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Maria na Bíblia

Da Mariologia Bíblica a Dogmática

Introdução
O estudo dos textos sobre Maria na Bíblia causa em muitos cristãos admiração e perplexidade. Por um lado, se entusiasmam por sua pessoa, ao descobrirem os traços principais da imagem neo-testamentária da mãe de Jesus: a perfeita discípula, seguidora radical de Jesus, irmã mãe da comunidade, profeta da libertação, peregrina na fé, contemplativa no cotidiano… Por outro lado, produz se em não poucos um sentimento de mal estar, quando comparam os dados bíblicos com os que se veiculam na piedade e na liturgia. Acrescenta se a isso a pergunta: afinal, como se chegou a afirmar a Imaculada Conceição ou mesmo a Assunção, se não há nenhum dado bíblico direto sobre estes dogmas? Não bastariam as afirmações bíblicas? Qual é a legitimidade do crescente aumento de espaço da pessoa de Maria na fé católica? Estas e outras perguntas afins só podem ser respondidas recorrendo a alguns princípios e conceitos da teologia fundamental, tais como: o lugar da Escritura no processo de interpretação da fé, função dos dogmas, relação Bíblia-comunidade-Tradição.
I. Relação Bíblia-Tradição na Mariologia
1. Divergência entre exegese e interpretação corrente
Quem leu atentamente e se apropriou das reflexões dos artigos anteriores de Nova Aurora sobre a mariologia bíblica deve ter se perguntado: como vencer o abismo entre a interpretação da Escritura, dada pelas Ciências Bíblicas, e a maneira de compreensão reinante na comunidade eclesial? Constata se que os dados sobre Maria no NT divergem significativamente da interpretação hegemônica no meio dos fiéis. Em sermões, cantos, ladainhas, terços, comentários, celebrações ou “tardes de louvor”, acentua-se a maternidade de Maria, mãe de Jesus e nossa mãe. No NT, ao contrário, o acento recai no discipulado, no modelo de fé. A Bem-Aventurança central sobre Maria não diz respeito à maternidade biológica. Ao contrário, ela teve de fazer uma ruptura drástica, abandonando os privilégios da maternidade biológica para entrar humildemente no grupo dos seguidores de Jesus. Aí, sim, sua maternidade recobra pleno valor; ela reúne a comunidade em torno de Jesus, impelindo-a a fazer a Sua vontade. Junto com os apóstolos prepara a vinda do Espírito que continua em nós a missão de Jesus.
O culto a Maria assumiu dimensões gigantescas no catolicismo. Que diferença da sóbria imagem sobre Maria no NT! Para a comunidade das origens, Jesus Cristo, o Filho de Deus Pai e nosso irmão, ocupa todo espaço de reverência e culto. Estritamente falando, não há culto a Maria no NT, embora alguns mariólogos ousem detectar, no relato da visitação (Lc 1), traços de reverência à sua pessoa na afirmação “Bendita és tu entre as mulheres” e “Bendito é o fruto do teu ventre”.
Pastoral mente surge o problema da mensagem central dos textos bíblicos sobre Maria, ao seguirmos o consenso dos teólogos e biblistas. Citemos dois exemplos. O relato das Bodas de Caná não se centra na solicitude de Maria e sua capacidade de intercessão (“peça à Mãe que o Filho dá”), mas na intervenção decidida para realizar o sinal que leva à fé. Os dois textos que servem para alimentar a piedade sobre “Nossa Senhora das Dores” têm originalmente outra mensagem central. A referência de Simeão à “espada que transpassará a alma de Maria” (Lc 2,35) se liga à obediência da fé e a deixar-se julgar pela Palavra de Deus. A cena de Maria aos pés de Cruz (Jo 19,25) não tematiza primariamente o sofrimento redentor, mas a hora da glorificação e passagem para o Pai. E o que dizer do uso de Apocalipse 12 na missa da Assunção, sabendo que o texto prioritariamente alude ao povo de Deus (Israel e Igreja), referindo-se a Maria somente “in obliquo”, de forma derivada?
Há maneiras equivocadas de resolver esta problemática. A primeira consiste em criar duplo discurso, dirigido a públicos distintos, sem nenhuma articulação entre si. Para os fiéis, fala-se de Maria de maneira ingênua, doce, demasiadamente piedosa. Não há limites, pois se acredita que tudo o que se diz bem de Maria redundará para a glória de Deus e de sua Igreja. Para os estudantes de teologia está reservada a linguagem técnica, precisa, restritiva e fria. A conseqüência é desastrosa para ambos.
Os fiéis continuam com fé ingênua, sem enriquecer-se e corrigir-se com a Escritura e a teologia. Os futuros pastores e agentes pastorais acumulam um saber que não lhes será útil nem na pastoral, nem na sua vida pessoal.
O segundo equívoco reside na absolutização e minimização, seja da vida concreta dos fiéis, seja das ciências bíblicas. De um extremo, surgem os ferozes iconoclastas, que, em nome da fé pura, incontaminada e reta, aniquilam e zombam das manifestações populares marianas. Sem levar em conta o horizonte cultural e religioso dos fiéis, pretendem a todo custo impor uma interpretação minimalista. Do outro extremo, manifesta se a ingenuidade consentida. O agente pastoral repete as manifestações religiosas marianas e as interpretações simplistas, mesmo se não acredita nelas. A mariologia aprendida na faculdade de teologia assemelha-se a um boné esquecido em algum canto da casa, do qual se tem algumas remotas lembranças. Muitos padres recém-ordenados deixam o “chapéu” da teologia pendurado na porta dos fundos da sala de aula. A teologia não “entrou” na sua mente. Momentaneamente justaposta à sua cabeça, perde vigência nos primeiros meses de ministério.
A questão só se resolve com base razoável de conhecimentos, bom senso e sensibilidade pastoral, a partir da compreensão do lugar da Escritura no processo de interpretação da fé atual, vivida pela comunidade eclesial.

Fonte:
Da Mariologia Bíblica à Dogmática
Irmão Afonso Murad (marista)
In: Nova Aurora, 1995 – no 1, São Paulo.

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