responsabilidades
diversificadas e, como disseram os bispos dos Estados Unidos, é oportuno
concentrar-se «especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e
vulneráveis, num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais
poderosos».[31] É preciso revigorar a consciência de que somos uma única
família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que
permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização
da indiferença.
6. A fraqueza das reacções
53. Estas situações provocam
os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com
um lamento que reclama de nós outro rumo. Nunca maltratámos e ferimos a nossa
casa comum como nos últimos dois séculos. Mas somos chamados a tornar-nos os
instrumentos de Deus Pai para que o nosso planeta seja o que Ele sonhou ao
criá-lo e corresponda ao seu projecto de paz, beleza e plenitude. O problema é
que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise e há
necessidade de construir lideranças que tracem caminhos, procurando dar resposta
às necessidades das gerações actuais, todos incluídos, sem prejudicar as
gerações futuras. Torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua
limites invioláveis e assegure a protecção dos ecossistemas, antes que as novas
formas de poder derivadas do paradigma tecno-económico acabem por arrasá-los
não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça.
54. Preocupa a fraqueza da
reacção política internacional. A submissão da política à tecnologia e à
finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o meio ambiente.
Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse
económico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para
não ver afectados os seus projectos. Nesta linha, o Documento de Aparecida pede
que, «nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses
de grupos económicos que arrasam irracionalmente as fontes da vida».[32] A
aliança entre economia e tecnologia acaba por deixar de fora tudo o que não faz
parte dos seus interesses imediatos. Deste modo, poder-se-á esperar apenas
algumas proclamações superficiais, acções filantrópicas isoladas e ainda
esforços por mostrar sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto, na
realidade, qualquer tentativa das organizações sociais para alterar as coisas
será vista como um distúrbio provocado por sonhadores românticos ou como um
obstáculo a superar.
55. Pouco a pouco alguns
países podem mostrar progressos significativos, o desenvolvimento de controles
mais eficientes e uma luta mais sincera contra a corrupção. Cresceu a
sensibilidade ecológica das populações, mas é ainda insuficiente para mudar os
hábitos nocivos de consumo, que não parecem diminuir; antes, expandem-se e
desenvolvem-se. É o que acontece – só para dar um exemplo simples – com o
crescente aumento do uso e intensidade dos condicionadores de ar: os mercados,
apostando num ganho imediato, estimulam ainda mais a procura. Se alguém
observasse de fora a sociedade planetária, maravilhar-se-ia com tal comportamento
que às vezes parece suicida.
56. Entretanto os poderes
económicos continuam a justificar o sistema mundial actual, onde predomina uma
especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o
contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim
se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a
degradação humana e ética. Muitos dirão que não têm consciência de realizar
acções imorais, porque a constante distracção nos tira a coragem de advertir a
realidade dum mundo limitado e finito. Por isso, hoje, «qualquer realidade que
seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado
divinizado, transformados em regra absoluta».[33]
57. É previsível que, perante
o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas
guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações. A guerra causa sempre danos
graves ao meio ambiente e à riqueza cultural dos povos, e os riscos avolumam-se
quando se pensa na energia nuclear e nas armas biológicas. Com efeito, «não
obstante haver acordos internacionais que proíbem a guerra química,
bacteriológica e biológica, subsiste o facto de continuarem nos laboratórios as
pesquisas para o desenvolvimento de novas armas ofensivas, capazes de alterar
os equilíbrios naturais».[34] Exige-se da política uma maior atenção para
prevenir e resolver as causas que podem dar origem a novos conflitos.
Entretanto o poder, ligado com a finança, é o que maior resistência põe a tal
esforço, e os projectos políticos carecem muitas vezes de amplitude de
horizonte. Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua
incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?
58. Nalguns países, há
exemplos positivos de resultados na melhoria do ambiente, tais como o
saneamento de alguns rios que foram poluídos durante muitas décadas, a
recuperação de florestas nativas, o embelezamento de paisagens com obras de
saneamento ambiental, projectos de edifícios de grande valor estético,
progressos na produção de energia limpa, na melhoria dos transportes públicos.
Estas acções não resolvem os problemas globais, mas confirmam que o ser humano
ainda é capaz de intervir de forma positiva. Como foi criado para amar, no meio
dos seus limites germinam inevitavelmente gestos de generosidade, solidariedade
e desvelo.
59. Ao mesmo tempo cresce uma
ecologia superficial ou aparente que consolida um certo torpor e uma alegre
irresponsabilidade. Como frequentemente acontece em épocas de crises profundas,
que exigem decisões corajosas, somos tentados a pensar que aquilo que está a
acontecer não é verdade. Se nos detivermos na superfície, para além de alguns
sinais visíveis de poluição e degradação, parece que as coisas não estejam
assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas
condições actuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os
nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se
organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta
para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse
acontecido.
7. Diversidade de opiniões
60. Finalmente reconhecemos, a
propósito da situação e das possíveis soluções, que se desenvolveram diferentes
perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o
custo o mito do progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão
simplesmente com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem
mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o ser humano, com
qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema
mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o
tipo de intervenção. Entre estes extremos, a reflexão deveria identificar
possíveis cenários futuros, porque não existe só um caminho de solução. Isto
deixaria espaço para uma variedade de contribuições que poderiam entrar em
diálogo a fim de se chegar a respostas abrangentes.
61. Sobre muitas questões
concretas, a Igreja não tem motivo para propor uma palavra definitiva e entende
que deve escutar e promover o debate honesto entre os cientistas, respeitando a
diversidade de opiniões. Basta, porém, olhar a realidade com sinceridade, para
ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. A esperança convida-nos
a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos
fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia parece notar-se sintomas
dum ponto de ruptura, por causa da alta velocidade das mudanças e da
degradação, que se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em
crises sociais ou mesmo financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se
podem analisar nem explicar de forma isolada. Há regiões que já se encontram
particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o
certo é que o actual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos
de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da acção humana: «Se o
olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a
humanidade frustrou a expectativa divina».[35]
CAPÍTULO II - O EVANGELHO DA
CRIAÇÃO
62. Por que motivo incluir,
neste documento dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capítulo
referido às convicções de fé? Não ignoro que alguns, no campo da política e do
pensamento, rejeitam decididamente a ideia de um Criador ou consideram-na
irrelevante, chegando ao ponto de relegar para o reino do irracional a riqueza
que as religiões possam oferecer para uma ecologia integral e o pleno
desenvolvimento do género humano; outras vezes, supõe-se que elas constituam
uma subcultura, que se deve simplesmente tolerar. Todavia a ciência e a
religião, que fornecem diferentes abordagens da realidade, podem entrar num
diálogo intenso e frutuoso para ambas.
1. A luz que a fé oferece
63. Se tivermos presente a
complexidade da crise ecológica e as suas múltiplas causas, deveremos
reconhecer que as soluções não podem vir duma única maneira de interpretar e
transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas
culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se
quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o
que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de
sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua
linguagem própria. Além disso, a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o
pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias sínteses entre fé e
razão. No que diz respeito às questões sociais, pode-se constatar isto mesmo no
desenvolvimento da doutrina social da Igreja, chamada a enriquecer-se cada vez
mais a partir dos novos desafios.
64. Por outro lado, embora
esta encíclica se abra a um diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos
de libertação, quero mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem
aos cristãos – e, em parte, também a outros crentes – motivações altas para
cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo simples facto de
ser humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem
parte, «os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da
criação e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua
fé».[36] Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes,
conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções.
2. A sabedoria das narrações
bíblicas
65. Sem repropor aqui toda a
teologia da Criação, queremos saber o que nos dizem as grandes narrações
bíblicas sobre a relação do ser humano com o mundo. Na primeira narração da
obra criadora, no livro do Génesis, o plano de Deus inclui a criação da
humanidade. Depois da criação do homem e da mulher, diz-se que «Deus, vendo a
sua obra, considerou-a muito boa» (Gn 1, 31). A Bíblia ensina que cada ser
humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26).
Esta afirmação mostra-nos a imensa dignidade de cada pessoa humana, que «não é
somente alguma coisa, mas alguém. É capaz de se conhecer, de se possuir e de
livremente se dar e entrar em comunhão com outras pessoas».[37] São João Paulo
II recordou que o amor muito especial que o Criador tem por cada ser humano
«confere-lhe uma dignidade infinita».[38] Todos aqueles que estão empenhados na
defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas
para tal compromisso. Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa
não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por
ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós:
«Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jr 1, 5).
Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, «cada um de nós é o fruto de
um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada
um é necessário».[39]
66. As narrações da criação no
livro do Génesis contêm, na sua linguagem simbólica e narrativa, ensinamentos
profundos sobre a existência humana e a sua realidade histórica. Estas
narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações
fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a
terra. Segundo a Bíblia, estas três relações vitais romperam-se não só
exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado. A harmonia
entre o Criador, a humanidade e toda a criação foi destruída por termos
pretendido ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas
limitadas. Este facto distorceu também a natureza do mandato de «dominar» a
terra (cf. Gn 1, 28) e de a «cultivar e guardar» (cf. Gn 2, 15). Como
resultado, a relação originariamente harmoniosa entre o ser humano e a natureza
transformou-se num conflito (cf. Gn 3, 17-19). Por isso, é significativo que a
harmonia vivida por São Francisco de Assis com todas as criaturas tenha sido
interpretada como uma sanação daquela ruptura. Dizia São Boaventura que,
através da reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de
alguma forma ao estado de inocência original.[40] Longe deste modelo, o pecado
manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias
formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a
natureza.
67. Não somos Deus. A terra
existe antes de nós e foi-nos dada. Isto permite responder a uma acusação
lançada contra o pensamento judaico-cristão: foi dito que a narração do
Génesis, que convida a «dominar» a terra (cf. Gn 1, 28), favoreceria a
exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como
dominador e devastador. Mas esta não é uma interpretação correcta da Bíblia,
como a entende a Igreja. Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes
interpretámos de forma incorrecta as Escrituras, hoje devemos decididamente
rejeitar que, do facto de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar
a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. É importante
ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar
que nos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15).
Enquanto «cultivar» quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, «guardar»
significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de
reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza. Cada comunidade pode
tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas
tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade
para as gerações futuras. Em última análise, «ao Senhor pertence a terra» (Sl
24/23, 1), a Ele pertence «a terra e tudo o que nela existe» (Dt 10, 14). Por
isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta: «Nenhuma terra será
vendida definitivamente, porque a terra pertence-Me, e vós sois apenas
estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25, 23).
68. Esta responsabilidade
perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência,
respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste
mundo, porque «Ele deu uma ordem e tudo foi criado; Ele fixou tudo pelos
séculos sem fim e estabeleceu leis a que não se pode fugir!» (Sl 148, 5b-6).
Consequentemente, a legislação bíblica detém-se a propor ao ser humano várias
normas relativas não só às outras pessoas, mas também aos restantes seres
vivos: «Se vires o jumento do teu irmão ou o seu boi caídos no caminho, não te
desvies deles, mas ajuda-os a levantarem-se. (...) Se encontrares no caminho,
em cima de uma árvore ou no chão, um ninho de pássaros com filhotes, ou ovos
cobertos pela mãe, não apanharás a mãe com a ninhada» (Dt 22, 4.6). Nesta
linha, o descanso do sétimo dia não é proposto só para o ser humano, mas «para
que descansem o teu boi e o teu jumento» (Ex 23, 12). Assim nos damos conta de
que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa
das outras criaturas.
69. Ao mesmo tempo que podemos
fazer um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros
seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, «pelo simples facto de
existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória»[41], porque «o Senhor Se alegra em
suas obras» (Sl 104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e por ser
dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as
suas leis internas, já que «o Senhor fundou a terra com sabedoria» (Pr 3, 19).
Hoje, a Igreja não diz, de forma simplicista, que as outras criaturas estão
totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em
si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como
fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, «se poderia falar da
prioridade do ser sobre o ser úteis».[42] O Catecismo põe em questão, de forma
muito directa e insistente, um antropocentrismo desordenado: «Cada criatura
possui a sua bondade e perfeição próprias. (...) As diferentes criaturas,
queridas pelo seu próprio ser, reflectem, cada qual a seu modo, uma centelha da
sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar
a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das
coisas».[43]
70. Na narração de Caim e
Abel, vemos que a inveja levou Caim a cometer a injustiça extrema contra o seu
irmão. Isto, por sua vez, provocou uma ruptura da relação entre Caim e Deus e
entre Caim e a terra, da qual foi exilado. Esta passagem aparece sintetizada no
dramático colóquio de Deus com Caim. Deus pergunta: «Onde está o teu irmão
Abel?» Caim responde que não sabe, e Deus insiste com ele: «Que fizeste? A voz
do sangue do teu irmão clama da terra até Mim. De futuro, serás amaldiçoado
pela terra (…). Serás vagabundo e fugitivo sobre a terra» (Gn 4, 9-12). O
descuido no compromisso de cultivar e manter um correcto relacionamento com o
próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e custódia,
destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a
terra. Quando todas estas relações são negligenciadas, quando a justiça deixa
de habitar na terra, a Bíblia diz-nos que toda a vida está em perigo. Assim
no-lo ensina a narração de Noé, quando Deus ameaça acabar com a humanidade pela
sua persistente incapacidade de viver à altura das exigências da justiça e da
paz: «O fim de toda a humanidade chegou diante de Mim, pois ela encheu a terra
de violência» (Gn 6, 13). Nestas narrações tão antigas, ricas de profundo
simbolismo, já estava contida a convicção actual de que tudo está
inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas
relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da
fidelidade aos outros.
71. Embora Deus reconhecesse
que «a maldade dos homens era grande na terra» (Gn 6, 5), «arrependendo-Se de
ter criado o homem sobre a terra» (Gn 6, 6), Ele decidiu abrir um caminho de
salvação através de Noé, que ainda se mantinha íntegro e justo. Assim deu à
humanidade a possibilidade de um novo início. Basta um homem bom para haver
esperança! A tradição bíblica estabelece claramente que esta reabilitação
implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão
do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia,
Deus descansou de todas as suas obras. Deus ordenou a Israel que cada sétimo
dia devia ser celebrado como um dia de descanso, um Shabbath (cf. Gn 2, 2-3; Ex
16, 23; 20, 10). Além disso, de sete em sete anos, instaurou-se também um ano sabático
para Israel e a sua terra (cf. Lv 25, 1-4), durante o qual se dava descanso
completo à terra, não se semeava e só se colhia o indispensável para sobreviver
e oferecer hospitalidade (cf. Lv 25, 4-6). Por fim, passadas sete semanas de
anos, ou seja quarenta e nove anos, celebrava-se o jubileu, um ano de perdão
universal, «proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam»
(Lv 25, 10). O desenvolvimento desta legislação procurou assegurar o equilíbrio
e a equidade nas relações do ser humano com os outros e com a terra onde vivia
e trabalhava. Mas, ao mesmo tempo, era um reconhecimento de que a dádiva da
terra com os seus frutos pertence a todo o povo. Aqueles que cultivavam e
guardavam o território deviam partilhar os seus frutos, especialmente com os
pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros: «Quando procederes à ceifa das
vossas terras, não ceifarás as espigas até à extremidade do campo, e não
apanharás as espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás
os bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro» (Lv 19, 9-10).
72. Os Salmos convidam,
frequentemente, o ser humano a louvar a Deus criador: «Estendeu a terra sobre
as águas, porque o seu amor é eterno» (Sl 136/135, 6). E convidam também as
outras criaturas a louvá-Lo: «Louvai-O, sol e lua; louvai-O, estrelas
luminosas! Louvai-O, alturas dos céus e águas que estais acima dos céus! Louvem
todos o nome do Senhor, porque Ele deu uma ordem e tudo foi criado» (Sl 148,
3-5). Existimos não só pelo poder de Deus, mas também na sua presença e
companhia. Por isso O adoramos.
73. Os escritos dos profetas
convidam a recuperar forças, nos momentos difíceis, contemplando a Deus
poderoso que criou o universo. O poder infinito de Deus não nos leva a escapar
da sua ternura paterna, porque n’Ele se conjugam o carinho e a força. Na
verdade, toda a sã espiritualidade implica simultaneamente acolher o amor
divino e adorar, com confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na Bíblia, o
Deus que liberta e salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de
agir divino estão íntima e inseparavelmente ligados: «Ah! Senhor Deus, foste Tu
que fizeste o céu e a terra com o teu grande poder e o teu braço estendido!
Para Ti, nada é impossível! (...) Tu fizeste sair do Egipto o teu povo, Israel,
com prodígios e milagres» (Jr 32, 17.21). «O Senhor é um Deus eterno, que criou
os confins da terra. Não se cansa nem perde as forças. É insondável a sua
sabedoria. Ele dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco» (Is 40, 28b-29).
74. A experiência do cativeiro
em Babilónia gerou uma crise espiritual que levou a um aprofundamento da fé em
Deus, explicitando a sua omnipotência criadora, para animar o povo a recuperar
a esperança no meio da sua situação infeliz. Séculos mais tarde, noutro momento
de prova e perseguição, quando o Império Romano procurou impor um domínio
absoluto, os fiéis voltaram a encontrar consolação e esperança aumentando a sua
confiança em Deus omnipotente, e cantavam: «Grandes e admiráveis são as tuas
obras, Senhor Deus todo-poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos!»
(Ap 15, 3). Se Deus pôde criar o universo a partir do nada, também pode
intervir neste mundo e vencer qualquer forma de mal. Por isso, a injustiça não
é invencível.
75. Não podemos defender uma
espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso,
acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar
do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem limites a realidade criada por
Ele. A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua
pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um
Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre
a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses.
3. O mistério do universo
76. Na tradição
judaico-cristã, dizer «criação» é mais do que dizer natureza, porque tem a ver
com um projecto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um
significado. A natureza entende-se habitualmente como um sistema que se
analisa, compreende e gere, mas a criação só se pode conceber como um dom que
vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor
que nos chama a uma comunhão universal.
77. «A palavra do Senhor criou
os céus» (Sl 33/32, 6). Deste modo indica-se que o mundo procede, não do caos
nem do acaso, mas duma decisão, o que o exalta ainda mais. Há uma opção livre,
expressa na palavra criadora. O universo não apareceu como resultado duma
omnipotência arbitrária, duma demonstração de força ou dum desejo de
auto-afirmação. A criação pertence à ordem do amor. O amor de Deus é a razão
fundamental de toda a criação: «Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada
do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado» (Sab 11,
24). Então cada criatura é objecto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar
no mundo. Até a vida efémera do ser mais insignificante é objecto do seu amor
e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho. Dizia
São Basílio Magno que o Criador é também «a bondade sem cálculos»,[44] e Dante
Alighieri falava do «amor que move o sol e as outras estrelas».[45] Por isso,
das obras criadas pode-se subir «à sua amorosa misericórdia».[46]
78. Ao mesmo tempo, o pensamento
judaico-cristão desmitificou a natureza. Sem deixar de a admirar pelo seu
esplendor e imensidão, já não lhe atribui um carácter divino. Deste modo,
ressalta ainda mais o nosso compromisso para com ela. Um regresso à natureza
não pode ser feito à custa da liberdade e da responsabilidade do ser humano,
que é parte do mundo com o dever de cultivar as próprias capacidades para o
proteger e desenvolver as suas potencialidades. Se reconhecermos o valor e a
fragilidade da natureza e, ao mesmo tempo, as capacidades que o Criador nos
deu, isto permite-nos acabar hoje com o mito moderno do progresso material
ilimitado. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do
mesmo, interpela a nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar,
cultivar e limitar o nosso poder.
79. Neste universo, composto
por sistemas abertos que entram em comunicação uns com os outros, podemos
descobrir inumeráveis formas de relação e participação. Isto leva-nos também a
pensar o todo como aberto à transcendência de Deus, dentro da qual se
desenvolve. A fé permite-nos interpretar o significado e a beleza misteriosa do
que acontece. A liberdade humana pode prestar a sua contribuição inteligente
para uma evolução positiva, como pode também acrescentar novos males, novas
causas de sofrimento e verdadeiros atrasos. Isto dá lugar à apaixonante e
dramática história humana, capaz de transformar-se num desabrochamento de
libertação, engrandecimento, salvação e amor, ou, pelo contrário, num percurso
de declínio e mútua destruição. Por isso a Igreja, com a sua acção, procura não
só lembrar o dever de cuidar da natureza, mas também e «sobretudo proteger o
homem da destruição de si mesmo».[47]
80. Apesar disso, Deus, que
deseja actuar connosco e contar com a nossa cooperação, é capaz também de tirar
algo de bom dos males que praticamos, porque «o Espírito Santo possui uma
inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós
das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis».[48] De certa maneira,
quis limitar-Se a Si mesmo, criando um mundo necessitado de desenvolvimento,
onde muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na
realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o
Criador.[49] Ele está presente no mais íntimo de cada coisa sem condicionar a
autonomia da sua criatura, e isto dá lugar também à legítima autonomia das
realidades terrenas.[50] Esta presença divina, que garante a permanência e o
desenvolvimento de cada ser, «é a continuação da acção criadora».[51] O
Espírito de Deus encheu o universo de potencialidades que permitem que, do
próprio seio das coisas, possa brotar sempre algo de novo: «A natureza nada
mais é do que a razão de certa arte – concretamente a arte divina – inscrita nas
coisas, pela qual as próprias coisas se movem para um fim determinado. Como se
o mestre construtor de navios pudesse conceder à madeira a possibilidade de se
mover a si mesma para tomar a forma da nave».[52]
81. Embora suponha também
processos evolutivos, o ser humano implica uma novidade que não se explica
cabalmente pela evolução doutros sistemas abertos. Cada um de nós tem em si uma
identidade pessoal, capaz de entrar em diálogo com os outros e com o próprio
Deus. A capacidade de reflexão, o raciocínio, a criatividade, a interpretação,
a elaboração artística e outras capacidades originais manifestam uma
singularidade que transcende o âmbito físico e biológico. A novidade
qualitativa, implicada no aparecimento dum ser pessoal dentro do universo
material, pressupõe uma acção directa de Deus, uma chamada peculiar à vida e à
relação de um Tu com outro tu. A partir dos textos bíblicos, consideramos o ser
humano como sujeito, que nunca pode ser reduzido à categoria de objecto.
82. Mas seria errado também
pensar que os outros seres vivos devam ser considerados como meros objectos
submetidos ao domínio arbitrário do ser humano. Quando se propõe uma visão da
natureza unicamente como objecto de lucro e interesse, isso comporta graves
consequências também para a sociedade. A visão que consolida o arbítrio do mais
forte favoreceu imensas desigualdades, injustiças e violências para a maior
parte da humanidade, porque os recursos tornam-se propriedade do primeiro que
chega ou de quem tem mais poder: o vencedor leva tudo. O ideal de harmonia,
justiça, fraternidade e paz que Jesus propõe situa-se nos antípodas de tal
modelo, como Ele mesmo Se expressou ao compará-lo com os poderes do seu tempo:
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os
grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo
contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20,
25-26).
83. A meta do caminho do
universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo
ressuscitado, fulcro da maturação universal.[53] E assim juntamos mais um
argumento para rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do
ser humano sobre as outras criaturas. O fim último das restantes criaturas não
somos nós. Mas todas avançam, juntamente connosco e através de nós, para a meta
comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo
abraça e ilumina. Com efeito, o ser humano, dotado de inteligência e amor e
atraído pela plenitude de Cristo, é chamado a reconduzir todas as criaturas ao
seu Criador.
4. A mensagem de cada criatura
na harmonia de toda a criação
84. O facto de insistir na
afirmação de que o ser humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer
que cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua. Todo o universo
material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. O
solo, a água, as montanhas: tudo é carícia de Deus. A história da própria
amizade com Deus desenrola-se sempre num espaço geográfico que se torna um
sinal muito pessoal, e cada um de nós guarda na memória lugares cuja lembrança
nos faz muito bem. Quem cresceu no meio de montes, quem na infância se sentava
junto do riacho a beber, ou quem jogava numa praça do seu bairro, quando volta
a esses lugares sente-se chamado a recuperar a sua própria identidade.
85. Deus escreveu um livro
estupendo, «cujas letras são representadas pela multidão de criaturas presentes
no universo».[54] E justamente afirmaram os bispos do Canadá que nenhuma
criatura fica fora desta manifestação de Deus: «Desde os panoramas mais amplos
às formas de vida mais frágeis, a natureza é um manancial incessante de encanto
e reverência. Trata-se duma contínua revelação do divino».[55]Os bispos do
Japão, por sua vez, disseram algo muito sugestivo: «Sentir cada criatura que
canta o hino da sua existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na
esperança».[56] Esta contemplação da criação permite-nos descobrir qualquer
ensinamento que Deus nos quer transmitir através de cada coisa, porque, «para o
crente, contemplar a criação significa também escutar uma mensagem, ouvir uma
voz paradoxal e silenciosa».[57] Podemos afirmar que, «ao lado da revelação
propriamente dita, contida nas Sagradas Escrituras, há uma manifestação divina
no despontar do sol e no cair da noite».[58] Prestando atenção a esta
manifestação, o ser humano aprende a reconhecer-se a si mesmo na relação com as
outras criaturas: «Eu expresso-me exprimindo o mundo; exploro a minha
sacralidade decifrando a do mundo».[59]
86. O conjunto do universo,
com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus.
São Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade
«provêm da intenção do primeiro agente», o Qual quis que «o que falta a cada
coisa, para representar a bondade divina, seja suprido pelas outras»,[60] pois
a sua bondade «não pode ser convenientemente representada por uma só
criatura».[61] Por isso, precisamos de individuar a variedade das coisas nas
suas múltiplas relações.[62] Assim, compreende-se melhor a importância e o
significado de qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de
Deus. Tal é o ensinamento do Catecismo: «A interdependência das criaturas é
querida por Deus. O sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal: o
espectáculo das suas incontáveis diversidades e desigualdades significa que
nenhuma criatura se basta a si mesma. Elas só existem na dependência umas das
outras, para se completarem mutuamente no serviço umas das outras».[63]
87. Quando nos damos conta do
reflexo de Deus em tudo o que existe, o coração experimenta o desejo de adorar
o Senhor por todas as suas criaturas e juntamente com elas, como se vê neste
gracioso cântico de São Francisco de Assis:
«Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o meu senhor
irmão sol,
o qual faz o dia e por ele nos
alumia.
E ele é belo e radiante com
grande esplendor:
de Ti, Altíssimo, nos dá ele a
imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã lua e pelas estrelas,
que no céu formaste claras,
preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
pelo irmão vento
pelo ar, pela nuvem, pelo
sereno, e todo o tempo,
com o qual, às tuas criaturas,
dás o sustento.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã água,
que é tão útil e humilde, e
preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
pelo irmão fogo,
pelo qual iluminas a noite:
ele é belo e alegre, vigoroso
e forte».[64]
88. Os bispos do Brasil
sublinharam que toda a natureza, além de manifestar Deus, é lugar da sua
presença. Em cada criatura, habita o seu Espírito vivificante, que nos chama a
um relacionamento com Ele.[65] A descoberta desta presença estimula em nós o desenvolvimento
das «virtudes ecológicas».[66] Mas, quando dizemos isto, não esqueçamos que há
também uma distância infinita, pois as coisas deste mundo não possuem a
plenitude de Deus. Esquecê-lo, aliás, também não faria bem às criaturas, porque
não reconheceríamos o seu lugar verdadeiro e próprio, acabando por lhes exigir
indevidamente aquilo que, na sua pequenez, não nos podem dar.
5. Uma comunhão universal
89. As criaturas deste mundo
não podem ser consideradas um bem sem dono: «Todas são tuas, ó Senhor, que amas
a vida» (Sab 11, 26). Isto gera a convicção de que nós e todos os seres do
universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e
formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele
a um respeito sagrado, amoroso e humilde. Quero lembrar que «Deus uniu-nos tão
estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma
doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse
uma mutilação».[67]
90. Isto não significa igualar
todos os seres vivos e tirar ao ser humano aquele seu valor peculiar que,
simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade. Também não requer uma
divinização da terra, que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e
proteger a sua fragilidade. Estas concepções acabariam por criar novos
desequilíbrios, na tentativa de fugir da realidade que nos interpela.[68] Às
vezes nota-se a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa humana,
conduzindo-se uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de
defender igual dignidade entre os seres humanos. Devemos, certamente, ter a
preocupação de que os outros seres vivos não sejam tratados de forma
irresponsável, mas deveriam indignar-nos sobretudo as enormes desigualdades que
existem entre nós, porque continuamos a tolerar que alguns se considerem mais
dignos do que outros. Deixamos de notar que alguns se arrastam numa miséria
degradante, sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem
sequer que fazer ao que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e
deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar
sem destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam
mais humanos que outros, como se tivessem nascido com maiores direitos.
91. Não pode ser autêntico um
sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo
não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É
evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais em risco de
extinção, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas,
desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não
gosta. Isto compromete o sentido da luta pelo meio ambiente. Não é por acaso
que São Francisco, no cântico onde louva a Deus pelas criaturas, acrescenta o
seguinte: «Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor».
Tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente,
unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os
problemas da sociedade.
92. Além disso, quando o
coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém
fica excluído desta fraternidade. Portanto, é verdade também que a indiferença
ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma
forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos.
O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda
a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra
qualquer criatura «é contrário à dignidade humana».[69] Não podemos
considerar-nos grandes amantes da realidade, se excluímos dos nossos interesses
alguma parte dela: «Paz, justiça e conservação da criação são três questões
absolutamente ligadas, que não se poderão separar, tratando-as individualmente
sob pena de cair novamente no reducionismo».[70] Tudo está relacionado, e todos
nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação
maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas
e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio
e à mãe terra.
6. O destino comum dos bens
93. Hoje, crentes e
não-crentes estão de acordo que a terra é, essencialmente, uma herança comum,
cujos frutos devem beneficiar a todos. Para os crentes, isto torna-se uma
questão de fidelidade ao Criador, porque Deus criou o mundo para todos. Por
conseguinte, toda a abordagem ecológica deve integrar uma perspectiva social
que tenha em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos. O
princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens
e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma «regra de ouro» do
comportamento social e o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social».[71]
A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à
propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de
propriedade privada. São João Paulo II lembrou esta doutrina, com grande
ênfase, dizendo que «Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela
sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém».[72] São
palavras densas e fortes. Insistiu que «não seria verdadeiramente digno do
homem, um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e promovesse os direitos
humanos, pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das
nações e dos povos».[73]Com grande clareza, explicou que «a Igreja defende, sim,
o legítimo direito à propriedade privada, mas ensina, com não menor clareza,
que sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social, para
que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu».[74] Por isso, afirma
que «não é segundo o desígnio de Deus gerir este dom de modo tal que os seus
benefícios aproveitem só a alguns poucos».[75] Isto põe seriamente em discussão
os hábitos injustos duma parte da humanidade.[76]
94. O rico e o pobre têm igual
dignidade, porque «quem os fez a ambos foi o Senhor» (Pr 22, 2); «Ele criou o
pequeno e o grande» (Sab 6, 7) e «faz com que o sol se levante sobre os bons e
os maus» (Mt 5, 45). Isto tem consequências práticas, como explicitaram os
bispos do Paraguai: «Cada camponês tem direito natural de possuir um lote
razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a
subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve
ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório mas real.
Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com
meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado».[77]
95. O meio ambiente é um bem
colectivo, património de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem
possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos. Se não o
fizermos, carregamos na consciência o peso de negar a existência aos outros.
Por isso, os bispos da Nova Zelândia perguntavam-se que significado possa ter o
mandamento «não matarás», quando «uns vinte por cento da população mundial
consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações
futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver».[78]
7. O olhar de Jesus
96. Jesus retoma a fé bíblica
no Deus criador e destaca um dado fundamental: Deus é Pai (cf. Mt 11, 25). Em
colóquio com os seus discípulos, Jesus convidava-os a reconhecer a relação
paterna que Deus tem com todas as criaturas e recordava-lhes, com comovente
ternura, como cada uma delas era importante aos olhos d’Ele: «Não se vendem
cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa
despercebido diante de Deus» (Lc 12, 6). «Olhai as aves do céu: não semeiam nem
ceifam nem recolhem em celeiros; e o vosso Pai celeste alimenta-as» (Mt 6, 26).
97. O Senhor podia convidar os
outros a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia
em contacto permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de
carinho e admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se
a contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a
individuarem, nas coisas, uma mensagem divina: «Levantai os olhos e vede os
campos que estão doirados para a ceifa» (Jo 4, 35). «O Reino dos Céus é
semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a
menor de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do
horto e transforma-se numa árvore» (Mt 13, 31-32).
98. Jesus vivia em plena
harmonia com a criação, com grande maravilha dos outros: «Quem é este, a quem
até o vento e o mar obedecem?» (Mt 8, 27). Não Se apresentava como um asceta
separado do mundo ou inimigo das coisas aprazíveis da vida. Falando de Si mesmo,
declarou: «Veio o Filho do Homem que come e bebe, e dizem: “Aí está um glutão e
bebedor de vinho”» (Mt 11, 19). Encontrava-Se longe das filosofias que
desprezavam o corpo, a matéria e as realidades deste mundo. Todavia, ao longo
da história, estes dualismos combalidos tiveram notável influência nalguns
pensadores cristãos e desfiguraram o Evangelho. Jesus trabalhava com suas mãos,
entrando diariamente em contacto com matéria criada por Deus para a moldar com
a sua capacidade de artesão. É digno de nota que a maior parte da sua
existência terrena tenha sido consagrada a esta tarefa, levando uma vida
simples que não despertava maravilha alguma: «Não é Ele o carpinteiro, o filho
de Maria?» (Mc 6, 3). Assim santificou o trabalho, atribuindo-lhe um valor peculiar
para o nosso amadurecimento. São João Paulo II ensinava que, «suportando o que
há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem
colabora, de alguma forma, com o Filho de Deus na redenção da humanidade».[79]
99. Segundo a compreensão
cristã da realidade, o destino da criação inteira passa pelo mistério de
Cristo, que nela está presente desde a origem: «Todas as coisas foram criadas
por Ele e para Ele» (Cl 1, 16).[80] O prólogo do Evangelho de João (1, 1-18)
mostra a actividade criadora de Cristo como Palavra divina (Logos). Mas o mesmo
prólogo surpreende ao afirmar que esta Palavra «Se fez carne» (Jo 1, 14). Uma
Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado, partilhando a
própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo, mas de modo peculiar
a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no conjunto da
realidade natural, sem com isso afectar a sua autonomia.
100. O Novo Testamento não nos
fala só de Jesus terreno e da sua relação tão concreta e amorosa com o mundo;
mostra-no-Lo também como ressuscitado e glorioso, presente em toda a criação
com o seu domínio universal. «Foi n’Ele que aprouve a Deus fazer habitar toda a
plenitude e, por Ele e para Ele, reconciliar todas as coisas (…), tanto as que
estão na terra como as que estão no céu» (Cl 1, 19-20). Isto lança-nos para o
fim dos tempos, quando o Filho entregar ao Pai todas as coisas «a fim de que
Deus seja tudo em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, as criaturas deste mundo já não
nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as
envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores
do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos,
agora estão cheias da sua presença luminosa.
CAPÍTULO III - A RAIZ HUMANA
DA CRISE ECOLÓGICA
101. Para nada serviria
descrever os sintomas, se não reconhecêssemos a raiz humana da crise ecológica.
Há um modo desordenado de conceber a vida e a acção do ser humano, que
contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar. Não poderemos deter-nos a
pensar nisto mesmo? Proponho, pois, que nos concentremos no paradigma
tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua acção no
mundo.
1. A tecnologia: criatividade
e poder
102. A humanidade entrou numa
nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante duma encruzilhada. Somos
herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças: a máquina a vapor, a
ferrovia, o telégrafo, a electricidade, o automóvel, o avião, as indústrias químicas,
a medicina moderna, a informática e, mais recentemente, a revolução digital, a
robótica, as biotecnologias e as nanotecnologias. É justo que nos alegremos com
estes progressos e nos entusiasmemos à vista das amplas possibilidades que nos
abrem estas novidades incessantes, porque «a ciência e a tecnologia são um
produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu».[81] A transformação
da natureza para fins úteis é uma característica do género humano, desde os
seus primórdios; e assim a técnica «exprime a tensão do ânimo humano para uma
gradual superação de certos condicionamentos materiais».[82] A tecnologia deu
remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano. Não podemos
deixar de apreciar e agradecer os progressos alcançados especialmente na
medicina, engenharia e comunicações. Como não havemos de reconhecer todos os
esforços de tantos cientistas e técnicos que elaboraram alternativas para um
desenvolvimento sustentável?
103. A tecnociência, bem
orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de
vida do ser humano, desde os objectos de uso doméstico até aos grandes meios de
transporte, pontes, edifícios, espaços públicos. É capaz também de produzir
coisas belas e fazer o ser humano, imerso no mundo material, dar o «salto» para
o âmbito da beleza. Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns
arranha-céus? Há obras pictóricas e musicais de valor, obtidas com o recurso
aos novos instrumentos técnicos. Assim, no desejo de beleza do artífice e em quem
contempla esta beleza dá-se o salto para uma certa plenitude propriamente
humana.
104. Não podemos, porém,
ignorar que a energia nuclear, a biotecnologia, a informática, o conhecimento
do nosso próprio DNA e outras potencialidades que adquirimos, nos dão um poder
tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder
económico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do
género humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si
mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira
como o está a fazer. Basta lembrar as bombas atómicas lançadas em pleno século
XX, bem como a grande exibição de tecnologia ostentada pelo nazismo, o
comunismo e outros regimes totalitários e que serviu para o extermínio de
milhões de pessoas, sem esquecer que hoje a guerra dispõe de instrumentos cada
vez mais mortíferos. Nas mãos de quem está e pode chegar a estar tanto poder? É
tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade.
105. Tende-se a crer que «toda
a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de
utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores»[83], como se
a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder
da tecnologia e da economia. A verdade é que «o homem moderno não foi educado
para o recto uso do poder»,[84] porque o imenso crescimento tecnológico não foi
acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos
valores, à consciência. Cada época tende a desenvolver uma reduzida
autoconsciência dos próprios limites. Por isso, é possível que hoje a
humanidade não se dê conta da seriedade dos desafios que se lhe apresentam, e
«cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder»
quando «não existem normas de liberdade, mas apenas pretensas necessidades de
utilidade e segurança».[85] O ser humano não é plenamente autónomo. A sua
liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das
necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele
está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter
os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais,
mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma
espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum
lúcido domínio de si.
2. A globalização do paradigma
tecnocrático
106. Mas o problema
fundamental é outro e ainda mais profundo: o modo como realmente a humanidade
assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma
homogéneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito
que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se
apropria do objecto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao
estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é
explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o
sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a
manipulação. Sempre se verificou a intervenção do ser humano sobre a natureza,
mas durante muito tempo teve a característica de acompanhar, secundar as
possibilidades oferecidas pelas próprias coisas; tratava-se de receber o que a
realidade natural por si permitia, como que estendendo a mão. Mas, agora, o que
interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana,
que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente. Por
isso, o ser humano e as coisas deixaram de se dar amigavelmente a mão,
tornando-se contendentes. Daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento
infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da
finança e da tecnologia. Isto supõe a mentira da disponibilidade infinita dos
bens do planeta, que leva a «espremê-lo» até ao limite e para além do mesmo.
Trata-se do falso pressuposto de que «existe uma quantidade ilimitada de
energia e de recursos a serem utilizados, que a sua regeneração é possível de
imediato e que os efeitos negativos das manipulações da ordem natural podem ser
facilmente absorvidos».[86]
107. Assim podemos afirmar
que, na origem de muitas dificuldades do mundo actual, está principalmente a
tendência, nem sempre consciente, de elaborar a metodologia e os objectivos da
tecnociência segundo um paradigma de compreensão que condiciona a vida das
pessoas e o funcionamento da sociedade. Os efeitos da aplicação deste modelo a
toda a realidade, humana e social, constatam-se na degradação do meio ambiente,
mas isto é apenas um sinal do reducionismo que afecta a vida humana e a
sociedade em todas as suas dimensões. É preciso reconhecer que os produtos da
técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba por condicionar os
estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de
determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente
instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se
pretende desenvolver.
108. Não se consegue pensar
que seja possível sustentar outro paradigma cultural e servir-se da técnica
como mero instrumento, porque hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão
dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda
é utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica. Tornou-se
anticultural a escolha dum estilo de vida, cujos objectivos possam ser, pelo
menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder
globalizante e massificador. Com efeito, a técnica tem tendência a fazer com
que nada fique fora da sua lógica férrea, e «o homem que é o seu protagonista
sabe que, em última análise, não se trata de utilidade nem de bem-estar, mas de
domínio; domínio no sentido extremo da palavra».[87] Por isso, «procura
controlar os elementos da natureza e, conjuntamente, os da existência
humana».[88] Reduzem-se assim a capacidade de decisão, a liberdade mais genuína
e o espaço para a criatividade alternativa dos indivíduos.
109. O paradigma tecnocrático
tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia
assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar
atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano. A finança sufoca
a economia real. Não se aprendeu a lição da crise financeira mundial e, muito
lentamente, se aprende a lição do deterioramento ambiental. Nalguns círculos,
defende-se que a economia actual e a tecnologia resolverão todos os problemas
ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens não académicas, que os
problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o
crescimento do mercado. Não é uma questão de teorias económicas, que hoje
talvez já ninguém se atreva a defender, mas da sua instalação no desenvolvimento
concreto da economia. Aqueles que não o afirmam em palavras defendem-no com os
factos, quando parece não preocupar-se com o justo nível da produção, uma
melhor distribuição da riqueza, um cuidado responsável do meio ambiente ou os
direitos das gerações futuras. Com os seus comportamentos, afirmam que é
suficiente o objectivo da maximização dos ganhos. Mas o mercado, por si mesmo,
não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social.[89]
Entretanto temos um «superdesenvolvimento dissipador e consumista que
contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria
desumanizadora»,[90] mas não se criam, de forma suficientemente rápida,
instituições económicas e programas sociais que permitam aos mais pobres terem
regularmente acesso aos recursos básicos. Não temos suficiente consciência de
quais sejam as raízes mais profundas dos desequilíbrios actuais: estes têm a
ver com a orientação, os fins, o sentido e o contexto social do crescimento
tecnológico e económico.
110. A especialização própria
da tecnologia comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de
conjunto. A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter
aplicações concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade,
das relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido,
que se torna irrelevante. Isto impede de individuar caminhos adequados para
resolver os problemas mais complexos do mundo actual, sobretudo os do meio
ambiente e dos pobres, que não se podem enfrentar a partir duma única
perspectiva nem dum único tipo de interesses. Uma ciência, que pretenda
oferecer soluções para os grandes problemas, deveria necessariamente ter em
conta tudo o que o conhecimento gerou nas outras áreas do saber, incluindo a
filosofia e a ética social. Mas este é actualmente um procedimento difícil de
seguir. Por isso também não se consegue reconhecer verdadeiros horizontes
éticos de referência. A vida passa a ser uma rendição às circunstâncias
condicionadas pela técnica, entendida como o recurso principal para interpretar
a existência. Na realidade concreta que nos interpela, aparecem vários sintomas
que mostram o erro, tais como a degradação ambiental, a ansiedade, a perda do
sentido da vida e da convivência social. Assim se demonstra uma vez mais que «a
realidade é superior à ideia».[91]
111. A cultura ecológica não
se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas
que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas
naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma
política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que
oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático. Caso contrário, até as
melhores iniciativas ecologistas podem acabar bloqueadas na mesma lógica
globalizada. Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que
aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os
problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial.
112. Todavia é possível voltar
a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica,
orientá-la e colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais
humano, mais social, mais integral. De facto verifica-se a libertação do
paradigma tecnocrático nalgumas ocasiões. Por exemplo, quando comunidades de
pequenos produtores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo
um modelo não-consumista de vida, alegria e convivência. Ou quando a técnica
tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros, com o
compromisso de os ajudar a viver com mais dignidade e menor sofrimento. E ainda
quando a busca criadora do belo e a sua contemplação conseguem superar o poder
objectivador numa espécie de salvação que acontece na beleza e na pessoa que a
contempla. A humanidade autêntica, que convida a uma nova síntese, parece
habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase imperceptível, como a
neblina que filtra por baixo da porta fechada. Será uma promessa permanente
que, apesar de tudo, desbrocha como uma obstinada resistência daquilo que é
autêntico?
113. Além disso, as pessoas
parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num amanhã
melhor a partir das condições actuais do mundo e das capacidades técnicas.
Tomam consciência de que o progresso da ciência e da técnica não equivale ao
progresso da humanidade e da história, e vislumbram que os caminhos
fundamentais para um futuro feliz são outros. Apesar disso, também não se imaginam
renunciando às possibilidades que oferece a tecnologia. A humanidade mudou
profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades consagra uma fugacidade
que nos arrasta à superfície numa única direcção. Torna-se difícil parar para
recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitectura reflecte o espírito duma
época, as mega-estruturas e as casas em série expressam o espírito da técnica
globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio
enfadonho. Não nos resignemos a isto nem renunciemos a perguntar-nos pelos fins
e o sentido de tudo. Caso contrário, apenas legitimaremos o estado de facto e
precisaremos de mais sucedâneos para suportar o vazio.
114. O que está a acontecer
põe-nos perante a urgência de avançar numa corajosa revolução cultural. A
ciência e a tecnologia não são neutrais, mas podem, desde o início até ao fim
dum processo, envolver diferentes intenções e possibilidades que se podem
configurar de várias maneiras. Ninguém quer o regresso à Idade da Pedra, mas é
indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade doutra forma, recolher
os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os
grandes objectivos arrasados por um desenfreamento megalómano.
3. Crise do antropocentrismo
moderno e suas consequências
115. O antropocentrismo
moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade,
porque este ser humano «já não sente a natureza como norma válida nem como um
refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objectivamente, como
espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se
importar com o que possa suceder a ela».[92] Assim debilita-se o valor
intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro
lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria
realidade. «Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar
respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas
o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura
natural e moral de que foi dotado».[93]
116. Nos tempos modernos,
verificou-se um notável excesso antropocêntrico, que hoje, com outra roupagem,
continua a minar toda a referência a algo de comum e qualquer tentativa de
reforçar os laços sociais. Por isso, chegou a hora de prestar novamente atenção
à realidade com os limites que a mesma impõe e que, por sua vez, constituem a
possibilidade dum desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma
apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma
concepção errada da relação do ser humano com o mundo. Muitas vezes foi
transmitido um sonho prometeico de domínio sobre o mundo, que provocou a
impressão de que o cuidado da natureza fosse actividade de fracos. Mas a
interpretação correcta do conceito de ser humano como senhor do universo é
entendê-lo no sentido de administrador responsável.[94]
117. A falta de preocupação
por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o
reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz
inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se
reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com
deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os
gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara
autónomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria
base da sua existência, porque «em vez de realizar o seu papel de colaborador
de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por
provocar a revolta da natureza».[95]
118. Esta situação leva-nos a
uma esquizofrenia permanente, que se estende da exaltação tecnocrática, que não
reconhece aos outros seres um valor próprio, até à reacção de negar qualquer
valor peculiar ao ser humano. Contudo não se pode prescindir da humanidade. Não
haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo. Não há ecologia
sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas mais
um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico,
«corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da
responsabilidade».[96] Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente
ser substituído por um «biocentrismo», porque isto implicaria introduzir um
novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas
acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o
mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares
capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade.
119. A crítica do
antropocentrismo desordenado não deveria deixar em segundo plano também o valor
das relações entre as pessoas. Se a crise ecológica é uma expressão ou uma
manifestação externa da crise ética, cultural e espiritual da modernidade, não
podemos iludir-nos de sanar a nossa relação com a natureza e o meio ambiente,
sem curar todas as relações humanas fundamentais. Quando o pensamento cristão
reivindica, para o ser humano, um valor peculiar acima das outras criaturas,
suscita a valorização de cada pessoa humana e, assim, estimula o reconhecimento
do outro. A abertura a um «tu» capaz de conhecer, amar e dialogar continua a ser
a grande nobreza da pessoa humana. Por isso, para uma relação adequada com o
mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a
sua dimensão transcendente, a sua abertura ao «Tu» divino. Com efeito, não se
pode propor uma relação com o ambiente, prescindindo da relação com as outras
pessoas e com Deus. Seria um individualismo romântico disfarçado de beleza
ecológica e um confinamento asfixiante na imanência.
120. Uma vez que tudo está
relacionado, também não é compatível a defesa da natureza com a justificação do
aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis
que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá
protecção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e
dificuldades: «Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma
nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida
social».[97]
121. Espera-se ainda o
desenvolvimento duma nova síntese, que ultrapasse as falsas dialécticas dos
últimos séculos. O próprio cristianismo, mantendo-se fiel à sua identidade e ao
tesouro de verdade que recebeu de Jesus Cristo, não cessa de se repensar e reformular
em diálogo com as novas situações históricas, deixando desabrochar assim a sua
eterna novidade.[98]
O relativismo prático
122. Um antropocentrismo
desordenado gera um estilo de vida desordenado. Na exortação apostólica
Evangelii gaudium, referi-me ao relativismo prático que caracteriza a nossa
época e que é «ainda mais perigoso que o doutrinal».[99] Quando o ser humano se
coloca no centro, acaba por dar prioridade absoluta aos seus interesses
contingentes, e tudo o mais se torna relativo. Por isso, não deveria
surpreender que, juntamente com a omnipresença do paradigma tecnocrático e a
adoração do poder humano sem limites, se desenvolva nos indivíduos este
relativismo no qual tudo o que não serve os próprios interesses imediatos se
torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que permite compreender como se
alimentam mutuamente diferentes atitudes, que provocam ao mesmo tempo a
degradação ambiental e a degradação social.
123. A cultura do relativismo
é a mesma patologia que impele uma pessoa a aproveitar-se de outra e a tratá-la
como mero objecto, obrigando-a a trabalhos forçados, ou reduzindo-a à
escravidão por causa duma dívida. É a mesma lógica que leva à exploração sexual
das crianças, ou ao abandono dos idosos que não servem os interesses próprios.
É também a lógica interna daqueles que dizem: «Deixemos que as forças
invisíveis do mercado regulem a economia, porque os seus efeitos sobre a
sociedade e a natureza são danos inevitáveis». Se não há verdades objectivas
nem princípios estáveis, fora da satisfação das aspirações próprias e das
necessidades imediatas, que limites pode haver para o tráfico de seres humanos,
a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes
ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção? Não é a mesma lógica
relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com a finalidade de
os vender ou utilizar para experimentação, ou o descarte de crianças porque não
correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do «usa e joga fora» que
produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que
realmente se tem necessidade. Portanto, não podemos pensar que os programas
políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os comportamentos que
afectam o meio ambiente, porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de
reconhecer qualquer verdade objectiva ou quaisquer princípios universalmente
válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e
obstáculos a evitar.
A necessidade de defender o
trabalho
124. Em qualquer abordagem de
ecologia integral que não exclua o ser humano, é indispensável incluir o valor
do trabalho, tão sabiamente desenvolvido por São João Paulo II na sua encíclica
Laborem excercens. Recordemos que, segundo a narração bíblica da criação, Deus
colocou o ser humano no jardim recém-criado (cf. Gn2, 15), não só para cuidar
do existente (guardar), mas também para trabalhar nele a fim de que produzisse
frutos (cultivar). Assim, os operários e os artesãos «asseguram uma criação
perpétua» (Sir 38, 34). Na realidade, a intervenção humana que favorece o
desenvolvimento prudente da criação é a forma mais adequada de cuidar dela,
porque implica colocar-se como instrumento de Deus para ajudar a fazer
desabrochar as potencialidades que Ele mesmo inseriu nas coisas: «O Senhor
produziu da terra os medicamentos; e o homem sensato não os desprezará» (Sir
38, 4).
125. Se procurarmos pensar
quais possam ser as relações adequadas do ser humano com o mundo que o rodeia,
surge a necessidade duma concepção correcta do trabalho, porque, falando da
relação do ser humano com as coisas, impõe-se-nos a questão relativa ao sentido
e finalidade da acção humana sobre a realidade. Não falamos apenas do trabalho
manual ou do trabalho da terra, mas de qualquer actividade que implique alguma
transformação do existente, desde a elaboração dum balanço social até ao
projecto dum progresso tecnológico. Qualquer forma de trabalho pressupõe uma
concepção sobre a relação que o ser humano pode ou deve estabelecer com o outro
diverso de si mesmo. A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa
das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma
rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na
vida do Beato Carlos de Foucauld e seus discípulos.
126. Algo se pode recolher
também da longa tradição monástica. Nos primórdios, esta favorecia de certo
modo a fuga do mundo, procurando afastar-se da decadência urbana. Por isso, os
monges buscavam o deserto, convencidos de que fosse o lugar adequado para
reconhecer a presença de Deus. Mais tarde, São Bento de Núrsia quis que os seus
monges vivessem em comunidade, unindo oração e estudo com o trabalho manual
(«Ora et labora»). Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido
espiritual revelou-se revolucionária. Aprendeu-se a buscar o amadurecimento e a
santificação na compenetração entre o recolhimento e o trabalho. Esta maneira
de viver o trabalho torna-nos mais capazes de ter cuidado e respeito pelo meio
ambiente, impregnando de sadia sobriedade a nossa relação com o mundo.
127. Afirmamos que «o homem é
o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social».[100] Apesar
disso, quando no ser humano se deteriora a capacidade de contemplar e
respeitar, criam-se as condições para se desfigurar o sentido do trabalho.[101]
Convém recordar sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio, ser o
agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento
espiritual».[102] O trabalho deveria ser o âmbito deste multiforme
desenvolvimento pessoal, onde estão em jogo muitas dimensões da vida: a
criatividade, a projectação do futuro, o desenvolvimento das capacidades, a
exercitação dos valores, a comunicação com os outros, uma atitude de adoração. Por
isso, a realidade social do munda actual exige que, acima dos limitados
interesses das empresas e duma discutível racionalidade económica, «se continue
a perseguir como prioritário o objectivo do acesso ao trabalho para
todos».[103]
128. Somos chamados ao
trabalho desde a nossa criação. Não se deve procurar que o progresso
tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano: procedendo assim, a
humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O trabalho é uma necessidade, faz parte
do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano
e realização pessoal. Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro deve ser
sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objectivo
deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho. Mas a
orientação da economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja
finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição dos postos de
trabalho, que são substituídos por máquinas. É mais um exemplo de como a acção
do homem se pode voltar contra si mesmo. A diminuição dos postos de trabalho
«tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão
do “capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de
credibilidade, de respeito das regras, indispensável em qualquer convivência
civil».[104] Em suma, «os custos humanos são sempre também custos económicos, e
as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos».[105]Renunciar
a investir nas pessoas para se obter maior receita imediata é um péssimo
negócio para a sociedade.
129. Para se conseguir
continuar a dar emprego, é indispensável promover uma economia que favoreça a
diversificação produtiva e a criatividade empresarial. Por exemplo, há uma
grande variedade de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam
a alimentar a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida
de terreno e de água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas
agrícolas e hortas, quer na caça e recolha de produtos silvestres, quer na
pesca artesanal. As economias de larga escala, especialmente no sector
agrícola, acabam por forçar os pequenos agricultores a vender as suas terras ou
a abandonar as suas culturas tradicionais. As tentativas feitas por alguns
deles no sentido de desenvolverem outras formas de produção, mais
diversificadas, resultam inúteis por causa da dificuldade de ter acesso aos
mercados regionais e globais, ou porque a infra-estrutura de venda e transporte
está ao serviço das grandes empresas. As autoridades têm o direito e a
responsabilidade de adoptar medidas de apoio claro e firme aos pequenos
produtores e à diversificação da produção. Às vezes, para que haja uma
liberdade económica da qual todos realmente beneficiem, pode ser necessário pôr
limites àqueles que detêm maiores recursos e poder financeiro. A simples
proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reaisimpedem que
muitos possam efectivamente ter acesso a ela e, ao mesmo tempo, se reduz o
acesso ao trabalho, torna-se um discurso contraditório que desonra a política.
A actividade empresarial, que é uma nobre vocação orientada para produzir
riqueza e melhorar o mundo para todos, pode ser uma maneira muito fecunda de
promover a região onde instala os seus empreendimentos, sobretudo se pensa que
a criação de postos de trabalho é parte imprescindível do seu serviço ao bem
comum.
A inovação biológica a partir
da pesquisa
130. Na visão filosófica e
teológica do ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a
pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria, não é um
factor externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser
humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é
necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os
animais só são legítimas «desde que não ultrapassem os limites do razoável e
contribuam para curar ou poupar vidas humanas».[106] Recorda, com firmeza, que
o poder humano tem limites e que «é contrário à dignidade humana fazer sofrer
inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas».[107] Todo
o uso e experimentação «exige um respeito religioso pela integridade da
criação».[108]
131. Quero recolher aqui a
posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos
progressos científicos e tecnológicos, que «manifestam quanto é nobre a vocação
do homem para participar de modo responsável na acção criadora de Deus», mas ao
mesmo tempo recordava que «toda e qualquer intervenção numa área determinada do
ecossistema não pode prescindir da consideração das suas consequências noutras
áreas».[109] Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição «do estudo e das
aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a
genética e a sua aplicação tecnológica na agricultura e na indústria»,[110]
embora dissesse também que isto não deve levar a uma «indiscriminada
manipulação genética»[111] que ignore os efeitos negativos destas intervenções.
Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a um
artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar
quem possui dons especiais para o progresso científico e tecnológico, cujas
capacidades foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não
se pode deixar de considerar os objectivos, os efeitos, o contexto e os limites
éticos de tal actividade humana que é uma forma de poder com grandes riscos.
132. Neste quadro, deveria
situar-se toda e qualquer reflexão acerca da intervenção humana sobre o mundo
vegetal e animal que implique hoje mutações genéticas geradas pela
biotecnologia, a fim de aproveitar as possibilidades presentes na realidade
material. O respeito da fé pela razão pede para se prestar atenção àquilo que a
própria ciência biológica, desenvolvida independentemente dos interesses
económicos, possa ensinar a propósito das estruturas biológicas e das suas
possibilidades e mutações. Em todo o caso, é legítima uma intervenção que actue
sobre a natureza «para a ajudar a desenvolver-se na sua própria linha, a da
criação, querida por Deus».[112]
133. É difícil emitir um juízo
geral sobre o desenvolvimento de organismos modificados geneticamente (OMG),
vegetais ou animais, para fins medicinais ou agro-pecuários, porque podem ser
muito diferentes entre si e requerer distintas considerações. Além disso, os
riscos nem sempre se devem atribuir à própria técnica, mas à sua aplicação
inadequada ou excessiva. Na realidade, muitas vezes as mutações genéticas foram
e continuam a ser produzidas pela própria natureza. E mesmo as provocadas pelo
ser humano não são um fenómeno moderno. A domesticação de animais, o cruzamento
de espécies e outras práticas antigas e universalmente seguidas podem
incluir-se nestas considerações. É oportuno recordar que o início dos
progressos científicos sobre cereais transgénicos foi a observação de bactérias
que, de forma natural e espontânea, produziam uma modificação no genoma dum
vegetal. Mas, na natureza, estes processos têm um ritmo lento, que não se
compara com a velocidade imposta pelos avanços tecnológicos actuais, mesmo quando
estes avanços se baseiam num desenvolvimento científico de vários séculos.
134. Embora não disponhamos de
provas definitivas acerca do dano que poderiam causar os cereais transgénicos
aos seres humanos e apesar de, nalgumas regiões, a sua utilização ter produzido
um crescimento económico que contribuiu para resolver determinados problemas,
há dificuldades importantes que não devem ser minimizadas. Em muitos lugares,
na sequência da introdução destas culturas, constata-se uma concentração de
terras produtivas nas mãos de poucos, devido ao «progressivo desaparecimento de
pequenos produtores, que, em consequência da perda das terras cultivadas, se
viram obrigados a retirar-se da produção directa».[113] Os mais frágeis deles
tornam-se trabalhadores precários, e muitos assalariados agrícolas acabam por
emigrar para miseráveis aglomerados das cidades. A expansão destas culturas
destrói a complexa trama dos ecossistemas, diminui a diversidade na produção e
afecta o presente ou o futuro das economias regionais. Em vários países,
nota-se uma tendência para o desenvolvimento de oligopólios na produção de
sementes e outros produtos necessários para o cultivo, e a dependência
agrava-se quando se pensa na produção de sementes estéreis que acabam por
obrigar os agricultores a comprá-las às empresas produtoras.
135. Sem dúvida, há
necessidade duma atenção constante, que tenha em consideração todos os aspectos
éticos implicados. Para isso, é preciso assegurar um debate científico e social
que seja responsável e amplo, capaz de considerar toda a informação disponível
e chamar as coisas pelo seu nome. Às vezes não se coloca sobre a mesa a
informação completa, mas é seleccionada de acordo com os próprios interesses,
sejam eles políticos, económicos ou ideológicos. Isto torna difícil elaborar um
juízo equilibrado e prudente sobre as várias questões, tendo presente todas as
variáveis em jogo. É necessário dispor de espaços de debate, onde todos aqueles
que poderiam de algum modo ver-se, directa ou indirectamente, afectados (agricultores,
consumidores, autoridades, cientistas, produtores de sementes, populações
vizinhas dos campos tratados e outros) tenham possibilidade de expor as suas
problemáticas ou ter acesso a uma informação ampla e fidedigna para adoptar
decisões tendentes ao bem comum presente e futuro. A questão dos OMG é uma
questão de carácter complexo, que requer ser abordada com um olhar abrangente
de todos os aspectos; isto exigiria pelo menos um maior esforço para financiar
distintas linhas de pesquisa autónoma e interdisciplinar que possam trazer nova
luz.
136. Além disso, é preocupante
constatar que alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio
ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa
científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes
justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se faz experiências
com embriões humanos vivos. Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é
independente do seu grau de desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os
grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática. Como
vimos neste capítulo, a técnica separada da ética dificilmente será capaz de
autolimitar o seu poder.
CAPÍTULO IV - UMA ECOLOGIA
INTEGRAL
137. Dado que tudo está
intimamente relacionado e que os problemas actuais requerem um olhar que tenha
em conta todos os aspectos da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora
a reflectir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua
claramente as dimensões humanas e sociais.
1. Ecologia ambiental,
económica e social
138. A ecologia estuda as
relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E
isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condições de vida e de
sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de
desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está
interligado. O tempo e o espaço não são independentes entre si; nem os próprios
átomos ou as partículas subatómicas se podem considerar separadamente. Assim
como os vários componentes do planeta – físicos, químicos e biológicos – estão
relacionados entre si, assim também as espécies vivas formam uma trama que
nunca acabaremos de individuar e compreender. Boa parte da nossa informação
genética é partilhada com muitos seres vivos. Por isso, os conhecimentos
fragmentários e isolados podem tornar-se uma forma de ignorância, quando
resistem a integrar-se numa visão mais ampla da realidade.
139. Quando falamos de «meio
ambiente», fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre
a natureza e a sociedade que a habita. Isto impede-nos de considerar a natureza
como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida. Estamos incluídos
nela, somos parte dela e compenetramo-nos. As razões, pelas quais um lugar se
contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia,
do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a
amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e
independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções
integrais que considerem as interacções dos sistemas naturais entre si e com os
sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social;
mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As directrizes para a solução
requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade
aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza.
140. Devido à quantidade e
variedade de elementos a ter em conta na hora de determinar o impacto ambiental
dum empreendimento concreto, torna-se indispensável dar aos pesquisadores um
papel preponderante e facilitar a sua interacção com uma ampla liberdade
académica. Esta pesquisa constante deveria permitir reconhecer também como as
diferentes criaturas se relacionam, formando aquelas unidades maiores que hoje
chamamos «ecossistemas». Temo-los em conta não só para determinar qual é o seu
uso razoável, mas também porque possuem um valor intrínseco, independente de
tal uso. Assim como cada organismo é bom e admirável em si mesmo pelo facto de
ser uma criatura de Deus, o mesmo se pode dizer do conjunto harmónico de
organismos num determinado espaço, funcionando como um sistema. Embora não
tenhamos consciência disso, dependemos desse conjunto para a nossa própria
existência. Convém recordar que os ecossistemas intervêm na retenção do
anidrido carbónico, na purificação da água, na contraposição a doenças e
pragas, na composição do solo, na decomposição dos resíduos, e muitíssimos
outros serviços que esquecemos ou ignoramos. Quando se dão conta disto, muitas
pessoas voltam a tomar consciência de que vivemos e agimos a partir duma
realidade que nos foi previamente dada, que é anterior às nossas capacidades e
à nossa existência. Por isso, quando se fala de «uso sustentável», é preciso
incluir sempre uma consideração sobre a capacidade regenerativa de cada
ecossistema nos seus diversos sectores e aspectos.
141. Além disso, o crescimento
económico tende a gerar automatismos e a homogeneizar, a fim de simplificar os
processos e reduzir os custos. Por isso, é necessária uma ecologia económica,
capaz de induzir a considerar a realidade de forma mais ampla. Com efeito, «a
protecção do meio ambiente deverá constituir parte integrante do processo de
desenvolvimento e não poderá ser considerada isoladamente».[114] Mas, ao mesmo
tempo, torna-se actual a necessidade imperiosa do humanismo, que faz apelo aos
distintos saberes, incluindo o económico, para uma visão mais integral e
integradora. Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise
dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada
pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os
outros e com o meio ambiente. Há uma interacção entre os ecossistemas e entre
os diferentes mundos de referência social e, assim, se demonstra mais uma vez
que «o todo é superior à parte».[115]
142. Se tudo está relacionado,
também o estado de saúde das instituições duma sociedade tem consequências no
ambiente e na qualidade de vida humana: «toda a lesão da solidariedade e da
amizade cívica provoca danos ambientais».[116] Neste sentido, a ecologia social
é necessariamente institucional e progressivamente alcança as diferentes
dimensões, que vão desde o grupo social primário, a família, até à vida
internacional, passando pela comunidade local e a nação. Dentro de cada um dos
níveis sociais e entre eles, desenvolvem-se as instituições que regulam as relações
humanas. Tudo o que as danifica comporta efeitos nocivos, como a perda da
liberdade, a injustiça e a violência. Vários países são governados por um
sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo e para benefício
daqueles que lucram com este estado de coisas. Tanto dentro da administração do
Estado, como nas diferentes expressões da sociedade civil, ou nas relações dos
habitantes entre si, registam-se, com demasiada frequência, comportamentos
ilegais. As leis podem estar redigidas de forma correcta, mas muitas vezes
permanecem letra morta. Poder-se-á, assim, esperar que a legislação e as
normativas relativas ao meio ambiente sejam realmente eficazes? Sabemos, por
exemplo, que países dotados duma legislação clara sobre a protecção das florestas
continuam a ser testemunhas mudas da sua frequente violação. Além disso, o que
acontece numa região influi, directa ou indirectamente, nas outras regiões.
Assim, por exemplo, o consumo de drogas nas sociedades opulentas provoca uma
constante ou crescente procura de produtos que provêm de regiões empobrecidas,
onde se corrompem comportamentos, se destroem vidas e se acaba por degradar o
meio ambiente.
2. Ecologia cultural
143. A par do património
natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e
cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para
construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades
hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É
preciso integrar a história, a cultura e a arquitectura dum lugar,
salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o
cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo. Mais
directamente, pede que se preste atenção às culturas locais, quando se analisam
questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a linguagem
técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como
os monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e
participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser
humano com o meio ambiente.
144. A visão consumista do ser
humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada actual, tende a
homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um
tesouro da humanidade. Por isso, pretender resolver todas as dificuldades
através de normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a
negligenciar a complexidade das problemáticas locais, que requerem a
participação activa dos habitantes. Os novos processos em gestação nem sempre
se podem integrar dentro de modelos estabelecidos do exterior, mas hão-de ser
provenientes da própria cultura local. Assim como a vida e o mundo são
dinâmicos, assim também o cuidado do mundo deve ser flexível e dinâmico. As
soluções meramente técnicas correm o risco de tomar em consideração sintomas
que não correspondem às problemáticas mais profundas. É preciso assumir a
perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de
compreender que o desenvolvimento dum grupo social supõe um processo histórico
no âmbito dum contexto cultural e requer constantemente o protagonismo dos
actores sociais locais a partir da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da
qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de
símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano.
145. Muitas formas de intensa
exploração e degradação do meio ambiente podem esgotar não só os meios locais
de subsistência, mas também os recursos sociais que consentiram um modo de
viver que sustentou, durante longo tempo, uma identidade cultural e um sentido
da existência e da convivência social. O desaparecimento duma cultura pode ser
tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou vegetal. A
imposição dum estilo hegemónico de vida ligado a um modo de produção pode ser
tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.
146. Neste sentido, é
indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as
suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem
tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com
grandes projectos que afectam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra
não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela
descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua
identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são
quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objecto de pressões
para que abandonem suas terras e as deixem livres para projectos extractivos e
agro-pecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.
3. Ecologia da vida quotidiana
147. Para se poder falar de
autêntico progresso, será preciso verificar que se produza uma melhoria global
na qualidade de vida humana; isto implica analisar o espaço onde as pessoas
transcorrem a sua existência. Os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa
maneira de ver a vida, sentir e agir. Ao mesmo tempo, no nosso quarto, na nossa
casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso bairro, usamos o ambiente para
exprimir a nossa identidade. Esforçamo-nos por nos adaptar ao ambiente e,
quando este aparece desordenado, caótico ou cheio de poluição visiva e
acústica, o excesso de estímulos põe à prova as nossas tentativas de
desenvolver uma identidade integrada e feliz.
148. Admirável é a
criatividade e generosidade de pessoas e grupos que são capazes de dar a volta
às limitações do ambiente, modificando os efeitos adversos dos condicionalismos
e aprendendo a orientar a sua existência no meio da desordem e precariedade.
Por exemplo, nalguns lugares onde as fachadas dos edifícios estão muito
deterioradas, há pessoas que cuidam com muita dignidade o interior das suas
habitações, ou que se sentem bem pela cordialidade e amizade das pessoas. A
vida social positiva e benfazeja dos habitantes enche de luz um ambiente à primeira
vista inabitável. É louvável a ecologia humana que os pobres conseguem
desenvolver, no meio de tantas limitações. A sensação de sufocamento, produzida
pelos aglomerados residenciais e pelos espaços com alta densidade populacional,
é contrastada se se desenvolvem calorosas relações humanas de vizinhança, se se
criam comunidades, se as limitações ambientais são compensadas na interioridade
de cada pessoa que se sente inserida numa rede de comunhão e pertença. Deste
modo, qualquer lugar deixa de ser um inferno e torna-se o contexto duma vida
digna.
149. Inversamente está provado
que a penúria extrema vivida nalguns ambientes privados de harmonia,
magnanimidade e possibilidade de integração, facilita o aparecimento de
comportamentos desumanos e a manipulação das pessoas por organizações
criminosas. Para os habitantes de bairros periféricos muito precários, a
experiência diária de passar da superlotação ao anonimato social, que se vive
nas grandes cidades, pode provocar uma sensação de desenraizamento que favorece
comportamentos anti-sociais e violência. Todavia tenho a peito reiterar que o
amor é mais forte. Muitas pessoas, nestas condições, são capazes de tecer laços
de pertença e convivência que transformam a superlotação numa experiência
comunitária, onde se derrubam os muros do eu e superam as barreiras do egoísmo.
Esta experiência de salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reacções
criativas para melhorar um edifício ou um bairro.[117]
150. Dada a relação entre os
espaços urbanizados e o comportamento humano, aqueles que projectam edifícios,
bairros, espaços públicos e cidades precisam da contribuição dos vários saberes
que permitem compreender os processos, o simbolismo e os comportamentos das
pessoas. Não é suficiente a busca da beleza no projecto, porque tem ainda mais
valor servir outro tipo de beleza: a qualidade de vida das pessoas, a sua
harmonia com o ambiente, o encontro e ajuda mútua. Por isso também, é tão
importante que o ponto de vista dos habitantes do lugar contribua sempre para a
análise da planificação urbanista.
151. É preciso cuidar dos
espaços comuns, dos marcos visuais e das estruturas urbanas que melhoram o
nosso sentido de pertença, a nossa sensação de enraizamento, o nosso sentimento
de «estar em casa» dentro da cidade que nos envolve e une. É importante que as
diferentes partes duma cidade estejam bem integradas e que os habitantes possam
ter uma visão de conjunto em vez de se encerrarem num bairro, renunciando a
viver a cidade inteira como um espaço próprio partilhado com os outros. Toda a
intervenção na paisagem urbana ou rural deveria considerar que os diferentes
elementos do lugar formam um todo, sentido pelos habitantes como um contexto
coerente com a sua riqueza de significados. Assim, os outros deixam de ser estranhos
e podemos senti-los como parte de um «nós» que construímos juntos. Pela mesma
razão, tanto no meio urbano como no rural, convém preservar alguns espaços onde
se evitem intervenções humanas que os alterem constantemente.
152. A falta de habitação é grave
em muitas partes do mundo, tanto nas áreas rurais como nas grandes cidades,
nomeadamente porque os orçamentos estatais em geral cobrem apenas uma pequena
parte da procura. E não só os pobres, mas uma grande parte da sociedade
encontra sérias dificuldades para ter uma casa própria. A propriedade da casa
tem muita importância para a dignidade das pessoas e o desenvolvimento das
famílias. Trata-se duma questão central da ecologia humana. Se num lugar
concreto já se desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias, trata-se
primariamente de urbanizar estes bairros, não de erradicar e expulsar os
habitantes. Mas, quando os pobres vivem em subúrbios poluídos ou aglomerados
perigosos, «no caso de ter de se proceder à sua deslocação, para não acrescentar
mais sofrimento ao que já padecem, é necessário fornecer-lhes uma adequada e
prévia informação, oferecer-lhes alternativas de alojamentos dignos e envolver
directamente os interessados».[118] Ao mesmo tempo, a criatividade deveria
levar à integração dos bairros precários numa cidade acolhedora: «Como são
belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são
diferentes, fazendo desta integração um novo factor de progresso! Como são
encantadoras as cidades que, já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de
espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!»[119]
153. Nas cidades, a qualidade
de vida está largamente relacionada com os transportes, que muitas vezes são
causa de grandes tribulações para os habitantes. Nelas, circulam muitos carros
utilizados por uma ou duas pessoas, pelo que o tráfico torna-se intenso,
eleva-se o nível de poluição, consomem-se enormes quantidades de energia
não-renovável e torna-se necessário a construção de mais estradas e parques de
estacionamento que prejudicam o tecido urbano. Muitos especialistas estão de
acordo sobre a necessidade de dar prioridade ao transporte público. Mas é
difícil que algumas medidas consideradas necessárias sejam pacificamente
acolhidas pela sociedade, sem uma melhoria substancial do referido transporte,
que, em muitas cidades, comporta um tratamento indigno das pessoas devido à
superlotação, ao desconforto, ou à reduzida frequência dos serviços e à
insegurança.
154. O reconhecimento da
dignidade peculiar do ser humano contrasta frequentemente com a vida caótica
que têm de fazer as pessoas nas nossas cidades. Mas isto não deveria levar a
esquecer o estado de abandono e desleixo que sofrem também alguns habitantes
das áreas rurais, onde não chegam os serviços essenciais e há trabalhadores
reduzidos a situações de escravidão, sem direitos nem expectativas duma vida
mais dignificante.
155. A ecologia humana implica
também algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um
ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a
lei moral inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia que existe uma
«ecologia do homem», porque «também o homem possui uma natureza, que deve
respeitar e não pode manipular como lhe apetece».[120] Nesta linha, é preciso
reconhecer que o nosso corpo nos põe em relação directa com o meio ambiente e
com os outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é
necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum;
pelo contrário, uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa
lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o
próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial
para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo
próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a
si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com
alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e
enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda
«cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela».[121]
4. O princípio do bem comum
156. A ecologia humana é
inseparável da noção de bem comum, princípio este que desempenha um papel
central e unificador na ética social. É «o conjunto das condições da vida
social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e
facilmente a própria perfeição».[122]
157. O bem comum pressupõe o
respeito pela pessoa humana enquanto tal, com direitos fundamentais e
inalienáveis orientados para o seu desenvolvimento integral. Exige também os
dispositivos de bem-estar e segurança social e o desenvolvimento dos vários
grupos intermédios, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre tais
grupos, destaca-se de forma especial a família enquanto célula basilar da
sociedade. Por fim, o bem comum requer a paz social, isto é, a estabilidade e a
segurança de uma certa ordem, que não se realiza sem uma atenção particular à
justiça distributiva, cuja violação gera sempre violência. Toda a sociedade –
e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem
comum.
158. Nas condições actuais da
sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas
as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio
do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um
apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção
implica tirar as consequências do destino comum dos bens da terra, mas – como
procurei mostrar na exortação apostólica Evangelii gaudium [123] – exige acima
de tudo contemplar a imensa dignidade do pobre à luz das mais profundas
convicções de fé. Basta observar a realidade para compreender que, hoje, esta
opção é uma exigência ética fundamental para a efectiva realização do bem
comum.
5. A justiça intergeneracional
159. A noção de bem comum
engloba também as gerações futuras. As crises económicas internacionais
mostraram, de forma atroz, os efeitos nocivos que traz consigo o
desconhecimento de um destino comum, do qual não podem ser excluídos aqueles
que virão depois de nós. Já não se pode falar de desenvolvimento sustentável
sem uma solidariedade intergeneracional. Quando pensamos na situação em que se
deixa o planeta às gerações futuras, entramos noutra lógica: a do dom gratuito,
que recebemos e comunicamos. Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a
partir dum critério utilitarista de eficiência e produtividade para lucro
individual. Não estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão
essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que hão-de
vir. Os bispos de Portugal exortaram a assumir este dever de justiça: «O
ambiente situa-se na lógica da recepção. É um empréstimo que cada geração
recebe e deve transmitir à geração seguinte».[124] Uma ecologia integral possui
esta perspectiva ampla.
160. Que tipo de mundo
queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta
pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode
pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo
que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu
sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio
que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes. Mas,
se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras
questões muito directas: Com que finalidade passamos por este mundo? Para que
viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Que necessidade tem de nós
esta terra? Por isso, já não basta dizer que devemos preocupar-nos com as
gerações futuras; exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade
que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta
habitável para a humanidade que nos vai suceder. Trata-se de um drama para nós
mesmos, porque isto chama em causa o significado da nossa passagem por esta
terra.
161. As previsões
catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia. Às próximas
gerações, poderíamos deixar demasiadas ruínas, desertos e lixo. O ritmo de
consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as
possibilidades do planeta, que o estilo de vida actual – por ser insustentável
– só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer
periodicamente em várias regiões. A atenuação dos efeitos do desequilíbrio
actual depende do que fizermos agora, sobretudo se pensarmos na
responsabilidade que nos atribuirão aqueles que deverão suportar as piores
consequências.
162. A dificuldade em levar a
sério este desafio tem a ver com uma deterioração ética e cultural, que
acompanha a deterioração ecológica. O homem e a mulher deste mundo pós-moderno
correm o risco permanente de se tornar profundamente individualistas, e muitos
problemas sociais de hoje estão relacionados com a busca egoísta duma
satisfação imediata, com as crises dos laços familiares e sociais, com as
dificuldades em reconhecer o outro. Muitas vezes há um consumo excessivo e
míope dos pais que prejudica os próprios filhos, que sentem cada vez mais
dificuldade em comprar casa própria e fundar uma família. Além disso esta falta
de capacidade para pensar seriamente nas futuras gerações está ligada com a
nossa incapacidade de alargar o horizonte das nossas preocupações e pensar
naqueles que permanecem excluídos do desenvolvimento. Não percamos tempo a
imaginar os pobres do futuro, é suficiente que recordemos os pobres de hoje,
que poucos anos têm para viver nesta terra e não podem continuar a esperar. Por
isso, «para além de uma leal solidariedade entre as gerações, há que reafirmar
a urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade entre os indivíduos
da mesma geração».[125]
CAPÍTULO V - ALGUMAS LINHAS DE
ORIENTAÇÃO E ACÇÃO
163. Procurei examinar a
situação actual da humanidade, tanto nas brechas do planeta que habitamos, como
nas causas mais profundamente humanas da degradação ambiental. Embora esta
contemplação da realidade em si mesma já nos indique a necessidade duma mudança
de rumo e sugira algumas acções, procuremos agora delinear grandes percursos de
diálogo que nos ajudem a sair da espiral de autodestruição onde estamos a
afundar.
1. O diálogo sobre o meio
ambiente na política internacional
164. Desde meados do século
passado e superando muitas dificuldades, foi-se consolidando a tendência de
conceber o planeta como pátria e a humanidade como povo que habita uma casa
comum. Um mundo interdependente não significa unicamente compreender que as consequências
danosas dos estilos de vida, produção e consumo afectam a todos, mas
principalmente procurar que as soluções sejam propostas a partir duma
perspectiva global e não apenas para defesa dos interesses de alguns países. A
interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projecto comum. Mas,
a mesma inteligência que foi utilizada para um enorme desenvolvimento
tecnológico não consegue encontrar formas eficazes de gestão internacional para
resolver as graves dificuldades ambientais e sociais. Para enfrentar os
problemas de fundo, que não se podem resolver com acções de países isolados,
torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar
uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas de energia renováveis
e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética, promover uma
gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir a todos o
acesso à água potável.
165. Sabemos que a tecnologia
baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas
também o petróleo e, em menor medida, o gás – deve ser, progressivamente e sem
demora, substituída. Enquanto aguardamos por um amplo desenvolvimento das
energias renováveis, que já deveria ter começado, é legítimo optar pelo mal
menor ou recorrer a soluções transitórias. Todavia, na comunidade
internacional, não se consegue suficiente acordo sobre a responsabilidade de
quem deve suportar os maiores custos da transição energética. Nas últimas
décadas, as questões ambientais deram origem a um amplo debate público, que fez
crescer na sociedade civil espaços de notável compromisso e generosa dedicação.
A política e a indústria reagem com lentidão, longe de estar à altura dos
desafios mundiais. Neste sentido, pode-se dizer que, enquanto a humanidade do
período pós-industrial talvez fique recordada como uma das mais irresponsáveis
da história, espera-se que a humanidade dos inícios do século XXI possa ser
lembrada por ter assumido com generosidade as suas graves responsabilidades.
166. O movimento ecológico
mundial já percorreu um longo caminho, enriquecido pelo esforço de muitas
organizações da sociedade civil. Não seria possível mencioná-las todas aqui,
nem repassar a história das suas contribuições. Mas, graças a tanta dedicação,
as questões ambientais têm estado cada vez mais presentes na agenda pública e
tornaram-se um convite permanente a pensar a longo prazo. Apesar disso, as
cimeiras mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às
expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos
ambientais globais realmente significativos e eficazes.
167. Dentre elas, há que
recordar a Cimeira da Terra, celebrada em 1992 no Rio de Janeiro. Lá se
proclamou que «os seres humanos constituem o centro das preocupações
relacionadas com o desenvolvimento sustentável».[126] Retomando alguns
conteúdos da Declaração de Estocolmo (1972), sancionou, entre outras coisas, a
cooperação internacional no cuidado do ecossistema de toda a terra, a obrigação
de quem contaminar assumir economicamente os custos derivados, o dever de
avaliar o impacto ambiental de toda e qualquer obra ou projecto. Propôs o
objectivo de estabilizar as concentrações de gases com efeito de estufa na
atmosfera para inverter a tendência do aquecimento global. Também elaborou uma
agenda com um programa de acção e uma convenção sobre biodiversidade, declarou
princípios em matéria florestal. Embora tal cimeira marcasse um passo em frente
e fosse verdadeiramente profética para a sua época, os acordos tiveram um baixo
nível de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de
controle, revisão periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados
continuam a requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática.
168. Como experiências
positivas, pode-se mencionar, por exemplo, a Convenção de Basileia sobre os
resíduos perigosos, com um sistema de notificação, níveis estipulados e
controles, e também a Convenção vinculante sobre o comércio internacional das
espécies da fauna e da flora selvagens ameaçadas de extinção, que prevê missões
de verificação do seu efectivo cumprimento. Graças à Convenção de Viena para a
protecção da camada de ozono e a respectiva implementação através do Protocolo
de Montreal e as suas emendas, o problema da diminuição da referida camada
parece ter entrado numa fase de solução.
169. No cuidado da
biodiversidade e no contraste à desertificação, os avanços foram muito menos
significativos. Relativamente às mudanças climáticas, os progressos são, infelizmente,
muito escassos. A redução de gases com efeito de estufa requer honestidade,
coragem e responsabilidade, sobretudo dos países mais poderosos e mais
poluentes. A Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável,
chamada Rio+20 (Rio de Janeiro 2012), emitiu uma Declaração Final extensa mas
ineficaz. As negociações internacionais não podem avançar significativamente
por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais
sobre o bem comum global. Aqueles que hão-de sofrer as consequências que
tentamos dissimular, recordarão esta falta de consciência e de
responsabilidade. Durante o período de elaboração desta encíclica, o debate
adquiriu particular intensidade. Nós, crentes, não podemos deixar de rezar a
Deus pela evolução positiva nos debates actuais, para que as gerações futuras
não sofram as consequências de demoras imprudentes.
170. Algumas das estratégias
para a baixa emissão de gases poluentes apostam na internacionalização dos
custos ambientais, com o perigo de impor aos países de menores recursos pesados
compromissos de redução de emissões comparáveis aos dos países mais
industrializados. A imposição destas medidas penaliza os países mais
necessitados de desenvolvimento. Assim, acrescenta-se uma nova injustiça sob a
capa do cuidado do meio ambiente. Como sempre, a corda quebra pelo ponto mais
fraco. Uma vez que os efeitos das mudanças climáticas se farão sentir durante
muito tempo, mesmo que agora sejam tomadas medidas rigorosas, alguns países com
escassos recursos precisarão de ajuda para se adaptar a efeitos que já estão a
produzir-se e afectam as suas economias. É verdade que há responsabilidades
comuns, mas diferenciadas, pelo simples motivo – como disseram os bispos da
Bolívia – que «os países que foram beneficiados por um alto grau de
industrialização, à custa duma enorme emissão de gases com efeito de estufa,
têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que
causaram».[127]
171. A estratégia de
compra-venda de «créditos de emissão» pode levar a uma nova forma de
especulação, que não ajudaria a reduzir a emissão global de gases poluentes.
Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a aparência dum certo
compromisso com o meio ambiente, mas que não implica de forma alguma uma
mudança radical à altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um
diversivo que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e
sectores.
172. Para os países pobres, as
prioridades devem ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos
seus habitantes; ao mesmo tempo devem examinar o nível escandaloso de consumo
de alguns sectores privilegiados da sua população e contrastar melhor a
corrupção. Sem dúvida, devem também desenvolver formas menos poluentes de
produção de energia, mas para isso precisam de contar com a ajuda dos países
que cresceram muito à custa da actual poluição do planeta. O aproveitamento
directo da energia solar, tão abundante, exige que se estabeleçam mecanismos e
subsídios tais, que os países em vias de desenvolvimento possam ter acesso à
transferência de tecnologias, assistência técnica e recursos financeiros, mas
sempre prestando atenção às condições concretas, pois «nem sempre se avalia
adequadamente a compatibilidade dos sistemas com o contexto para o qual são
projectados».[128] Os custos seriam baixos se comparados com os riscos das
mudanças climáticas. Em todo o caso, trata-se primariamente duma decisão ética,
fundada na solidariedade de todos os povos.
173. Urgem acordos
internacionais que se cumpram, dada a escassa capacidade das instâncias locais
para intervirem de maneira eficaz. As relações entre os Estados devem
salvaguardar a soberania de cada um, mas também estabelecer caminhos
consensuais para evitar catástrofes locais que acabariam por danificar a todos.
São necessários padrões reguladores globais que imponham obrigações e impeçam
acções inaceitáveis, como o facto de países poderosos descarregarem, sobre
outros países, resíduos e indústrias altamente poluentes.
174. Mencionemos também o
sistema de governança dos oceanos. Com efeito, embora tenha havido várias
convenções internacionais e regionais, a fragmentação e a falta de severos
mecanismos de regulamentação, controle e sanção acabam por minar todos os
esforços. O problema crescente dos resíduos marinhos e da protecção das áreas
marinhas para além das fronteiras nacionais continua a representar um desafio
especial. Em definitivo, precisamos de um acordo sobre os regimes de governança
para toda a gama dos chamados bens comuns globais.
175. A lógica que dificulta a
tomada de decisões drásticas para inverter a tendência ao aquecimento global é
a mesma que não permite cumprir o objectivo de erradicar a pobreza. Precisamos
duma reacção global mais responsável, que implique enfrentar, contemporaneamente,
a redução da poluição e o desenvolvimento dos países e regiões pobres. O século
XXI, mantendo um sistema de governança próprio de épocas passadas, assiste a
uma perda de poder dos Estados nacionais, sobretudo porque a dimensão económico-financeira,
de carácter transnacional, tende a prevalecer sobre a política. Neste contexto,
torna-se indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e
eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por
meio de acordos entre os governos nacionais e dotadas de poder de sancionar.
Com afirmou Bento XVI, na linha desenvolvida até agora pela doutrina social da
Igreja, «para o governo da economia mundial, para sanar as economias atingidas
pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e consequentes maiores
desequilíbrios, para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança
alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar
os fluxos migratórios urge a presença de uma verdadeira Autoridade política
mundial, delineada já pelo meu predecessor, [São] João XXIII».[129] Nesta
perspectiva, a diplomacia adquire uma importância inédita, chamada a promover
estratégias internacionais para prevenir os problemas mais graves que acabam por
afectar a todos.
2. O diálogo para novas
políticas nacionais e locais
176. Há vencedores e vencidos
não só entre os países, mas também dentro dos países pobres, onde se devem
identificar as diferentes responsabilidades. Por isso, as questões relacionadas
com o meio ambiente e com o desenvolvimento económico já não se podem olhar
apenas a partir das diferenças entre os países, mas exigem que se preste
atenção às políticas nacionais e locais.
177. Perante a possibilidade
duma utilização irresponsável das capacidades humanas, são funções inadiáveis
de cada Estado planificar, coordenar, vigiar e sancionar dentro do respectivo
território. Como pode a sociedade organizar e salvaguardar o seu futuro num
contexto de constantes inovações tecnológicas? Um factor que actua como
moderador efectivo é o direito, que estabelece as regras para as condutas
permitidas à luz do bem comum. Os limites que uma sociedade sã, madura e
soberana deve impor têm a ver com previsão e precaução, regulamentações
adequadas, vigilância sobre a aplicação das normas, contraste da corrupção,
acções de controle operacional sobre o aparecimento de efeitos não desejados
dos processos de produção, e oportuna intervenção perante riscos incertos ou
potenciais. Existe uma crescente jurisprudência que visa reduzir os efeitos
poluentes dos empreendimentos. Mas a estrutura política e institucional não
existe apenas para evitar malversações, mas para incentivar as boas práticas,
estimular a criatividade que busca novos caminhos, facilitar as iniciativas
pessoais e colectivas.
178. O drama duma política
focalizada nos resultados imediatos, apoiada também por populações consumistas,
torna necessário produzir crescimento a curto prazo. Respondendo a interesses
eleitorais, os governos não se aventuram facilmente a irritar a população com
medidas que possam afectar o nível de consumo ou pôr em risco investimentos
estrangeiros. A construção míope do poder frena a inserção duma agenda
ambiental com visão ampla na agenda pública dos governos. Esquece-se, assim,
que «o tempo é superior ao espaço»[130] e que sempre somos mais fecundos quando
temos maior preocupação por gerar processos do que por dominar espaços de
poder. A grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha
com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo. O poder
político tem muita dificuldade em assumir este dever num projecto de nação.
179. Nalguns lugares, estão a
desenvolver-se cooperativas para a exploração de energias renováveis, que
consentem o auto-abastecimento local e até mesmo a venda da produção em
excesso. Este exemplo simples indica que, enquanto a ordem mundial existente se
revela impotente para assumir responsabilidades, a instância local pode fazer a
diferença. Com efeito, aqui é possível gerar uma maior responsabilidade, um
forte sentido de comunidade, uma especial capacidade de solicitude e uma
criatividade mais generosa, um amor apaixonado pela própria terra, tal como se
pensa naquilo que se deixa aos filhos e netos. Estes valores têm um
enraizamento muito profundo nas populações aborígenes. Dado que o direito por
vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma decisão política
sob pressão da população. A sociedade, através de organismos não-governamentais
e associações intermédias, deve forçar os governos a desenvolver normativas,
procedimentos e controles mais rigorosos. Se os cidadãos não controlam o poder
político – nacional, regional e municipal –, também não é possível combater os
danos ambientais. Além disso, as legislações municipais podem ser mais
eficazes, se houver acordos entre populações vizinhas para sustentarem as
mesmas políticas ambientais.
180. Não se pode pensar em
receitas uniformes, porque há problemas e limites específicos de cada país ou
região. Também é verdade que o realismo político pode exigir medidas e
tecnologias de transição, desde que estejam acompanhadas pelo projecto e a
aceitação de compromissos graduais vinculativos. Ao mesmo tempo, porém, a nível
nacional e local, há sempre muito que fazer, como, por exemplo, promover formas
de poupança energética. Isto implica favorecer modalidades de produção
industrial com a máxima eficiência energética e menor utilização de
matérias-primas, retirando do mercado os produtos pouco eficazes do ponto de
vista energético ou mais poluentes. Podemos mencionar também uma boa gestão dos
transportes ou técnicas de construção e restruturação de edifícios que reduzam
o seu consumo energético e o seu nível de poluição. Além disso, a acção
política local pode orientar-se para a alteração do consumo, o desenvolvimento
duma economia de resíduos e reciclagem, a protecção de determinadas espécies e
a programação duma agricultura diversificada com a rotação de culturas. É
possível favorecer a melhoria agrícola de regiões pobres, através de
investimentos em infra-estruturas rurais, na organização do mercado local ou
nacional, em sistemas de irrigação, no desenvolvimento de técnicas agrícolas
sustentáveis. Podem-se facilitar formas de cooperação ou de organização
comunitária que defendam os interesses dos pequenos produtores e salvaguardem
da predação os ecossistemas locais. É tanto o que se pode fazer!
181. Indispensável é a
continuidade, porque não se podem modificar as políticas relativas às
alterações climáticas e à protecção ambiental todas as vezes que muda um
governo. Os resultados requerem muito tempo e comportam custos imediatos com
efeitos que não poderão ser exibidos no período de vida dum governo. Por isso,
sem a pressão da população e das instituições, haverá sempre relutância a
intervir, e mais ainda quando houver urgências a resolver. Para um político,
assumir estas responsabilidades com os custos que implicam não corresponde à
lógica eficientista e imediatista actual da economia e da política, mas, se ele
tiver a coragem de o fazer, poderá novamente reconhecer a dignidade que Deus
lhe deu como pessoa e deixará, depois da sua passagem por esta história, um
testemunho de generosa responsabilidade. Importa dar um lugar preponderante a
uma política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e
dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias
viciosas. Todavia é preciso acrescentar que os melhores dispositivos acabam por
sucumbir, quando faltam as grandes metas, os valores, uma compreensão humanista
e rica de significado, capazes de conferir a cada sociedade uma orientação
nobre e generosa.
3. Diálogo e transparência nos
processos decisórios
182. A previsão do impacto
ambiental dos empreendimentos e projectos requer processos políticos
transparentes e sujeitos a diálogo, enquanto a corrupção, que esconde o
verdadeiro impacto ambiental dum projecto em troca de favores, frequentemente
leva a acordos ambíguos que fogem ao dever de informar e a um debate profundo.
183. Um estudo de impacto
ambiental não deveria ser posterior à elaboração dum projecto produtivo ou de
qualquer política, plano ou programa. Há-de inserir-se desde o princípio e
elaborar-se de forma interdisciplinar, transparente e independente de qualquer
pressão económica ou política. Deve aparecer unido à análise das condições de
trabalho e dos possíveis efeitos na saúde física e mental das pessoas, na
economia local, na segurança. Assim os resultados económicos poder-se-ão prever
de forma mais realista, tendo em conta os cenários possíveis e, eventualmente,
antecipando a necessidade dum investimento maior para resolver efeitos
indesejáveis que possam ser corrigidos. É sempre necessário alcançar consenso
entre os vários actores sociais, que podem trazer diferentes perspectivas,
soluções e alternativas. Mas, no debate, devem ter um lugar privilegiado os
moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si
e para os seus filhos e podem ter em consideração as finalidades que
transcendem o interesse económico imediato. É preciso abandonar a ideia de
«intervenções» sobre o meio ambiente, para dar lugar a políticas pensadas e
debatidas por todas as partes interessadas. A participação requer que todos
sejam adequadamente informados sobre os vários aspectos e os diferentes riscos
e possibilidades, e não se reduza à decisão inicial sobre um projecto, mas
implique também acções de controle ou monitoramento constante. É necessário
haver sinceridade e verdade nas discussões científicas e políticas, sem se
limitar a considerar o que é permitido ou não pela legislação.
184. Quando surgem eventuais
riscos para o meio ambiente que afectam o bem comum presente e futuro, esta
situação exige «que as decisões sejam baseadas num confronto entre riscos e
benefícios previsíveis para cada opção alternativa possível».[131] Isto vale
sobretudo quando um projecto pode causar um incremento na exploração dos
recursos naturais, nas emissões ou descargas, na produção de resíduos, ou então
uma mudança significativa na paisagem, no habitat de espécies protegidas ou num
espaço público. Alguns projectos, não apoiados por uma análise bem cuidada,
podem afectar profundamente a qualidade de vida dum lugar, devido a questões
muito diferentes entre si, como, por exemplo, uma poluição acústica não
prevista, a redução do horizonte visual, a perda de valores culturais, os
efeitos do uso da energia nuclear. A cultura consumista, que dá prioridade ao
curto prazo e aos interesses privados, pode favorecer análises demasiado
rápidas ou consentir a ocultação de informação.
185. Em qualquer discussão
sobre um empreendimento, dever-se-ia pôr uma série de perguntas, para poder
discernir se o mesmo levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: Para
que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são
os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como o fará? Neste exame, há
questões que devem ter prioridade. Por exemplo, sabemos que a água é um recurso
escasso e indispensável, sendo um direito fundamental que condiciona o
exercício doutros direitos humanos. Isto está, sem dúvida, acima de toda a
análise de impacto ambiental duma região.
186. Na Declaração do Rio, de
1992, afirma-se que, «quando existem ameaças de danos graves ou irreversíveis,
a falta de certezas científicas absolutas não poderá constituir um motivo para
adiar a adopção de medidas eficazes»[132] que impeçam a degradação do meio
ambiente. Este princípio de precaução permite a protecção dos mais fracos, que
dispõem de poucos meios para se defender e fornecer provas irrefutáveis. Se a
informação objectiva leva a prever um dano grave e irreversível, mesmo que não
haja uma comprovação indiscutível, seja o projecto que for deverá suspender-se
ou modificar-se. Assim, inverte-se o ónus da prova, já que, nestes casos, é
preciso fornecer uma demonstração objectiva e contundente de que a actividade
proposta não vai gerar danos graves ao meio ambiente ou às pessoas que nele
habitam.
187. Isto não implica opor-se
a toda e qualquer inovação tecnológica que permita melhorar a qualidade de vida
duma população. Mas, em todo o caso, deve permanecer de pé que a rentabilidade
não pode ser o único critério a ter em conta e, na hora em que aparecessem
novos elementos de juízo a partir de ulteriores dados informativos, deveria
haver uma nova avaliação com a participação de todas as partes interessadas. O
resultado do debate pode ser a decisão de não avançar num projecto, mas poderia
ser também a sua modificação ou a elaboração de propostas alternativas.
188. Há discussões sobre
problemas relativos ao meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso.
Repito uma vez mais que a Igreja não pretende definir as questões científicas
nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente,
para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum.
4. Política e economia em
diálogo para a plenitude humana
189. A política não deve
submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma
eficientista da tecnocracia. Pensando no bem comum, hoje precisamos imperiosamente
que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço
da vida, especialmente da vida humana. A salvação dos bancos a todo o custo,
fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o
sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e
só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura. A
crise financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma
nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação
da actividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma
reacção que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o
mundo. A produção não é sempre racional, e muitas vezes está ligada a variáveis
económicas que atribuem aos produtos um valor que não corresponde ao seu valor
real. Isto leva frequentemente a uma superprodução dalgumas mercadorias, com um
impacto ambiental desnecessário, que simultaneamente danifica muitas economias
regionais.[133] Habitualmente, a bolha financeira é também uma bolha produtiva.
Em suma, o que não se enfrenta com energia é o problema da economia real,
aquela que torna possível, por exemplo, que se diversifique e melhore a
produção, que as empresas funcionem adequadamente, que as pequenas e médias
empresas se desenvolvam e criem postos de trabalho.
190. Neste contexto, sempre se
deve recordar que «a protecção ambiental não pode ser assegurada somente com
base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que
os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente».[134]
Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado, que
tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros
das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem está obcecado
com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que
deixará às próximas gerações? Dentro do esquema do ganho não há lugar para
pensar nos ritmos da natureza, nos seus tempos de degradação e regeneração, e
na complexidade dos ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela
intervenção humana. Além disso, quando se fala de biodiversidade, no máximo
pensa-se nela como um reservatório de recursos económicos que poderia ser
explorado, mas não se considera seriamente o valor real das coisas, o seu
significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos
pobres.
191. Quando se colocam estas
questões, alguns reagem acusando os outros de pretender parar, irracionalmente,
o progresso e o desenvolvimento humano. Mas temos de nos convencer que, reduzir
um determinado ritmo de produção e consumo, pode dar lugar a outra modalidade
de progresso e desenvolvimento. Os esforços para um uso sustentável dos
recursos naturais não são gasto inútil, mas um investimento que poderá proporcionar
outros benefícios económicos a médio prazo. Se não temos vista curta, podemos
descobrir que pode ser muito rentável a diversificação duma produção mais
inovadora e com menor impacto ambiental. Trata-se de abrir caminho a
oportunidades diferentes, que não implicam frenar a criatividade humana nem o
seu sonho de progresso, mas orientar esta energia por novos canais.
192. Por exemplo, um percurso
de desenvolvimento produtivo mais criativo e melhor orientado poderia corrigir
a disparidade entre o excessivo investimento tecnológico no consumo e o escasso
investimento para resolver os problemas urgentes da humanidade; poderia gerar
formas inteligentes e rentáveis de reutilização, recuperação funcional e
reciclagem; poderia melhorar a eficiência energética das cidades... A
diversificação produtiva oferece à inteligência humana possibilidades muito
amplas de criar e inovar, ao mesmo tempo que protege o meio ambiente e cria
mais oportunidades de trabalho. Esta seria uma criatividade capaz de fazer
reflorescer a nobreza do ser humano, porque é mais dignificante usar a
inteligência, com audácia e responsabilidade, para encontrar formas de
desenvolvimento sustentável e equitativo, no quadro duma concepção mais ampla
da qualidade de vida. Ao contrário, é menos dignificante e criativo e mais
superficial insistir na criação de formas de espoliação da natureza só para
oferecer novas possibilidades de consumo e de ganho imediato.
193. Assim, se nalguns casos o
desenvolvimento sustentável implicará novas modalidades para crescer, noutros
casos – face ao crescimento ganancioso e irresponsável, que se verificou ao
longo de muitas décadas – devemos pensar também em abrandar um pouco a marcha,
pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde. Sabemos
que é insustentável o comportamento daqueles que consomem e destroem cada vez
mais, enquanto outros ainda não podem viver de acordo com a sua dignidade
humana. Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo
nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de
forma saudável noutras partes. Bento XVI dizia que «é preciso que as sociedades
tecnologicamente avançadas estejam dispostas a favorecer comportamentos
caracterizados pela sobriedade, diminuindo as próprias necessidades de energia
e melhorando as condições da sua utilização».[135]
194. Para que apareçam novos
modelos de progresso, precisamos de «converter o modelo de desenvolvimento
global»[136], e isto implica reflectir responsavelmente «sobre o sentido da economia
e dos seus objectivos, para corrigir as suas disfunções e deturpações».[137]
Não é suficiente conciliar, a meio termo, o cuidado da natureza com o ganho
financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os
meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. Trata-se simplesmente
de redefinir o progresso. Um desenvolvimento tecnológico e económico, que não
deixa um mundo melhor e uma qualidade de vida integralmente superior, não se
pode considerar progresso. Além disso, muitas vezes a qualidade real de vida
das pessoas diminui – pela deterioração do ambiente, a baixa qualidade dos
produtos alimentares ou o esgotamento de alguns recursos – no contexto dum
crescimento da economia. Então, muitas vezes, o discurso do crescimento
sustentável torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores
do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a
responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos
casos, a uma série de acções de publicidade e imagem.
195. O princípio da
maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é
uma distorção conceptual da economia: desde que aumente a produção, pouco
interessa que isso se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio
ambiente; se o derrube duma floresta aumenta a produção, ninguém insere no
respectivo cálculo a perda que implica desertificar um território, destruir a
biodiversidade ou aumentar a poluição. Por outras palavras, as empresas obtêm
lucros calculando e pagando uma parte ínfima dos custos. Poder-se-ia considerar
ético somente um comportamento em que «os custos económicos e sociais derivados
do uso dos recursos ambientais comuns sejam reconhecidos de maneira
transparente e plenamente suportados por quem deles usufrui e não por outras
populações nem pelas gerações futuras».[138] A mentalidade utilitária, que
fornece apenas uma análise estática da realidade em função de necessidades
actuais, está presente tanto quando é o mercado que atribui os recursos como
quando o faz um Estado planificador.
196. Qual é o lugar da
política? Recordemos o princípio da subsidiariedade, que dá liberdade para o
desenvolvimento das capacidades presentes a todos os níveis, mas
simultaneamente exige mais responsabilidade pelo bem comum a quem tem mais
poder. É verdade que, hoje, alguns sectores económicos exercem mais poder do
que os próprios Estados. Mas não se pode justificar uma economia sem política,
porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspectos
da crise actual. A lógica que não deixa espaço para uma sincera preocupação
pelo meio ambiente é a mesma em que não encontra espaço a preocupação por
integrar os mais frágeis, porque, «no modelo “do êxito” e “individualista” em
vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos
dotados possam também singrar na vida».[139]
197. Precisamos duma política
que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral,
abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários aspectos da crise. Muitas
vezes, a própria política é responsável pelo seu descrédito, devido à corrupção
e à falta de boas políticas públicas. Se o Estado não cumpre o seu papel numa
região, alguns grupos económicos podem-se apresentar como benfeitores e
apropriar-se do poder real, sentindo-se autorizados a não observar certas
normas até se chegar às diferentes formas de criminalidade organizada, tráfico
de pessoas, narcotráfico e violência muito difícil de erradicar. Se a política
não é capaz de romper uma lógica perversa e perde-se também em discursos
inconsistentes, continuaremos sem enfrentar os grandes problemas da humanidade.
Uma estratégia de mudança real exige repensar a totalidade dos processos, pois
não basta incluir considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser
em discussão a lógica subjacente à cultura actual. Uma política sã deveria ser
capaz de assumir este desafio.
198. A política e a economia
tendem a culpar-se reciprocamente a respeito da pobreza e da degradação
ambiental. Mas o que se espera é que reconheçam os seus próprios erros e
encontrem formas de interacção orientadas para o bem comum. Enquanto uns se
afanam apenas com o ganho económico e os outros estão obcecados apenas por
conservar ou aumentar o poder, o que nos resta são guerras ou acordos espúrios,
onde o que menos interessa às duas partes é preservar o meio ambiente e cuidar
dos mais fracos. Vale aqui também o princípio de que «a unidade é superior ao
conflito».[140]
5. As religiões no diálogo com
as ciências
199. Não se pode sustentar que
as ciências empíricas expliquem completamente a vida, a essência íntima de
todas as criaturas e o conjunto da realidade. Isto seria ultrapassar
indevidamente os seus confins metodológicos limitados. Se se reflecte dentro
deste quadro restrito, desaparecem a sensibilidade estética, a poesia e ainda a
capacidade da razão perceber o sentido e a finalidade das coisas.[141] Quero
lembrar que «os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para
todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes
(...). Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade, só porque
nasceram no contexto duma crença religiosa?»[142] Realmente, é ingénuo pensar
que os princípios éticos possam ser apresentados de modo puramente abstracto,
desligados de todo o contexto, e o facto de aparecerem com uma linguagem
religiosa não lhes tira valor algum no debate público. Os princípios éticos que
a razão é capaz de perceber, sempre podem reaparecer sob distintas roupagens e
expressos com linguagens diferentes, incluindo a religiosa.
200. Além disso, qualquer
solução técnica que as ciências pretendam oferecer será impotente para resolver
os graves problemas do mundo, se a humanidade perde o seu rumo, se esquece as
grandes motivações que tornam possível a convivência social, o sacrifício, a
bondade. Em todo o caso, será preciso fazer apelo aos crentes para que sejam
coerentes com a sua própria fé e não a contradigam com as suas acções; será
necessário insistir para que se abram novamente à graça de Deus e se nutram
profundamente das próprias convicções sobre o amor, a justiça e a paz. Se às
vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a justificar o abuso
da natureza, ou o domínio despótico do ser humano sobre a criação, ou as
guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes, podemos reconhecer que então
fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que devíamos guardar. Muitas vezes os
limites culturais de distintas épocas condicionaram esta consciência do próprio
património ético e espiritual, mas é precisamente o regresso às respectivas
fontes que permite às religiões responder melhor às necessidades actuais.
201. A maior parte dos
habitantes do planeta declara-se crente, e isto deveria levar as religiões a
estabelecerem diálogo entre si, visando o cuidado da natureza, a defesa dos
pobres, a construção duma trama de respeito e de fraternidade. De igual modo é
indispensável um diálogo entre as próprias ciências, porque cada uma costuma
fechar-se nos limites da sua própria linguagem, e a especialização tende a
converter-se em isolamento e absolutização do próprio saber. Isto impede de
enfrentar adequadamente os problemas do meio ambiente. Torna-se necessário
também um diálogo aberto e respeitador dos diferentes movimentos ecologistas,
entre os quais não faltam as lutas ideológicas. A gravidade da crise ecológica
obriga-nos, a todos, a pensar no bem comum e a prosseguir pelo caminho do
diálogo que requer paciência, ascese e generosidade, lembrando-nos sempre que
«a realidade é superior à ideia».[143]
CAPÍTULO VI - EDUCAÇÃO E
ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS
202. Muitas coisas devem
reajustar o próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade que precisa de
mudar. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca pertença e dum
futuro partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria o desenvolvimento
de novas convicções, atitudes e estilos de vida. Surge, assim, um grande
desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de
regeneração.
1. Apontar para outro estilo
de vida
203. Dado que o mercado tende
a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender os seus produtos, as
pessoas acabam por ser arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos
supérfluos. O consumismo obsessivo é o reflexo subjectivo do paradigma
tecno-económico. Está a acontecer aquilo que já assinalava Romano Guardini: o
ser humano «aceita os objectos comuns e as formas habituais da vida como lhe
são impostos pelos planos nacionais e pelos produtos fabricados em série e, em
geral, age assim com a impressão de que tudo isto seja razoável e justo».[144]
O referido paradigma faz crer a todos que são livres pois conservam uma suposta
liberdade de consumir, quando na realidade apenas possui a liberdade a minoria
que detém o poder económico e financeiro. Nesta confusão, a humanidade
pós-moderna não encontrou uma nova compreensão de si mesma que a possa
orientar, e esta falta de identidade é vivida com angústia. Temos demasiados
meios para escassos e raquíticos fins.
204. A situação actual do
mundo «gera um sentido de precariedade e insegurança, que, por sua vez, favorece
formas de egoísmo colectivo».[145] Quando as pessoas se tornam
auto-referenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua
voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de
objectos para comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser
possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites; neste
horizonte, não existe sequer um verdadeiro bem comum. Se este é o tipo de
sujeito que tende a predominar numa sociedade, as normas serão respeitadas
apenas na medida em que não contradigam as necessidades próprias. Por isso, não
pensemos só na possibilidade de terríveis fenómenos climáticos ou de grandes
desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais,
porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm
possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição
recíproca.
205. Mas nem tudo está
perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem
também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se, para além de
qualquer condicionalismo psicológico e social que lhes seja imposto. São
capazes de se olhar a si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e
encetar caminhos novos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem,
por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de
reagir que Deus continua a animar no mais fundo dos nossos corações. A cada
pessoa deste mundo, peço para não esquecer esta sua dignidade que ninguém tem o
direito de lhe tirar.
206. Uma mudança nos estilos
de vida poderia chegar a exercer uma pressão salutar sobre quantos detêm o
poder político, económico e social. Verifica-se isto quando os movimentos de
consumidores conseguem que se deixe de adquirir determinados produtos e assim
se tornam eficazes na mudança do comportamento das empresas, forçando-as a
reconsiderar o impacto ambiental e os modelos de produção. É um facto que,
quando os hábitos da sociedade afectam os ganhos das empresas, estas vêem-se
pressionadas a mudar a produção. Isto lembra-nos a responsabilidade social dos
consumidores. «Comprar é sempre um acto moral, para além de
económico».[146] Por isso, hoje, «o tema
da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de
nós».[147]
207. A Carta da Terra
convidava-nos, a todos, a começar de novo deixando para trás uma etapa de
autodestruição, mas ainda não desenvolvemos uma consciência universal que o
torne possível. Por isso, atrevo-me a propor de novo aquele considerável
desafio: «Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar
um novo início (...). Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar
duma nova reverência face à vida, pela firme resolução de alcançar a
sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e
pela jubilosa celebração da vida».[148]
208. Sempre é possível
desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro. Sem tal
capacidade, não se reconhece às outras criaturas o seu valor, não se sente
interesse em cuidar de algo para os outros, não se consegue impor limites para
evitar o sofrimento ou a degradação do que nos rodeia. A atitude basilar de se
auto-transcender, rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade,
é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz
brotar a reacção moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada acção
e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o
individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e
torna-se possível uma mudança relevante na sociedade.
2. Educar para a aliança entre
a humanidade e o ambiente
209. A consciência da
gravidade da crise cultural e ecológica precisa de traduzir-se em novos hábitos.
Muitos estão cientes de que não basta o progresso actual e a mera acumulação de
objectos ou prazeres para dar sentido e alegria ao coração humano, mas não se
sentem capazes de renunciar àquilo que o mercado lhes oferece. Nos países que
deveriam realizar as maiores mudanças nos hábitos de consumo, os jovens têm uma
nova sensibilidade ecológica e um espírito generoso, e alguns deles lutam
admiravelmente pela defesa do meio ambiente, mas cresceram num contexto de
altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a maturação doutros hábitos.
Por isso, estamos perante um desafio educativo.
210. A educação ambiental tem
vindo a ampliar os seus objectivos. Se, no começo, estava muito centrada na
informação científica e na consciencialização e prevenção dos riscos
ambientais, agora tende a incluir uma crítica dos «mitos» da modernidade
baseados na razão instrumental (individualismo, progresso ilimitado,
concorrência, consumismo, mercado sem regras) e tende também a recuperar os
distintos níveis de equilíbrio ecológico: o interior consigo mesmo, o solidário
com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus. A
educação ambiental deveria predispor-nos para dar este salto para o Mistério,
do qual uma ética ecológica recebe o seu sentido mais profundo. Além disso, há
educadores capazes de reordenar os itinerários pedagógicos duma ética
ecológica, de modo que ajudem efectivamente a crescer na solidariedade, na
responsabilidade e no cuidado assente na compaixão.
211. Às vezes, porém, esta
educação, chamada a criar uma «cidadania ecológica», limita-se a informar e não
consegue fazer maturar hábitos. A existência de leis e normas não é suficiente,
a longo prazo, para limitar os maus comportamentos, mesmo que haja um válido
controle. Para a norma jurídica produzir efeitos importantes e duradouros, é
preciso que a maior parte dos membros da sociedade a tenha acolhido, com base
em motivações adequadas, e reaja com uma transformação pessoal. A doação de si
mesmo num compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo de virtudes
sólidas. Se uma pessoa habitualmente se resguarda um pouco mais em vez de ligar
o aquecimento, embora as suas economias lhe permitam consumir e gastar mais,
isso supõe que adquiriu convicções e modos de sentir favoráveis ao cuidado do
ambiente. É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas
acções diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas
até dar forma a um estilo de vida. A educação na responsabilidade ambiental
pode incentivar vários comportamentos que têm incidência directa e importante
no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel,
reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que
razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos,
servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias
pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias… Tudo isto faz parte
duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser
humano. Voltar – com base em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o
desperdiçar rapidamente pode ser um acto de amor que exprime a nossa dignidade.
212. E não se pense que estes
esforços são incapazes de mudar o mundo. Estas acções espalham, na sociedade,
um bem que frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam, no
seio desta terra, um bem que sempre tende a difundir-se, por vezes
invisivelmente. Além disso, o exercício destes comportamentos restitui-nos o
sentimento da nossa dignidade, leva-nos a uma maior profundidade existencial,
permite-nos experimentar que vale a pena a nossa passagem por este mundo.
213. Vários são os âmbitos
educativos: a escola, a família, os meios de comunicação, a catequese, e
outros. Uma boa educação escolar em tenra idade coloca sementes que podem
produzir efeitos durante toda a vida. Mas, quero salientar a importância
central da família, porque «é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser
convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está
exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano
autêntico. Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da
cultura da vida».[149] Na família, cultivam-se os primeiros hábitos de amor e
cuidado da vida, como, por exemplo, o uso correcto das coisas, a ordem e a
limpeza, o respeito pelo ecossistema local e a protecção de todas as criaturas.
A família é o lugar da formação integral, onde se desenvolvem os distintos
aspectos, intimamente relacionados entre si, do amadurecimento pessoal. Na
família, aprende-se a pedir licença sem servilismo, a dizer «obrigado» como
expressão duma sentida avaliação das coisas que recebemos, a dominar a
agressividade ou a ganância, e a pedir desculpa quando fazemos algo de mal.
Estes pequenos gestos de sincera cortesia ajudam a construir uma cultura da
vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia.
214. Compete à política e às
várias associações um esforço de formação das consciências da população.
Naturalmente compete também à Igreja. Todas as comunidades cristãs têm um papel
importante a desempenhar nesta educação. Espero também que, nos nossos
Seminários e Casas Religiosas de Formação, se eduque para uma austeridade
responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da fragilidade dos pobres
e do meio ambiente. Tendo em conta o muito que está em jogo, do mesmo modo que
são necessárias instituições dotadas de poder para punir os danos ambientais,
também nós precisamos de nos controlar e educar uns aos outros.
215. Neste contexto, «não se
deve descurar nunca a relação que existe entre uma educação estética apropriada
e a preservação de um ambiente sadio».[150] Prestar atenção à beleza e amá-la
ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a
fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme
em objecto de uso e abuso sem escrúpulos. Ao mesmo tempo, se se quer conseguir
mudanças profundas, é preciso ter presente que os modelos de pensamento influem
realmente nos comportamentos. A educação será ineficaz e os seus esforços
estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao
ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário,
continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de
comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado.
3. A conversão ecológica
216. A grande riqueza da
espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de experiências pessoais e
comunitárias, constitui uma magnífica contribuição para o esforço de renovar a
humanidade. Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica
que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina
tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver. Não se trata tanto
de propor ideias, como sobretudo falar das motivações que derivam da
espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo. Com efeito,
não é possível empenhar-se em coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma
mística que nos anima, sem «uma moção interior que impele, motiva, encoraja e
dá sentido à acção pessoal e comunitária».[151] Temos de reconhecer que nós,
cristãos, nem sempre recolhemos e fizemos frutificar as riquezas dadas por Deus
à Igreja, nas quais a espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem
da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em
comunhão com tudo o que nos rodeia.
217. Se «os desertos
exteriores se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram
tão amplos»,[152] a crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão
interior. Entretanto temos de reconhecer também que alguns cristãos, até
comprometidos e piedosos, com o pretexto do realismo pragmático frequentemente
se burlam das preocupações pelo meio ambiente. Outros são passivos, não se
decidem a mudar os seus hábitos e tornam-se incoerentes. Falta-lhes, pois, uma
conversão ecológica, que comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que
os rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus. Viver a vocação de
guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da
experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa.
218. Recordemos o modelo de
São Francisco de Assis, para propor uma sã relação com a criação como dimensão
da conversão integral da pessoa. Isto exige também reconhecer os próprios
erros, pecados, vícios ou negligências, e arrepender-se de coração, mudar a
partir de dentro. A Igreja na Austrália soube expressar a conversão em termos
de reconciliação com a criação: «Para realizar esta reconciliação, devemos
examinar as nossas vidas e reconhecer de que modo ofendemos a criação de Deus
com as nossas acções e com a nossa incapacidade de agir. Devemos fazer a
experiência duma conversão, duma mudança do coração».[153]
219. Todavia, para se resolver
uma situação tão complexa como esta que enfrenta o mundo actual, não basta que
cada um seja melhor. Os indivíduos isolados podem perder a capacidade e a
liberdade de vencer a lógica da razão instrumental e acabam por sucumbir a um
consumismo sem ética nem sentido social e ambiental. Aos problemas sociais
responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes
comunitárias: «As exigências desta obra serão tão grandes, que as
possibilidades das iniciativas individuais e a cooperação dos particulares,
formados de maneira individualista, não serão capazes de lhes dar resposta.
Será necessária uma união de forças e uma unidade de contribuições».[154] A
conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança
duradoura, é também uma conversão comunitária.
220. Esta conversão comporta
várias atitudes que se conjugam para activar um cuidado generoso e cheio de
ternura. Em primeiro lugar, implica gratidão e gratuidade, ou seja, um
reconhecimento do mundo como dom recebido do amor do Pai, que consequentemente
provoca disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém
os veja nem agradeça. «Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita
(...); e teu Pai, que vê o oculto, há-de premiar-te» (Mt 6, 3-4). Implica ainda
a consciência amorosa de não estar separado das outras criaturas, mas de formar
com os outros seres do universo uma estupenda comunhão universal. O crente
contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo
os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres. Além disso a conversão
ecológica, fazendo crescer as peculiares capacidades que Deus deu a cada
crente, leva-o a desenvolver a sua criatividade e entusiasmo para resolver os
dramas do mundo, oferecendo-se a Deus «como sacrifício vivo, santo e agradável»
(Rm12, 1). Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem de
domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por sua vez, lhe
impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé.
221. Ajudam a enriquecer o
sentido de tal conversão várias convicções da nossa fé, desenvolvidas ao início
desta encíclica, como, por exemplo, a consciência de que cada criatura reflecte
algo de Deus e tem uma mensagem para nos transmitir, ou a certeza de que Cristo
assumiu em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo
de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz; e
ainda o reconhecimento de que Deus criou o mundo, inscrevendo nele uma ordem e
um dinamismo que o ser humano não tem o direito de ignorar. Porventura uma
pessoa, ouvindo no Evangelho Jesus dizer – a propósito dos pássaros – que
«nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc12, 6), será capaz de os
maltratar ou causar-lhes dano? Convido todos os cristãos a explicitar esta
dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se
estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia,
e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de
maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis.
4. Alegria e paz
222. A espiritualidade cristã
propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um
estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem
estar obcecado pelo consumo. É importante adoptar um antigo ensinamento, presente
em distintas tradições religiosas e também na Bíblia. Trata-se da convicção de
que «quanto menos, tanto mais». Com efeito, a acumulação constante de
possibilidades para consumir distrai o coração e impede de dar o devido apreço
a cada coisa e a cada momento. Pelo contrário, tornar-se serenamente presente
diante de cada realidade, por mais pequena que seja, abre-nos muitas mais
possibilidades de compreensão e realização pessoal. A espiritualidade cristã
propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco. É
um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas,
agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos
nem entristecermos por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica
do domínio e da mera acumulação de prazeres.
223. A sobriedade, vivida
livre e conscientemente, é libertadora. Não se trata de menos vida, nem vida de
baixa intensidade; é precisamente o contrário. Com efeito, as pessoas que
saboreiam mais e vivem melhor cada momento são aquelas que deixam de debicar
aqui e ali, sempre à procura do que não têm, e experimentam o que significa dar
apreço a cada pessoa e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais
simples e sabem alegrar-se com elas. Deste modo conseguem reduzir o número das
necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade. É possível
necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar espaço a
outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos, no serviço, na
frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no contacto com a
natureza, na oração. A felicidade exige saber limitar algumas necessidades que
nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as múltiplas possibilidades
que a vida oferece.
224. A sobriedade e a
humildade não gozaram de positiva consideração no século passado. Mas, quando
se debilita de forma generalizada o exercício dalguma virtude na vida pessoal e
social, isso acaba por provocar variados desequilíbrios, mesmo ambientais. Por
isso, não basta falar apenas da integridade dos ecossistemas; é preciso ter a
coragem de falar da integridade da vida humana, da necessidade de incentivar e
conjugar todos os grandes valores. O desaparecimento da humildade, num ser
humano excessivamente entusiasmado com a possibilidade de dominar tudo sem
limite algum, só pode acabar por prejudicar a sociedade e o meio ambiente. Não
é fácil desenvolver esta humildade sadia e uma sobriedade feliz, se nos
tornamos autónomos, se excluímos Deus da nossa vida fazendo o nosso eu ocupar o
seu lugar, se pensamos ser a nossa subjectividade que determina o que é bem e o
que é mal.
225. Por outro lado, ninguém
pode amadurecer numa sobriedade feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E
parte duma adequada compreensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa
compreensão da paz, que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz
interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem
comum, porque, autenticamente vivida, reflecte-se num equilibrado estilo de
vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida. A
natureza está cheia de palavras de amor; mas, como poderemos ouvi-las no meio
do ruído constante, da distracção permanente e ansiosa, ou do culto da notoriedade?
Muitas pessoas experimentam um desequilíbrio profundo, que as impele a fazer as
coisas a toda a velocidade para se sentirem ocupadas, numa pressa constante
que, por sua vez, as leva a atropelar tudo o que têm ao seu redor. Isto tem
incidência no modo como se trata o ambiente. Uma ecologia integral exige que se
dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, reflectir
sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive
entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença «não precisa de ser criada,
mas descoberta, desvendada».[155]
226. Falamos aqui duma atitude
do coração, que vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente
presente diante duma pessoa sem estar a pensar no que virá depois, que se
entrega a cada momento como um dom divino que se deve viver em plenitude. Jesus
ensinou-nos esta atitude, quando nos convidava a olhar os lírios do campo e as
aves do céu, ou quando, na presença dum homem inquieto, «fitando nele o olhar,
sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). De certeza que Ele estava plenamente
presente diante de cada ser humano e de cada criatura, mostrando-nos assim um
caminho para superar a ansiedade doentia que nos torna superficiais, agressivos
e consumistas desenfreados.
227. Uma expressão desta
atitude é parar a agradecer a Deus antes e depois das refeições. Proponho aos
crentes que retomem este hábito importante e o vivam profundamente. Este
momento da bênção da mesa, embora muito breve, recorda-nos que a nossa vida
depende de Deus, fortalece o nosso sentido de gratidão pelos dons da criação,
dá graças por aqueles que com o seu trabalho fornecem estes bens, e reforça a
solidariedade com os mais necessitados.
5. Amor civil e político
228. O cuidado da natureza faz
parte dum estilo de vida que implica capacidade de viver juntos e de comunhão.
Jesus lembrou-nos que temos Deus como nosso Pai comum e que isto nos torna
irmãos. O amor fraterno só pode ser gratuito, nunca pode ser uma paga a outrem
pelo que realizou, nem um adiantamento pelo que esperamos venha a fazer. Por
isso, é possível amar os inimigos. Esta mesma gratuidade leva-nos a amar e
aceitar o vento, o sol ou as nuvens, embora não se submetam ao nosso controle.
Assim podemos falar duma fraternidade universal.
229. É necessário voltar a
sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com
os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos. Vivemos já muito
tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à
honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de
pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba
por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses, provoca
o despertar de novas formas de violência e crueldade e impede o desenvolvimento
duma verdadeira cultura do cuidado do meio ambiente.
230. O exemplo de Santa Teresa
de Lisieux convida-nos a pôr em prática o pequeno caminho do amor, a não perder
a oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso, de qualquer pequeno gesto que
semeie paz e amizade. Uma ecologia integral é feita também de simples gestos
quotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do
egoísmo. Pelo contrário, o mundo do consumo exacerbado é, simultaneamente, o
mundo que maltrata a vida em todas as suas formas.
231. O amor, cheio de pequenos
gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as
acções que procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o
compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade, que toca não só
as relações entre os indivíduos, mas também «as macrorrelações como
relacionamentos sociais, económicos, políticos».[156] Por isso, a Igreja propôs
ao mundo o ideal duma «civilização do amor».[157] O amor social é a chave para
um desenvolvimento autêntico: «Para tornar a sociedade mais humana, mais digna
da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social – nos planos
político, económico, cultural – fazendo dele a norma constante e suprema do
agir».[158] Neste contexto, juntamente com a importância dos pequenos gestos diários,
o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham
eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que
permeie toda a sociedade. Quando alguém reconhece a vocação de Deus para
intervir juntamente com os outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que
isto faz parte da sua espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo,
amadurece e se santifica.
232. Nem todos são chamados a
trabalhar de forma directa na política, mas no seio da sociedade floresce uma
variedade inumerável de associações que intervêm em prol do bem comum,
defendendo o meio ambiente natural e urbano. Por exemplo, preocupam-se com um
lugar público (um edifício, uma fonte, um monumento abandonado, uma paisagem,
uma praça) para proteger, sanar, melhorar ou embelezar algo que é de todos. Ao
seu redor, desenvolvem-se ou recuperam-se vínculos, fazendo surgir um novo
tecido social local. Assim, uma comunidade liberta-se da indiferença
consumista. Isto significa também cultivar uma identidade comum, uma história
que se conserva e transmite. Desta forma cuida-se do mundo e da qualidade de
vida dos mais pobres, com um sentido de solidariedade que é, ao mesmo tempo,
consciência de habitar numa casa comum que Deus nos confiou. Estas acções comunitárias,
quando exprimem um amor que se doa, podem transformar-se em experiências
espirituais intensas.
6. Os sinais sacramentais e o
descanso celebrativo
233. O universo desenvolve-se
em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar
numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre.[159] O ideal não é só
passar da exterioridade à interioridade para descobrir a acção de Deus na alma,
mas também chegar a encontrá-Lo em todas as coisas, como ensinava São
Boaventura: «A contemplação é tanto mais elevada quanto mais o homem sente em
si mesmo o efeito da graça divina ou quanto mais sabe reconhecer Deus nas
outras criaturas».[160]
234. São João da Cruz ensinava
que tudo o que há de bom nas coisas e experiências do mundo «encontra-se
eminentemente em Deus de maneira infinita ou, melhor, Ele é cada uma destas
grandezas que se pregam».[161] E isto, não porque as coisas limitadas do mundo
sejam realmente divinas, mas porque o místico experimenta a ligação íntima que
há entre Deus e todos os seres vivos e, deste modo, «sente que Deus é para ele
todas as coisas».[162] Quando admira a grandeza duma montanha, não pode separar
isto de Deus, e percebe que tal admiração interior que ele vive, deve finalizar
no Senhor: «As montanhas têm cumes, são altas, imponentes, belas, graciosas,
floridas e perfumadas. Como estas montanhas, é o meu Amado para mim. Os vales
solitários são tranquilos, amenos, frescos, sombreados, ricos de doces águas.
Pela variedade das suas árvores e pelo canto suave das aves, oferecem grande
divertimento e encanto aos sentidos e, na sua solidão e silêncio, dão
refrigério e repouso: como estes vales, é o meu Amado para mim».[163]
235. Os sacramentos constituem
um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em
mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o
mundo num plano diferente. A água, o azeite, o fogo e as cores são assumidas
com toda a sua força simbólica e incorporam-se no louvor. A mão que abençoa é
instrumento do amor de Deus e reflexo da proximidade de Cristo, que veio para
Se fazer nosso companheiro no caminho da vida. A água derramada sobre o corpo
da criança baptizada, é sinal de vida nova. Não fugimos do mundo, nem negamos a
natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus. Nota-se isto particularmente
na espiritualidade do Oriente cristão. «A beleza, que no Oriente é um dos nomes
mais queridos para exprimir a harmonia divina e o modelo da humanidade
transfigurada, mostra-se em toda a parte: nas formas do templo, nos sons, nas
cores, nas luzes, nos perfumes».[164] Segundo a experiência cristã, todas as
criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo
encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material,
onde introduziu um gérmen de transformação definitiva: «O cristianismo não
rejeita a matéria; pelo contrário, a corporeidade é valorizada plenamente no
acto litúrgico, onde o corpo humano mostra sua íntima natureza de templo do
Espírito Santo e chega a unir-se a Jesus Senhor, feito também Ele corpo para a
salvação do mundo».[165]
236. A criação encontra a sua
maior elevação na Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo
sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem,
chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da
Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria.
Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso
próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro
vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao
Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com
efeito a Eucaristia é, por si mesma, um acto de amor cósmico. «Sim, cósmico!
Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a
Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo».[166] A
Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído
das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, «a
criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação
com o próprio Criador».[167] Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e
motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser
guardiões da criação inteira.
237. A participação na
Eucaristia é especialmente importante ao domingo. Este dia, à semelhança do
sábado judaico, é-nos oferecido como dia de cura das relações do ser humano com
Deus, consigo mesmo, com os outros e com o mundo. O domingo é o dia da Ressurreição, o «primeiro dia» da nova
criação, que tem as suas primícias na humanidade ressuscitada do Senhor,
garantia da transfiguração final de toda a realidade criada. Além disso, este
dia anuncia «o descanso eterno do homem, em Deus».[168] Assim, a
espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O ser humano
tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil,
esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o seu
significado. Na nossa actividade, somos chamados a incluir uma dimensão
receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inactividade. Trata-se
doutra maneira de agir, que pertence à nossa essência. Assim, a acção humana é
preservada não só do activismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da
consciência que se isola buscando apenas o benefício pessoal. A lei do repouso
semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, «para que descansem o teu
boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro
residente» (Ex 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar
a reconhecer os direitos dos outros. Assim o dia de descanso, cujo centro é a
Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o
cuidado da natureza e dos pobres.
7. A Trindade e a relação
entre as criaturas
238. O Pai é a fonte última de
tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O
reflecte e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado
no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente
presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos. O mundo
foi criado pelas três Pessoas como um único princípio divino, mas cada uma
delas realiza esta obra comum segundo a própria identidade pessoal. Por isso,
«quando, admirados, contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos
louvar a inteira Trindade».[169]
239. Para os cristãos,
acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a pensar que toda a
realidade contém em si mesma uma marca propriamente trinitária. São Boaventura
chega a dizer que o ser humano, antes do pecado, conseguia descobrir como cada
criatura «testemunha que Deus é trino». O reflexo da Trindade podia-se
reconhecer na natureza, «quando esse livro não era obscuro para o homem, nem a
vista do homem se tinha turvado».[170] Este santo franciscano ensina-nos que
toda a criatura traz em si uma estrutura propriamente trinitária, tão real que
poderia ser contemplada espontaneamente, se o olhar do ser humano não estivesse
limitado, obscurecido e fragilizado. Indica-nos, assim, o desafio de tentar ler
a realidade em chave trinitária.
240. As Pessoas divinas são
relações subsistentes; e o mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama
de relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo
tender, por sua vez, para outra realidade, de modo que, no seio do universo,
podemos encontrar uma série inumerável de relações constantes que secretamente
se entrelaçam.[171] Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que
existem entre as criaturas, mas leva-nos também a descobrir uma chave da nossa
própria realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e
santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver
em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na
própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a
sua criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma
espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade.
8. A Rainha de toda a criação
241. Maria, a mãe que cuidou
de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido.
Assim como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também
agora Se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste
mundo exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente
transfigurada, e todas as criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher «vestida de
sol, com a lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça»
(Ap12, 1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de toda a criação. No seu corpo
glorificado, juntamente com Cristo ressuscitado, parte da criação alcançou toda
a plenitude da sua beleza. Maria não só conserva no seu coração toda a vida de
Jesus, que «guardava» cuidadosamente (cf.Lc2, 51), mas agora compreende também
o sentido de todas as coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a
contemplar este mundo com um olhar mais sapiente.
242. E ao lado d’Ela, na
sagrada família de Nazaré, destaca-se a figura de São José. Com o seu trabalho
e presença generosa, cuidou e defendeu Maria e Jesus e livrou-os da violência
dos injustos, levando-os para o Egipto. No Evangelho, aparece descrito como um
homem justo, trabalhador, forte; mas, da sua figura, emana também uma grande
ternura, própria não de quem é fraco mas de quem é verdadeiramente forte,
atento à realidade para amar e servir humildemente. Por isso, foi declarado
protector da Igreja universal. Também Ele nos pode ensinar a cuidar, pode
motivar-nos a trabalhar com generosidade e ternura para proteger este mundo que
Deus nos confiou.
9. Para além do sol
243. No fim,
encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus (cf.1 Cor13, 12) e
poderemos ler, com jubilosa admiração, o mistério do universo, o qual terá
parte connosco na plenitude sem fim. Estamos a caminhar para o sábado da
eternidade, para a nova Jerusalém, para a casa comum do Céu. Diz-nos Jesus: «Eu
renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). A vida eterna será uma maravilha
compartilhada, onde cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o
seu lugar e terá algo para oferecer aos pobres definitivamente libertados.
244. Na expectativa da vida
eterna, unimo-nos para tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada,
sabendo que aquilo de bom que há nela será assumido na festa do Céu. Juntamente
com todas as criaturas, caminhamos nesta terra à procura de Deus, porque, «se o
mundo tem um princípio e foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu
início, aquele que é o seu Criador».[172] Caminhemos cantando; que as nossas
lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da
esperança.
245. Deus, que nos chama a uma
generosa entrega e a oferecer-Lhe tudo, também nos dá as forças e a luz de que
necessitamos para prosseguir. No coração deste mundo, permanece presente o
Senhor da vida que tanto nos ama. Não nos abandona, não nos deixa sozinhos,
porque Se uniu definitivamente à nossa terra e o seu amor sempre nos leva a
encontrar novos caminhos. Que Ele seja louvado!
* * *
246. Depois desta longa
reflexão, jubilosa e ao mesmo tempo dramática, proponho duas orações: uma que
podemos partilhar todos quantos acreditam num Deus Criador Omnipotente, e outra
pedindo que nós, cristãos, saibamos assumir os compromissos para com a criação
que o Evangelho de Jesus nos propõe.
Oração pela nossa terra
Deus Omnipotente,
que estais presente em todo o
universo
e na mais pequenina das vossas
criaturas,
Vós que envolveis com a vossa
ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do
vosso amor
para cuidarmos da vida e da
beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e
irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos
desta terra
que valem tanto aos vossos
olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas
benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o
valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos
profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa
luz infinita.
Obrigado porque estais
connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na
nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.
Oração cristã com a criação
Nós Vos louvamos, Pai,
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão
poderosa.
São vossas e estão repletas da
vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
Filho de Deus, Jesus,
por Vós foram criadas todas as
coisas.
Fostes formado no seio materno
de Maria,
fizestes-Vos parte desta
terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada
criatura
com a vossa glória de
ressuscitado.
Louvado sejais!
Espírito Santo, que, com a
vossa luz,
guiais este mundo para o amor
do Pai
e acompanhais o gemido da
criação,
Vós viveis também nos nossos
corações
a fim de nos impelir para o
bem.
Louvado sejais!
Senhor Deus, Uno e Trino,
comunidade estupenda de amor
infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a
nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos
sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar
neste mundo
como instrumentos do vosso
carinho
por todos os seres desta
terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e
do dinheiro
para que não caiam no pecado
da indiferença,
amem o bem comum, promovam os
fracos,
e cuidem deste mundo que
habitamos.
Os pobres e a terra estão
bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa
luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro
melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e
beleza.
Louvado sejais!
Amen.
Dado em Roma, junto de São
Pedro, no dia 24 de Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015, terceiro ano do
meu Pontificado.
Franciscus
[1] Cantico delle creature:
Fonti Francescane, 263.
[2] Carta ap. Octogesima
adveniens (14 de Maio de 1971), 21: AAS 63 (1971), 416-417.
[3] Discurso à FAO, no seu XXV
aniversário (16 de Novembro de 1970), 4: AAS 62 (1970), 833; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 22/XI/1970), 6.
[4] Carta enc. Redemptor
hominis (4 de Março de 1979),15: AAS 71 (1979), 287.
[5] Cf. Catequese (17 de
Janeiro de 2001), 4: Insegnamenti24/1 (2001), 179; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 20/I/2001), 8.
[6] Carta enc. Centesimus
annus (1 de Maio de 1991), 38: AAS 83 (1991), 841.
[7] Ibid., 58: o. c.,863.
[8] João Paulo II, Carta enc.
Sollicitudo rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 34: AAS 80 (1988), 559.
[9] Cf. Idem, Carta enc.
Centesimus annus(1 de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[10] Discurso ao Corpo Diplomático
acreditado junto da Santa Sé (8 de Janeiro de 2007): AAS 99 (2007), 73.
[11] Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS 101 (2009), 687.
[12] Discurso ao Bundestag,
Berlim (22 de Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 664; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[13] Bento XVI, Discurso ao clero da diocese de
Bolzano-Bressanone (6 de Agosto de 2008): AAS 100 (2008), 634; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 16/VIII/2008), 5.
[14] Mensagem para o Dia de
Oração pela salvaguarda da criação (1 de Setembro de 2012).
[15] Discurso em Santa
Bárbara, Califórnia (8 de Novembro de 1997); cf. John Chryssavgis, On Earth as
in Heaven: Ecological Vision and Initiatives of Ecumenical Patriarch
Bartholomew (Bronx/Nova Iorque 2012).
[16] Ibidem.
[17] Conferência no Mosteiro
de Utstein, Noruega (23 de Junho de 2003).
[18] Bartolomeu, Discurso
Global Responsibility and Ecological Sustainability: Closing Remarks, I Cimeira
de Halki, Istambul (20 de Junho de 2012).
[19] Tomás de Celano, Vita
prima di San Francesco, XXIX, 81: Fonti Francescane, 460.
[20] Legenda Maior, VIII, 6:
Fonti Francescane, 1145.
[21] Cf. Tomás de Celano, Vita
seconda di San Francesco, CXXIV, 165: Fonti Francescane, 750.
[22] Conferência dos Bispos
Católicos da África do Sul, Pastoral Statement on the Environmental Crisis (5
de Setembro de 1999).
[23] Cf. Francisco, Saudação
aos funcionários da FAO (20 de Novembro de 2014): AAS 106 (2014), 985;
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 27/XI/2014), 3.
[24] V Conferência Geral do
Episcopado Latino-americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de
2007), 86.
[25] Conferência dos Bispos
Católicos das Filipinas, Carta pastoral What is Happening to our Beautiful
Land? (29 de Janeiro de 1988).
[26] Conferência Episcopal da
Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la vida (2012), 17.
[27] Cf. Conferência Episcopal
Alemã – Comissão para a pastoral social, Der Klimawandel: Brennpunkt globaler,
intergenerationeller und ökologischer Gerechtigkeit (Setembro de 2006), 28-30.
[28] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 483.
[29] Francisco, Catequese (5
de Junho de 2013): Insegnamenti1/1 (2013), 280; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 9/VI/2013), 16.
[30] Bispos da região da
Patagónia-Comahue (Argentina), Mensaje de Navidad (Dezembro de 2009), 2.
[31] Conferência dos Bispos
Católicos dos Estados Unidos da América, Global Climate Change: A Plea for
Dialogue, Prudence and the Common Good (15 de Junho de 2001).
[32] V Conferência Geral do
Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de Junho de
2007), 471.
[33] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 56: AAS 105 (2013), 1043.
[34] João Paulo II, Mensagem
para o Dia Mundial da Paz de 1990, 12: AAS 82 (1990), 154.
[35] Idem, Catequese (17 de
Janeiro de 2001), 3: Insegnamenti 24/1 (2001), 178; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 20/I/2001), 8.
[36] João Paulo II, Mensagem
para o Dia Mundial da Paz de 1990, 15: AAS 82 (1990), 156.
[37] Catecismo da Igreja
Católica, 357.
[38] Angelus com os inválidos,
Osnabrük / Alemanha (16 de Novembro de 1980): Insegnamenti 3/2 (1980), 1232;
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 23/XI/1980), 20.
[39] Bento XVI, Homilia no
início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 711;
L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2015), 5.
[40] Cf. Legenda Maior, VIII,
1: Fonti Francescane, 1134.
[41] Catecismo da Igreja
Católica, 2416.
[42] Conferência Episcopal
Alemã, Zukunft der Schöpfung – Zukunft der Menschheit. Erklärung der Deutschen
Bischofskonferenz zu Fragen der Umwelt und der Energieversorgung (1980), II, 2.
[43] Catecismo da Igreja
Católica, 339.
[44] Hom. in Hexaemeron, 1, 2,
10: PG 29, 9.
[45] Divina Commedia.
Paradiso, Canto XXXIII, 145.
[46] Bento XVI, Catequese (9
de Novembro de 2005), 3: Insegnamenti1 (2005), 768; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 12/XI/2005), 24.
[47] Idem, Carta enc. Caritas
in veritate (29 de Junho de 2009), 51:AAS101 (2009), 687.
[48] João Paulo II, Catequese
(24 de Abril de 1991), 6: Insegnamenti14/1 (1991), 856; L’Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 28/IV/1991), 12.
[49] O Catecismo ensina que
Deus quis criar um mundo em caminho para a perfeição última, o que implica a
presença da imperfeição e do mal físico: ver Catecismo da Igreja Católica,310.
[50] Cf. Conc. Ecum. Vat. II,
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 36.
[51] Tomás de Aquino, Summa
theologiaeI, q. 104, art. 1, ad 4.
[52] Idem, In octo libros
Physicorum Aristotelis expositio, lib. II, lectio 14.
[53] Coloca-se, nesta
perspectiva, a contribuição do P. Teilhard de Chardin; veja-se Paulo VI,
Discurso numa fábrica químico-farmacêutico (24 de Fevereiro de 1966):
Insegnamenti 4 (1966), 992-993; João Paulo II, Carta ao reverendo P. George V.
Coyne (1 de Junho de 1988): Insegnamenti 11/2 (1988), 1715; Bento XVI, Homilia na Celebração das Vésperas, em Aosta
(24 de Julho de 2009): Insegnamenti 5/2 (2009), 60.
[54] João Paulo II, Catequese
(30 de Janeiro de 2002), 6: Insegnamenti 25/1 (2002), 140; L´Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 2/II/2002), 12.
[55] Conferência Episcopal do
Canadá - Comissão para a Pastoral Social, You love all that exists… All things
are yours, God, Lover of Life (4 de Outubro de 2003), 1.
[56] Conferência dos Bispos
Católicos do Japão, Reverence for Life. A Message for the Twenty-First Century
(1 de Janeiro de 2001), 89.
[57] João Paulo II, Catequese
(26 de Janeiro de 2000), 5: Insegnamenti23/1 (2000), 123;L´Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 29/I/2000), 8.
[58] Idem, Catequese (2 de
Agosto de 2000), 3: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[59] Paul Ricoeur, Philosophie
de la volonté. 2ª parte:Finitude et culpabilité (Paris 2009), 216.
[60] Summa theologiae I, q.
47, art. 1.
[61] Ibidem.
[62] Cf.ibid., art. 2, ad. 1;
art. 3.
[63] Catecismo da Igreja
Católica, 340.
[64] Cantico delle creature:
Fonti Francescane, 263.
[65] Cf. Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, A Igreja e a questão ecológica (1992), 53-54.
[66] Ibid., 61.
[67] Francisco, Exort.
ap.Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 215: AAS105 (2013), 1109.
[68] Cf. Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate(29 de Junho de 2009), 14:AAS101 (2009), 650.
[69] Catecismo da Igreja
Católica, 2418.
[70] Conferência do Episcopado
Dominicano, Carta pastoral Sobre la relación del hombre con la naturaleza (21
de Janeiro de 1987).
[71] João Paulo II, Carta enc.
Laborem exercens (14 de Setembro de 1981),19: AAS 73 (1981), 626.
[72] Carta enc. Centesimus
annus (1 de Maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831.
[73] Carta enc. Sollicitudo
rei socialis (30 de Dezembro de 1987), 33:AAS 80 (1988), 557.
[74] Discurso aos indígenas e
agricultores do México, em Cuilapán (29 de Janeiro de 1979), 6: AAS 71 (1979),
209; L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/II/1979), 4.
[75] Homilia na Missa
celebrada para os agricultores, em Recife/Brasil (7 de Julho de 1980), 4: AAS
72 (1980), 926;L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 20/VII/1980), 13.
[76] Cf. Mensagem para o Dia
Mundial da Paz de 1990, 8: AAS 82 (1990), 152.
[77] Conferência Episcopal do
Paraguai, Carta pastoral El campesino paraguayo y la tierra (12 de Junho de
1983), 2, 4, d.
[78] Conferência Episcopal da
Nova Zelândia, Statement on Environmental Issues (1 de Setembro de 2006).
[79]Carta enc. Laborem exercens
(14 de Setembro de 1981), 27: AAS 73 (1981), 645.
[80] Por isso, São Justino
podia falar de «sementes do Verbo» no mundo. Cf. II Apologia 8, 1-2; 13, 3-6:
PG 6, 457-458; 467.
[81] João Paulo II, Discurso
aos representantes da ciência, da cultura e dos estudos superiores na
Universidade das Nações Unidas, em Hiroxima (25 de Fevereiro de 1981), 3: AAS
73 (1981), 422.
[82] Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 69:AAS 101 (2009), 702.
[83] Romano Guardini, Das Ende
der Neuzeit(Würzburg9 1965), 87.
[84] Ibidem.
[85] Ibid., 87-88.
[86] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 462.
[87] Romano Guardini, Das Ende
der Neuzeit (Würzburg9 1965), 63-64.
[88] Ibid., 64.
[89] Cf. Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 35: AAS 101 (2009), 671.
[90] Ibid., 22: o. c., 657.
[91] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 231: AAS 105 (2013), 1114.
[92] Romano Guardini, Das Ende
der Neuzeit (Würzburg9 1965), 63.
[93] João Paulo II, Carta enc.
Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 38: AAS83 (1991), 841.
[94] Cf. Declaração Love for
Creation. An Asian Response to the Ecological Crisis: Colóquio promovido pela
Federação das Conferências Episcopais da Ásia, Tagaytay (31 de Janeiro a 5 de
Fevereiro de 1993), 3.3.2.
[95] João Paulo II, Carta enc.
Centesimus annus (1 de Maio de 1991),37: AAS 83 (1991), 840.
[96] Bento XVI, Mensagem para
o Dia Mundial da Paz de 2010, 2: AAS 102 (2010), 41.
[97] Idem, Carta enc. Caritas
in veritate (29 de Junho de 2009), 28:AAS 101 (2009), 663.
[98] Cf. Vicente de Lerins,
Commonitorium primum, cap. 23: PL 50, 668: «Ut annis scilicet consolidetur,
dilatetur tempore, sublimetur aetate – Fortalece-se com o decorrer dos anos,
desenvolve-se com o andar dos tempos, cresce através das idades».
[99] N. 80: AAS 105 (2013),
1053.
[100] Conc. Ecum. Vat. II,
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 63.
[101] Cf. João Paulo II, Carta
enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 37: AAS 83 (1991), 840.
[102] Paulo VI, Carta enc.
Populorum progressio (26 de Março de 1967), 34: AAS 59 (1967), 274.
[103] Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 32: AAS 101 (2009), 666.
[104] Ibidem.
[105] Ibidem.
[106] Catecismo da Igreja
Católica, 2417.
[107] Ibid., 2418.
[108] Ibid., 2415.
[109] Mensagem para o Dia
Mundial da Paz de 1990, 6: AAS 82 (1990), 150.
[110] Discurso à Pontifícia
Academia das Ciências (3 de Outubro de 1981), 3: Insegnamenti 4/2 (1981), 333;
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 11/X/1981), 8.
[111] Mensagem para o Dia
Mundial da Paz de 1990, 7: AAS 82 (1990), 151.
[112] João Paulo II, Discurso
à 35ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial (29 de Outubro de 1983),
6: AAS 76 (1984), 394; L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 13/XI/1983), 7.
[113] Conferência Episcopal da
Argentina – Comissão de Pastoral Social, Una tierra para todos (Junho de 2005),
19.
[114] Declaração do Rio sobre
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992),
princípio 4.
[115] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 237: AAS 105 (2013), 1116.
[116] Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 51: AAS 101 (2009), 687.
[117] Alguns autores puseram
em evidência os valores que muitas vezes se vivem, por exemplo, nas «villas»,
«chabolas» ou favelas da América Latina: ver Juan Carlos Scannone S.I., «La
irrupción del pobre y la lógica de la gratuidad», in Juan Carlos Scannone e
Marcelo Perine (eds.), Irrupción del pobre y quehacer filosófico. Hacia una
nueva racionalidad (Buenos Aires 1993), 225-230.
[118] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 482.
[119] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 210: AAS 105 (2013), 1107.
[120] Discurso ao Bundestag,
Berlim (22 de Setembro de 2011): AAS 103 (2011), 668; L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 24/IX/2011), 5.
[121] Francisco, Catequese (15
de Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 16/IV/2015), 20.
[122] Conc. Ecum. Vat. II,
Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 26.
[123] Cf. nn. 186-201:AAS 105
(2013), 1098-1105.
[124] Conferência Episcopal
Portuguesa, Carta pastoral Responsabilidade solidária pelo bem comum (15 de
Setembro de 2003), 20.
[125] Bento XVI, Mensagem para
o Dia Mundial da Paz de 2010, 8: AAS 102 (2010), 45.
[126] Declaração do Rio sobre
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, Rio de Janeiro (14 de Junho de 1992),
princípio 1.
[127] Conferência Episcopal da
Bolívia, Carta pastoral El universo, don de Dios para la vida (2012), 86.
[128] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», Doc. Energia, Giustizia e Pace (Cidade do Vaticano 2013), 56.
[129] Carta enc. Caritas in
veritate (29 de Junho de 2009), 67: AAS 101 (2009), 700.
[130] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 222: AAS 105 (2013), 1111.
[131] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 469.
[132] Declaração do Rio sobre
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (14 de Junho de 1992), princípio 15.
[133] Cf. Conferência
Episcopal do México – Comissão de Pastoral Social, Jesucristo, vida y esperanza
de los indígenas y campesinos (14 de Janeiro de 2008).
[134] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz»,Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 470.
[135] Mensagem para o Dia
Mundial da Paz de 2010, 9: AAS 102 (2010), 46.
[136] Ibidem.
[137] Ibid., 5: o. c., 43.
[138] Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 50: AAS 101 (2009), 686.
[139] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 209: AAS 105 (2013), 1107.
[140] Ibid., 228: o. c., 1113.
[141] Cf. Francisco, Carta
enc. Lumen fidei (29 de Junho de 2013), 34 [AAS 105 (2013), 577]: «Enquanto
unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo material, porque o
amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz encarnada, que dimana
da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem,
sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão.
Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a
permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta
o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas
fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa.
Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os
horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da
ciência».
[142] Idem, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 256: AAS 105 (2013), 1123.
[143] Ibid., 231: o. c., 1114.
[144] Das Ende der Neuzeit
(Würzburg9 1965), 66-67.
[145] João Paulo II, Mensagem
para o Dia Mundial da Paz de 1990, 1: AAS 82 (1990), 147.
[146] Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 66:AAS101 (2009), 699.
[147] Idem, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 2010, 11: AAS 102 (2010), 48.
[148] Carta da Terra, Haia (29
de Junho de 2000).
[149] João Paulo II, Carta
enc. Centesimus annus (1 de Maio de 1991), 39: AAS 83 (1991), 842.
[150] Idem, Mensagem para o
Dia Mundial da Paz de 1990, 14: AAS 82 (1990), 155.
[151] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 261: AAS105 (2013), 1124.
[152] Bento XVI, Homilia no
início solene do Ministério Petrino (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710;
L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/IV/2005), 5.
[153] Conferência dos Bispos
Católicos da Austrália, A New Earth - The Environmental Challenge (2002).
[154] Romano Guardini, Das
Ende der Neuzeit (Würzburg9 1965), 72.
[155] Francisco, Exort. ap.
Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 71: AAS 105 (2013), 1050.
[156] Bento XVI, Carta enc.
Caritas in veritate (29 de Junho de 2009), 2:AAS 101 (2009), 642.
[157] Paulo VI, Mensagem para
o Dia Mundial da Paz de 1977: AAS 68 (1976), 709.
[158] Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 582.
[159] Um mestre espiritual,
Ali Al-Khawwas, partindo da sua própria experiência, assinalava a necessidade
de não separar demasiado as criaturas do mundo e a experiência de Deus na
interioridade. Dizia ele: «Não é preciso criticar preconceituosamente aqueles
que procuram o êxtase na música ou na poesia. Há um “segredo” subtil em cada um
dos movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados chegam a captar o que dizem
o vento que sopra, as árvores que se curvam, a água que corre, as moscas que
zunem, as portas que rangem, o canto dos pássaros, o dedilhar de cordas, o
silvo da flauta, o suspiro dos enfermos, o gemido dos aflitos…» [Eva De
Vitray-Meyerovitch (ed.), Anthologie du soufisme (Paris 1978), 200].
[160] In II Sententiarum, 23,
2, 3.
[161] Cántico Espiritual,XIV,
5.
[162] Ibidem.
[163] Ibid., XIV, 6-7.
[164] João Paulo II, Carta ap.
Orientale lumen (2 de Maio de 1995),11: AAS 87 (1995), 757.
[165] Ibidem.
[166] Idem, Carta enc.Ecclesia
de Eucharistia (17 de Abril de 2003), 8: AAS 95 (2003), 438.
[167] Bento XVI, Homilia na
Missa de Corpus Christi (15 de Junho de 2006): AAS 98 (2006), 513;
L´Osservatore Romano (ed. portuguesa de 24/VI/2006), 3.
[168] Catecismo da Igreja
Católica, 2175.
[169] João Paulo II, Catequese
(2 de Agosto de 2000), 4: Insegnamenti 23/2 (2000), 112; L´Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 5/VIII/2000), 8.
[170] Quaestiones disputatae
de Mysterio Trinitatis, 1, 2, concl.
[171] Cf. Tomás de Aquino,
Summa theologiae I, q. 11, art. 3; q. 21, art. 1, ad 3; q. 47, art. 3.
[172] Basílio Magno, Hom. in
Hexaemeron, 1, 2, 6: PG 29, 8.
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Nieustanne potrzeby??? Nieustająca Pomoc!!!
Witamy u Mamy!!!